sexta-feira, 27 de abril de 2012

Ética às moscas


Entrei em uma loja de R$ 1,99 à cata de um mata-moscas, afinal, sou proprietário de um vaso com planta-carnívora que adquiri na Festa da Uva e meu senso de responsabilidade paternal me impele a passar o dia perscrutando o vácuo dos ambientes da casa à caça de presas voadoras que possam nutrir e deleitar as 12 vegetais boquinhas dentadas permanentemente abertas que me miram famintas lá do canto da cozinha, tal qual passarinhos no ninho aguardando a chegada da mamãe-pássaro e seu suculento rancho de minhocas. Abordado à entrada da loja pela atenciosa mocinha que desejava ajudar, fui logo pedindo:
- Tem mata-moscas?
Conduzindo-me pelos corredores de prateleiras repletas de badulaques, a atendente ia na frente, perguntando se eu procurava um mata-moscas “tradicional” ou “aquele moderno, à bateria”. O “tradicional” ao qual ela se referia, supus, era o que eu estava buscando, ou seja, aquele moldado em peça única de plástico bem bagaceiro que, após curto período de uso, fica nojento e deve ser imediatamente substituído por outro. O “moderno” eu não conhecia e ela logo tratou de me apresentar: trata-se de um objeto em formato de raquete de tênis, movido a uma bateria recarregável instalada no cabo, que, em contato com o inseto interceptado em pleno voo, dispara uma descarga elétrica que frita na hora a vítima, produzindo um estralinho meio sádico. É traaaac e pronto: fritou-se o insetinho, que cai grelhado no chão.
Fiquei estupefato com a invenção, mas repeli a oferta e saí de lá levando na sacolinha o tradicional mata-moscas de plástico alaranjado, com o qual caçarei os insetos que irão alimentar minha planta-carnívora. Achei a raquete elétrica uma arma poderosa demais para ser usada contra adversário tão frágil (como lançar uma bomba-atômica sobre uma redução jesuítica, por exemplo). Com o mata-moscas de plástico, ao menos, concedo aos insetos a possibilidade de se digladiarem comigo em condições mais equilibradas de combate, quando sairá vencedor aquele que for mais ágil, esperto, habilidoso.
Afinal, é nesses singelos atos do cotidiano que mantemos acesa a frágil e claudicante chama de nossa ética pessoal.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de abril de 2012)

segunda-feira, 23 de abril de 2012

História de pescador

Brincar é fundamental para que as crianças treinem situações que vão pautar suas vidas adultas. Conforme os pedagogos, os jogos infantis preparam o caráter e instrumentalizam os pequenos a atuarem mais tarde como adultos aptos a enfrentar as dificuldades que vão aparecendo feito pedras no meio dos caminhos de suas existências. Assim, correr loucamente junto com os amiguinhos em torno da mesa dos doces da festa de aniversário da Aninha, que deveria ser mantida intacta até o momento de cantar os parabéns, é uma atividade que engendra de alguma forma a capacidade de futuros CEOs de multinacionais a tomarem as mais abrangentes decisões estratégicas um par de décadas mais tarde.
Muito cuidado, portanto, ao reprimir seus filhos (sobrinhos, afilhados, alunos) quando eles escalam os galhos mais finos do pinheirinho da esquina e balançam perigosamente lá em cima. Você pode estar represando o perfil arrojado de um futuro Eike Batista. Nunca se sabe até onde pode ir a importância de uma brincadeira de cabra-cega (ainda se brinca de cabra-cega?).
Eu, por exemplo... Quando é que iria imaginar que a habilidade que desenvolvi até os dez anos de idade, de conquistar pequenos prêmios nas “pescarias” de peixinhos de madeira enterrados na areia, em parques de diversões e festas comunitárias, iria me ser útil aos 44 anos de idade? Pois estávamos em família tomando chimarrão na sacada do apartamento de meu avô em Ijuí quando o chinelo do pé esquerdo de minha esposa, entontecido de tanto ser chacoalhado pelas pernas que ela cruzava enquanto impacientemente aguardava sua vez na roda do mate, despregou uma pirueta no ar e foi estatelar-se na laje do primeiro andar lá embaixo, aos olhos estupefatos de todos e longe do alcance dos braços de qualquer um. Destemido e criativo, não tive dúvidas: peguei um barbante, amarrei na ponta um gancho e pesquei o chinelo, para o aplauso dos familiares e os olhares renovadamente encantados de minha esposa.
Ponto para mim, para minha infância de pescador de quermesse e para todos aqueles que não reprimiram essa habilidade nata na criança que fui. Tudo é aprendizado, viu, Pedri... desça já daí, menino!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5/11/2010)

sexta-feira, 20 de abril de 2012

A preposição que deu pena

Dia desses abordei aqui a importância de um mero sinalzinho gráfico-gramatical como a cedilha, que, se esquecido ou aplicado incorretamente em uma palavra, tem o poder de alterar o significado de uma sentença. Debruço-me agora sobre o cuidado que se deve ter, nas situações do dia-a-dia, com o emprego correto das preposições. Sim, porque uma preposição mal utilizada, ou mal compreendida, é capaz de gerar mal-entendidos que precipitem você rumo à íngreme ladeira do constrangimento.

Prova é o que me aconteceu semana passada, ao receber o telefonema de uma senhora leitora residente em Uvanova, aquela simpática cidadezinha de colonização italiana encravada no coração da Serra gaúcha, vizinha à Tapariu imortalizada nas saudosas crônicas de Jimmy Rodrigues. Tergiversava ela a respeito do valor discutível de meus textos quando foi interrompida por um súbito acontecimento que lhe desviou a atenção. “Preciso desligar, Marcos, pois acaba de cair na rua uma caixa de frangos da caçamba de um caminhão e a vizinhança está em polvorosa, ajudando o caminhoneiro”, disse-me ela, ao desligar e me deixar com o fone na mão fazendo tu-tu-tu enquanto eu-eu-eu escancarava as porteiras da imaginação, visualizando uvanovenses de todas as idades correndo pela rua a perseguir frangos fugitivos que cacarejavam por entre as hortas alheias o sabor da repentina liberdade conquistada graças ao solavanco causado por um buraco na rua.

Dias depois minha leitora retornou a ligação para dar sequência à sua tese referente aos meus escritos, mas o que mais me interessava era o desfecho da saborosa (para o caminhoneiro e as aves, penosa) aventura ocorrida nas ruas de Uvanova, quando do extravio da caixa de frangos. Para minha decepção, soube então que o que havia de fato ocorrido fora a queda de uma caixa vazia de transporte de frangos, e não uma caixa repleta de frangos vivos, como eu tão perfeita e literariamente imaginara. Uma caixa COM frangos até pode significar o mesmo que uma caixa DE frangos, mas uma caixa DE frangos nem sempre quer dizer uma caixa COM frangos, conforme aprendi na marra.

Fiquei triste, pois desejava escrever uma crônica a respeito do ocorrido em Uvanova...

(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de abril de 2012)

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Uma pitada de magia na fórmula

Qual é a fórmula mágica que se deve evocar para fazer florescer dentro da alma humana um leitor? Quais rituais devem ser cumpridos para proporcionar em um cidadão o surgimento do amor pela leitura, da paixão pelos livros? Qual é o caminho mais correto e seguro para garantir que isso de fato se concretize? Passa pela escola? Deve haver o estímulo do hábito por parte dos pais, a partir do exemplo em casa? É preciso promover políticas públicas amplas e perenes de incentivo à leitura e distribuição de livros na rede de ensino? Deve-se lutar pela redução dos preços dos livros? Pintar os autores de amarelo para que fiquem mais engraçados? Confinar escritores dentro de uma casa ao estilo Big Brother e televisionar suas discussões filosófico-literárias, transmitindo-as via Embratel para todo o território nacional? O que fazer? O quê? O quê? O quê?

Essas questões estão sempre na ordem do dia quando se debate literatura em simpósios, programas televisivos educativos, em entrevistas com escritores, bate-papos em feiras de livros, encontros entre autores e público. E a preocupação é pertinente e vital, especialmente em um país cuja grande massa da população permanece desamigada do mundo da leitura de livros, como o nosso. Já me deparei diversas vezes confrontado com essas questões e confesso que, via de regra, concordo com e elenco a quase totalidade das estratégias arroladas no parágrafo anterior como sendo válidas (excetuando-se a pintura do rosto dos escritores de amarelo ou de qualquer outra cor e a criação de um Big Brother Leitor, naturalmente). Porém, lá em meu íntimo, acho que tudo isso, apesar de crucial, ainda não basta.

Na verdade, me parece que, para que surja o leitor, o verdadeiro leitor, aquele ser humano que ama livros e sente verdadeiro deleite no ato de ler, transformando isso em hábito pessoal e vício construtivo irredutível e inalienável, é preciso que opere nele um ato de mágica. Sim, magia mesmo. Algo irracional precisa acontecer para que essa doença da leitura se instale no organismo da pessoa, debelando as barreiras impostas pelos anticorpos que protegem a tendência ao ócio mental que aflige a maioria dos seres humanos, e permita a instalação dessa compulsão que nos faz ler e ler e ler e ler.

Magia pura.

Naturalmente que é fundamental a criação de um ambiente propício para que esse ato sobrenatural encontre caminho para se manifestar e infectar alguns raros escolhidos. Ele se dá nas praças públicas que sediam as feiras dos livros, se dá dentro das livrarias e bibliotecas para as quais as mães e professoras conduzem as crianças, se dá nas casas que têm a alegria de abrigar pais leitores, se dá na atmosfera etérea criada pela irradiação de programas radiofônicos e televisivos que entrevistam autores e propagam as maravilhas da leitura, se dá em todo o território (tanto físico quanto intangível) integrante daquilo que convencionamos chamar aqui de Planeta Livro. Mas, para que o leitor desperte, é preciso que haja o surgimento dessa centelha mágica. Sem isso, de nada adiantam as políticas públicas, os simpósios, as entrevistas, o exemplo em casa, a redução dos preços etc etc etc etc.

Cansei de ver casos de pessoas que tiveram, desde a infância, todo o acesso do mundo à leitura, passando por todos os quesitos aqui citados, e simplesmente não se transformaram em leitores. Por outro lado, pululam por aí exemplos de leitores vorazes que cresceram em ambientes completamente desprovidos de livros e simplesmente viram surgir em si essa fome de ler, insaciável, que lhes conduz as existências sem maiores explicações.

Magia, portanto.

Feliz de quem vira vítima desse feitiço.

(Texto publicado na seção "Planeta Livro" da revista Acontece Sul, edição de abril de 2012)

sexta-feira, 13 de abril de 2012

A primeira flor

Vamos chamá-lo de Rafael. É um moço de coragem, esse Rafael. Devia estar planejando o ato há dias, desde que descobriu a data de aniversário da colega, bela, alta e loirinha, a quem chamaremos de Mariana. A julgar pela mochila que Rafael portava às costas, e pelo conjunto de abrigo e tênis com que Mariana atravessava o portão do edifício e saía para a calçada, podemos supor que ambos deviam ter cerca de 16 anos de idade, estudantes do ensino médio.

Rafael interceptou Mariana a dois passos da fachada do prédio onde ela mora e chegou sorridente, a vermelhidão estampada nas faces quase se sobressaindo ao sorriso tímido e ao mesmo tempo ousado com que tentava esconder a apreensão. Sem dar tempo ao arrependimento, parabenizou-a pelo aniversário, tascou dois beijinhos nas faces dela, que também ruborizavam, e sacou das costas, como um pistoleiro do amor, o vaso com flores que acabara de adquirir na floricultura da esquina.

“Mas, Rafael!!! Que lindooo!! Não precisaaaava!, derreteu-se Mariana, desarmada.

Segui adiante rumo a meu automóvel estacionado na Avenida Julio de Castilhos, no bairro Lurdes, e não acompanhei o desfecho da cena flagrada pouco após o meio-dia, numa ensolarada quarta-feira de abril. Se surgia ali uma bela história de amor, não tenho como saber, afinal, mulheres são tão fascinantes quanto indecifráveis, e se Mariana estiver interessada mesmo é em Marcelo (que nem lembra do aniversário dela, por sinal), azar do Rafael, que, apesar de “querido, sensível e fofo”, vai acabar é sobrando mesmo.

Mas o grande mérito de Rafael, sem que ele o saiba, é provar que, nesses dias de redes sociais e relacionamentos virtuais, ainda há espaço para agir como gente de verdade, dando a cara ao vivo a bater e protagonizando um ato humano na vida real. Mais fácil teria sido enviar um cartão virtual pela internet, mas nada substitui a imagem da surpresa de Mariana, e a adrenalina que ambos sentiram naquele momento lhes vai ficar gravada na memória para sempre.

Já minha esposa, que presenciou a cena, também admirou o romantismo todo, mas não deixou de observar que as flores eram “tinhosas” (ah, mulheres...).

(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de abril de 2012)

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Doces Páscoas de antanho

Ovos confeccionados em puro açúcar por minha avó faziam
a minha festa e depois a dos dentistas

Quando eu era criança, em Ijuí, na década de 70, Páscoa era sinônimo de mistério porque havia o tal do Coelhinho que visitava sorrateiro as residências habitadas por crianças, de madrugada, e escondia ninhos ornamentados em papel celofane, recheados de guloseimas que só nessa época do ano davam as caras. Boa parte daquelas delícias o Coelhinho obtinha junto às cozinhas de minhas duas avós: a materna confeccionava enormes e coloridos ovos de açúcar e a paterna usava cascas vazias de ovos de galinha para recheá-las com amendoim glaceado, pintá-las com anelina e tampá-las com forminhas de papel usadas para docinhos.

Coelhos e ovinhos de chocolate de vários tamanhos também disputavam nossa gula entre as doçuras e, para não me perder na organização da comilança, eu fazia um inventário das guloseimas recebidas, anotando as baixas a cada doce devorado. No imenso pátio repleto de árvores, flores e arbustos na casa de minha avó paterna, a Oma (“avó”, em alemão), o Coelhinho escondia ninhos para cada um dos netos e a primaiada toda era convocada, nas manhãs de domingo que antecediam o churrasco de Páscoa em família, a procurar os regalos por ali escondidos. Era uma festa.

Esta Páscoa de 2012 se configura como a primeira de minha vida que passarei sem a existência de nenhuma de minhas avós (a materna faleceu em 2004 e a paterna, a Oma, há pouco mais de um mês). Minhas Páscoas não perderam o encanto pelo simples fato de o Coelhinho ter me tirado da lista de recebedores de ninhos - uma vez que não sou mais criança há décadas - e nem devido à triste mas natural passagem de meus ancestrais. Pelo contrário, o legado de humanidade e de valores que avós assim nos deixam, demonstrando por meio de atitudes simples e marcantes, como produzir ovos e esconder ninhos de Páscoa para os netos, é o maior presente que se pode receber da vida, imortalizado na manutenção da lembrança de quem ajudou a formar nossas personalidades. Páscoa, minhas avós sempre ensinavam, é muito mais do que presente de Coelhinho. Descobrir e valorizar o significado real da data vai bem além de desvendar esconderijos de ninhos de guloseimas, né, Vó e Oma?

(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de abril de 2012)