terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Visão de carona

“Borracharia dia e noite”, dizia a placa à beira da estrada. “O que será que fazem ali? Enchem a cara de cerveja do raiar do sol até o avanço da madrugada, se emborrachando ininterruptamente?”, me questionava eu, em silêncio, sentado no banco do carona. Pensamentos assim (e alguns outros bem mais filosóficos, profundos e humanos, garanto) me visitam a mente quando tenho a (rara) oportunidade de passear no banco do carona. Como é bom estar no banco do carona.
Desobrigado a atentar para as armadilhas do trânsito frenético, a conduzir o veículo pelas quebradas corretas que desembocarão no destino almejado e a convergir todos os sentidos e esforços na materialização de um trajeto seguro, a chance de poder aninhar-se no banco do carona representa para mim um momento inegociável de relax mental capaz de proporcionar uma recarga de bateria psíquica única e inigualável. Se confio no (na) motorista, largo a alma a flanar pelas paisagens urbanas ou rurais que vão desenrolando seus flagrantes de humanidades à medida em que são tocadas fugazmente pelo crivo de meu olhar atento e descansado.
A moça que passeia com o cãozinho pela calçada; o casal maduro de abrigo, boné e óculos escuros, a fazer sua caminhada diária; o velhinho que não se desapega do hábito de levar a cadeira para a varanda no fim de tarde para testemunhar a vida sorvendo chimarrões silenciosos; a criança que fez arte e sai correndo marota porta afora, deixando para dentro da casa os gritos maternos; a silhueta do cavalo que pasta solitário no alto da campina; a casa de joão-de-barro que se equilibra no alto do poste de luz; a casinha centenária encolhida entre dois prédios no trajeto diário e que sempre me fugiu às vistas de motorista; as placas com dizeres esdrúxulos que são engraçadas justamente por terem sido elaboradas sem a intenção de provocarem graça alguma, como a “borracharia dia e noite” ou a “comida por a quilo”.

O escritor francês Marcel Proust, no início do século passado, temia, com a popularização dos automóveis, que a velocidade das viagens dizimasse nas pessoas a capacidade de observarem as paisagens do mundo com a mansidão necessária. Não proponho a volta das charretes, mas talvez eu devesse viajar mais de ônibus.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de dezembro de 2013)

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

O parafuso perdido

“E aí, solucionou o seu parafuso?”, me pergunta, cheio de simpatia, o frentista do posto de gasolina em que abasteço meu carro. Primeiro, a surpresa por ele ter me reconhecido (“Ah, aí está o cliente do parafuso”) em meio a tantos outros motoristas que conduzem suas conduções até ali para solucionar as mais variadas demandas automobilísticas. Depois, o constrangimento de ter de dar explicações para que a esposa, sentada ao lado, conseguisse entender o que é que andava se passando, uma vez que, nesses dias de estresses característicos de final de ano, ela mesma tem desconfiado de que eu me comporto como se estivesse com um parafuso a menos.
Na verdade, o que existe é um parafuso a mais nessa história. Um parafuso que, não sei quando, nem onde, muito menos como (e nem ouso querer refletir sobre o por quê), botou-se a mirar o pneu traseiro direito de meu carro e cravou-se nele há não sei quanto tempo. Todos sabemos (ou deveríamos saber) que a coexistência entre parafusos e pneus não é pacífica, apesar de íntima, uma vez que o parafuso, devido à sua natureza penetrante, não consegue reprimir o ímpeto de, sempre que em contato com um pneu, perfurar-lhe a carne de borracha e fincar-se fundo nele, como um prego a supliciar um crucificado, sem dó, nem piedade.
O pneu, uma vez empalado pelo objeto pontiagudo e aparafusante, tem a tendência de ir-se esvaziando aos poucos exatamente como a carne que sangra, e que diabos isso de eu não conseguir represar metáforas crucificantes nessa época natalina, deixemos disso antes que mal me entendam. Resultado: um belo dia, o motorista chega no carro e depara com um dos pneus (o empalado, ou o emparafusado) murcho e chocho. Com o pouco de ar que ainda lhe resta nas entranhas, dirige-se até o posto mais próximo onde pede ao moço que o calibre de emergência e, ao fazê-lo, ele, o moço do posto, aponta o problema: “Este pneu está furado. Tem um parafuso nele. E deve estar ali há tempo, o ar é que foi saindo aos pouquinhos”, sentencia.
Resolvido o mistério: então foi ali que o parafuso que eu dei de ter a menos se refugiou quando resolveu libertar-se de mim. Quando for ao borracheiro consertar o estrago, pedirei para que me guarde o parafuso. Minha esposa, eu sei, anda desconfiada de que posso precisar dele para reequilibrar a quantidade dos que ela julga deveriam existir em minha cabeça, de onde não haveria nunca de ficar com nenhum a menos.
***

Gilberto Blume retorna de férias e retoma a partir de amanhã este espaço. Grato a ele pela confiança e aos leitores pelo prestígio.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de dezembro de 2013)

O segredo da árvore

Os natais de minha infância, agora olhando em retrospecto, eram ecologicamente incorretos, uma vez que passava-se o machado em pinheiros de verdade para que fossem transportados até as salas das casas onde, imponentes e majestosos, plantavam-se perto da lareira à espera dos adornos que os transformariam em árvores de Natal. Muitas vezes o pinheiro foi retirado do pátio de casa mesmo, onde dois exemplares da espécie viviam o ano todo mais ou menos alheios à nossa indiferença. Outras vezes meu pai adquiria o pinheirinho na chácara de um cidadão que os comercializava nessa época do ano.
Questões ambientais à parte, o fato é que agora, quando chega dezembro, minha memória afetiva evoca do fundo do baú de minhas lembranças o perfume característico de árvore que invadia a casa toda quando o pinheiro era arrastado porta adentro, credenciando-se como membro da família ao longo dos dias que antecediam e sucediam a data natalina. Seu tronco era afixado em uma caixa de lata municiada de pregos internos, dentro da qual colocávamos tijolos para sustentar o equilíbrio da estrutura. Enchíamos de água o latão e minha mãe jogava lá dentro algumas pastilhas de aspirina, a fim de manter o vigor da árvore por mais tempo. Verdade ou mito, certeza mesmo é de que pinheiro lá em casa jamais sofreu de dor de cabeça.
Depois vinha a melhor parte: enfeitar a árvore com os arranjos e penduricalhos que a mãe mantinha o ano todo guardados sabe-se lá onde, em esconderijo bem distante de nossos olhos infantis. Assim, o encanto e a magia se renovavam a cada ano, com a família exercitando unida o ritual de engalanamento do pinheiro. E lá surgiam as bolas coloridas, as estrelas, os papais-noéis, as velas, cada enfeite ganhando seu lugar entre galhos e espinhos, mesclando-se ao verde silvestre da árvore. A seu pé, iam chegando as figuras do presépio, que eu tinha fissura em montar.

Voltando a olhar em retrospecto, creio que residia ali, naquele rito, a essência do significado do Natal: uma família enfeitando o pinheirinho para receber o Papai Noel e refletir sobre o significado verdadeiro da data cristã. Ecologicamente incorreto, bem, que fosse. Pode-se obter hoje o mesmo efeito psíquico com uma árvore sintética. O segredo da coisa continua morando no mesmo lugar: o interior de cada um. Bom Natal!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de dezembro de 2013)

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

O abre-alas

Transitava por uma das estradas da Serra, dessas estreitas cheias de buracos, desprovidas de faixa dupla e de terceira pista, nas quais formam-se extensas fileiras de veículos penando a vinte por hora atrás de caminhões de carga. Paciente e zeloso, conduzia meu carrinho ensanduichado entre um ônibus que vinha atrás e uma jamanta uruguaia com “freno a aire” à frente. Alternava primeira com segunda, segunda com primeira, freio, embreagem, segura um pouco, olha só o louco que vem de trás querendo forçar espaço para ultrapassagem onde não há lugar para nem mais um mosquito.
De repente, pelo retrovisor, percebo uma movimentação diferente: todos os veículos atrás de mim saindo para o lado, ocupando parte do arremedo de acostamento, para dar passagem ao que vem subindo célere, determinado, convicto: um tanque de guerra. Isso mesmo, um verde-oliva tanque de guerra, com canhão na frente, esteiras e muito aço, abrindo alas. Surreal, onírico. Tão surreal e onírico que de fato acordo, sento-me no meio da cama, irritado com a consequência da liberdade artística total que andei delegando ao misterioso roteirista de meus sonhos. Ora essa, um tanque de guerra subindo a Serra! Só em sonho mesmo. Mas... será?
Sabemos, desde Freud e Jacó, que os sonhos contêm significados psíquicos que vão muito além da aparente insensatez gerada por roteiros malucos. Quem sabe não tenha eu recebido uma dica para a abertura de um lucrativo negócio, um filão de mercado que ninguém ainda atinou em explorar? Abrir uma revenda de tanques de guerra, por exemplo. Não faltariam clientes interessados em adquirir esse tipo de veículo justamente para enfrentarem melhor a guerra declarada do trânsito nas estradas brasileiras. Na verdade, para uma certa espécie de motoristas, só o que lhes está faltando mesmo são os tanques blindados e ameaçadores, porque o comportamento assassino, imprudente, arrogante e incivilizado, adequado para dirigir esse tipo de condução, eles já possuem, e de sobra.

Já que a ordem nas estradas e nas cidades ultimamente tem sido a do salve-se quem puder, e saiam da frente que eu estou chegando, e te escapa que a faixa é minha, e tira essa carroça que o meu é mais lindo e mais potente e maior e não quero nem saber, que tratem então de usar tanques de uma vez por todas. E mantenham os canhões apontados, que é para espalhar logo o terror, já que ninguém mais precisa fechar os olhos e deitar na cama para vivenciar pesadelos nesses dias de hoje.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de dezembro de 2013)

domingo, 22 de dezembro de 2013

O ralho do carteiro


Dia desses recebi uma multa de trânsito. Para poder escrever esta crônica, sou obrigado a admitir, caro leitor, que cometi uma infração e que sou culpado. Não deveria, eu sei, mas aconteceu. Passei a 67 km/h em um trecho no qual só poderia trafegar a, no máximo, 60 km/h. Distraí-me, voei as tranças acima do permitido e a lombada eletrônica deu-me no lombo. Paciência. Paga-se e procura-se redobrar a atenção para não repetir a façanha. Até aí, tudo certo.
Problema mesmo é o carteiro que distribui a correspondência no meu bairro. Ele faz cara de brabo quando vem entregar multa. Para receber a notificação, é preciso assinar o nome num papelzinho na prancheta dele. Ele chega de moto, buzina na frente de casa, me espera sair porta afora e pergunta, inquisitivo, em tom de Torquemada: “Senhor Marcos Fernando?”. Pois sim, sou eu. Apresento-me já meio de orelha baixa, visualizo o logotipo do Detran numa das faces do envelope e entendo tudo. “Lá vem multa”, articulo, tentando estabelecer contato e empatia enquanto o carteiro, compenetrado e mudo, preenche números de protocolo no formulário, a moto com o motor ligado, barulhando defronte ao portão, fazendo questão, parece, de anunciar a toda a vizinhança que “o senhor Marcos Fernando aí andou levando multa”.
E pensa mais o carteiro, enquanto escreve, escreve, escreve com a caneta Bic na prancheta. Amuado do lado de cá da cerca, aguardo a entrega do papel enquanto escuto na alma os pensamentos irados do carteiro: “Brincadeira esses caras, aí. Ficam cometendo infração e depois eu é que tenho de carregar as multas deles pela cidade. Não me interessa se é infração leve, média, grave ou gravíssima. Multa é multa. Fez o que não devia. Não se comportou direito. Faz babada e depois eu é que tenho de ficar trazendo primeiro a notificação para defesa e, mais tarde, retornar aqui de novo para trazer a guia de recolhimento. Por que é que não anda na linha? Tudo bem ter de carregar o malote com correspondência, com conta do cartão de crédito, conta do telefone, da tevê a cabo, mala-direta, cartão de Natal, a revista Veja, a Playboy... ah, não, a Playboy é do vizinho da frente, mas pô... brincadeira esses caras”.

Recebo o papel, assino na linha pontilhada e ele arranca, a moto martelando em meu ouvido as reprimendas surdas que só eu escutei. Tenho andado direitinho desde então. Que medo que tenho desse carteiro.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de dezembro de 2013)

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Mal na foto

A Senhora X e eu fomos colocados em contato por intermédio de uma amiga em comum sabedora de nosso interesse pelo desenvolvimento de determinadas pesquisas históricas. Por e-mail, trocamos informações preliminares e marcamos de nos encontrar certa tarde na casa dela, a fim de nos conhecermos e darmos início a uma parceria que viria a ser útil a ambos. Até aí, tudo bem. Ela me recebeu efusiva, feliz por me ver em pessoa, leitora que se disse ser de meus textos aqui, acolá e alhures. Problema foi quando apareceu o marido.
Também simpático, ele chegou na sala, apertou minha mão, olhou-me fixo nos olhos por alguns instantes, observou minhas feições e sentenciou: “Você não se parece com a foto do jornal”. Desconcertado, pensei rápido e apelei para meu tradicional humor duvidoso: “Sim, o senhor tem razão. Sou mais bonito ao vivo”. Ele deu uma risadinha e saiu da sala, deixando-me com a impressão de que discordava de meu argumento.
Porém, o que o marido da Senhora X conseguiu foi infestar minha orelha com pulgas. Por que diabos eu haveria de não me parecer com a fotinho que encabeça ali a coluna? Estaria ela desfocada? Embaçada? Aguada? Ou pior: e se nada houver de errado com a foto, mas sim com minha imagem real ao vivo? E se o aguado, o desfocado e o embaçado for eu mesmo, em carne e osso e óculos?
Procuro me confortar recordando que já houve vários casos em que desconhecidos me reconheceram na rua justamente devido à foto no jornal. Tudo bem que certa vez um deles me cumprimentou entusiasticamente por uma crônica maravilhosa que na verdade fora escrita pela Maria Helena Balen. Recebi o elogio constrangido e me ralando de inveja da Maria Helena, naturalmente. Mas não quis esvaziar o entusiasmo do leitor em relação ao texto que, de fato, era ótimo, como não poderia deixar de ser. Fico até hoje me segurando para não telefonar à Maria Helena e perguntar se já ocorreu de ela receber cumprimentos equivocados (e entusiasmados) por escritos brilhantes de minha autoria atribuídos a ela, mas temo descobrir que “não, nunca, querido, mas não se preocupe, você escreve direitinho”.

Isso tudo me faz desconfiar de que talvez eu possa estar mesmo meio mal na foto. Preciso me parecer visualmente comigo mesmo, e urgente. Ficarei assustado se amanhã ou depois alguém passar pela rua e me cumprimentar dizendo: “Olá Maria Helena, belo texto hoje”!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de dezembro de 2013)

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

O engano do Soiza

Acredito que eu deveria ter por volta de uns dez anos de idade quando meu pai chegou em casa uma certa manhã carregando aquela grande caixa de papelão e a depositou sobre a mesa da varanda. Fui ver o que era e deparei com um punhado de pintinhos de um dia acotovelados ali dentro, formando uma massa amarela compacta de pios, penugens e olhares aterrados. Quis saber para que aquilo e meu pai me explicou que os havia comprado a fim de leva-los à fazenda que possuía no interior de São Borja, onde esperava-se que se transformassem logo em frangos e, a seguir, em galinhas poedeiras.
“Com sorte, haverá um ou outro galo no meio desse bando”, disse ele. Fiquei impressionado com o fato de ser possível “comprar vida”, expressão que utilizei na época. Fascinado com a novidade, passei o restante da manhã em volta da caixa, observando os pequenos serezinhos que recém haviam vindo ao mundo e que ignoravam, temerosos, o destino que lhes era traçado. Indefesos, aconchegavam os corpinhos minúsculos e frágeis uns aos outros, na busca instintiva por proteção, segurança, amparo. Eu, enorme para eles, parecia representar a encarnação de um deus poderoso capaz de, em um gesto, ceifar-lhes a vida a meu bel prazer, a qualquer instante. A ideia causou-me mal-estar e ampliou a empatia que eu ia nutrindo por aquelas dezenas de bichinhos.
Um deles, em especial, me chamou a atenção. Parecia ser alguns milímetros mais alto do que os demais e se destacava na multidão de pintos não só pela altura, mas também pelo comportamento: pouco se mexia e ficava estático em um canto da caixa, não procurando os companheiros e dando a impressão de ser também rechaçado por eles. O dó que senti da criatura foi tamanho que pedi a meu pai para ficar com ele em casa. Ele concordou e foi assim que o bicho se transformou em pinto de estimação. Como era maior do que os outros, tive a certeza de que se tratava de um galo, e batizei-o de Soiza (não me perguntem a razão do nome).

Em poucas semanas, já apartado dos seus irmãos que seguiram para São Borja, o grande e tímido Soiza virou frango e, alimentado com ração e carinho, não demorou a se transformar em uma bela e ruiva... galinha! Pois é, aprendi ali, na prática, que as aparências podem enganar. Meu galo era galinha, mas continuei gostado dele (dela) e o nome Soiza permaneceu até o dia em que desapareceu do pátio em uma das visitas da minha avó, expert em panelões maravilhosos de galinhada. Afinal, Soiza, há um destino a ser cumprido...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de dezembro de 2013)

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Dica das boas

Se eu possuísse o lirismo e a mansidão de um Rubem Braga, eu conseguiria escrever crônicas líricas que mansamente pediriam permissão para adentrar como visitas as salas das almas de meus leitores a fim de, ali assentadas, transbordarem para eles as pequenas grandes coisas da existência humana que passam despercebidas a todos, menos a um cronista da cepa dele. Se eu tivesse a cultura, a inteligência e o refinado humor de um Luis Fernando Verissimo, produziria para meus leitores textos hilariantes, ágeis e profundos, capazes de divertir ao mesmo tempo em que proporcionariam, aos mais sagazes, pistas para a reflexão sobre assuntos os mais cruciais da existência humana.
Fosse eu dotado da paixão profunda que um Antônio Maria acalentava pelo tema do amor, seus derivados e múltiplos desdobramentos, botar-me-ia também a redigir crônicas singelas e saborosas, muitas vezes repletas de personagens cativantes pinçados das esquinas da vida real e transformados em personas literárias, a fim de compartilhar com meus leitores os questionamentos que fazemos todos nós, humanos, que amamos amar. Quiçá fosse eu agraciado com o estilo proustiano de longo fôlego igual ao João Bergman, formataria, a exemplo dele, crônicas satíricas nas quais a forma da escrita abusando do uso impudico das vírgulas causaria assombro e riso no público, que acompanharia os períodos intermináveis só para ver no que iria dar o malabarismo maroto do autor daquelas linhas nas quais o prazer mesmo residiria em ler o dito pela forma do dito e menos pelo conteúdo do que ali se diria, e ponto.
Tivesse eu credencial suficiente de sensibilidade para esmiuçar a imensidão das nuances do universo feminino, faria coro aos textos de Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector e Martha Medeiros, que escreviam e escrevem com essa força feminina tão característica e tão profunda, capaz de arrebatar almas e pensamentos de quem for gente o bastante para com elas respirar o sopro de vida que emerge das linhas que tecem. E falando em sensibilidade, que textos não faria, se possuísse ao menos alguns quilates daquela que caracterizava um Caio Fernando Abreu, um Vinícius de Moraes, um Carlos Drummond de Andrade, um Fernando Sabino.

Mas tudo bem. Sendo o que sou, escrevo o que posso e, pelo menos, sirvo de bandeja ao leitor uma boa lista de dicas de leitura aptas a lhe fazerem a melhor das companhias aos meses de sol, sal, sorvete e mar.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de dezembro de 2013)

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Sorvete de queijo

Uma das (incontáveis) vantagens da chegada do verão é que as pessoas param de me olhar estranho por eu estar comendo sorvete. Verão é sinônimo de gente circulando de corpo bronzeado à mostra, os passos cadenciados, a degustarem essa maravilha da inventividade humana que se nos apresenta sob os mais variados formatos, cores e sabores. Eu, que sou um fissurado por sorvete, sou-o (“sou-o”, Sr. Aurélio???,bem, que seja) tanto que pratico o consumo da gelada iguaria sob qualquer clima ou temperatura.
Pouco se me dá que seja inverno. Mando bala no sorvete mesmo assim. Pouco se me dá que neve lá fora, que chova, que haja raios e trovões, que caia granizo ou a seca grasse (”grassar”, Sr. Aurélio? Bom, que grasse), que a neblina assalte a Serra, que os ventos se façam uivantes. Seja como for, o que quero de sobremesa é sorvete. Sobremesa de verdade, para mim, é “sorvemesa”, e devoro sorvete a qualquer hora do dia.
Mas confesso que me sinto assim meio desamparado pelo fato de as pessoas deixarem de me olhar estranho quando devoro sorvetes no verão, pois que já andava acostumado a receber olhares de estranhamento ao desfilar de capotão e guarda-chuva no inverno pela Júlio de Castilhos saboreando, faceiro, uma casquinha de sorvete. “Não mente, Marcos, ninguém vende casquinhas de sorvete no auge do inverno em Caxias do Sul”, dirão vocês, leitores incréus. “Ah, vocês não sabem de nada, seus incréus”, responderei eu, enigmático, deixando a coisa no ar e me refugiando na dúvida que habita as sempre providenciais reticências de final de parágrafo...

É certo que as pessoas continuam tendo um desfiladeiro de razões para me olharem estranho mesmo que eu não esteja consumindo sorvetes no inverno, mas sim no verão, como todo mundo. Mas o fato é que, no inverno, fica mais fácil detectar a razão do olhar estranhado dirigido a mim quando sei que ele se dá pelo fato de eu estar a lamber casquinha de sorvete sob aquelas temperaturas que todos bem sabem quais são. Para seguir mantendo a coisa sob os domínios da área sorvetal, pus-me então a apreciar sorvetes de sabores esdrúxulos, e agora desfilo garboso e bem estranho, apesar do verão, a apreciar sorvetes de milho-verde (nham), de queijo (o melhor de todos), de melancia, de maçã-verde, de amendoim... Afinal, ficaria muito estranho, de uma hora para outra, deixar de ser estranho.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de dezembro de 2013)

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Fechando o tempo

Estou revoltado. E faz tempo. E revoltado exatamente com o tempo. Não com o tempo cronológico, esse passar das horas que vai enrugando minha pele e esbranquiçando os meus cabelos, me deixando cada vez mais velho. Não, com isso não. Tá, um pouquinho também com isso, admito, mas o foco da revolta hoje é outro. É com o tempo meteorológico. Na verdade, minha revolta é contra a meteorologia. Contra a previsão do tempo. Eu não acredito em meteorologia, e isso é o que me revolta.
Não acredito na capacidade que os meteorologistas alegam ter de conseguirem prever com antecedência de dias o comportamento do clima. Não me venham dizer hoje, segunda-feira, que daqui a três dias, na quinta, vai chover. Admitam: vocês não têm capacitação para tanto. E não é culpa ou incompetência dos meteorologistas, em cuja boa-fé e esforços eu acredito e admiro e respeito. Trata-se apenas de admitir que nós, seres humanos, ainda não alcançamos uma tecnologia científica capaz de oferecer o serviço a que a meteorologia se propõe.
Em resumo: a previsão do tempo é tão científica quanto as profecias de Nostradamus. Deveríamos, aliás, rebatizar a coisa como profecia do tempo, e não previsão. Dia desses, dei-me ao trabalho de acompanhar o andamento da página do tempo nos jornais. Na segunda-feira, os meteorologistas previam não só o comportamento do clima ao longo do dia, como também já se adiantavam em dizer o que iria acontecer no restante da semana. Pois que, assim, na segunda, preconizavam sol para terça e chuva de quarta a sexta. Muito bem. A terça, no entanto, amanheceu com chuva. Já a página meteorológica do jornal na terça, afirmava que sim, choveria no dia (ontem, dizia que faria sol) e que haveria sol de quarta a sexta, desdizendo totalmente a previsão da semana do dia anterior. Tá, mas e aí? Qual das páginas está valendo?

Sem falar no aplicativo de meteorologia baixado em meu tablet. Ele faz a mesma coisa: (des)prediz o (mau) comportamento do clima para a semana toda, e ainda ousa afirmar o estado do tempo em tempo real. Só que dia desses, aquele solzão de fritar formiga no paralelepípedo lá fora, o aplicativo tentava me convencer de que chovia! Foi o cúmulos nimbus! Excluí o aplicativo e liguei para minha sogra. “Não, Marcos, amanhã não chove”, disse ela. E não choveu. Não, ela não é meteorologista. A ciência dela chove vida mesmo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de dezembro de 2013)

A hora certa

Tenho uma mania que me inferniza: gosto de chegar no horário marcado. Mais do que mania, creio que a coisa já assumiu em mim aspectos de compulsão, se é que manejo bem os jargões psicológicos. De qualquer forma, o que interessa é isso: sou um escravo da hora certa, uma vítima da autoimposta obrigação de não chegar atrasado. Fico ansiado à morte se percebo que estão à minha espera. Prefiro esperar a ser esperado.
Há vezes, portanto, em que tenho de aguardar muito, pois nem todos (quase ninguém) penam a mesma sina que eu e protagonizam atrasos memoráveis para reuniões, cafés, bate-papos, tele-entregas, prestações de serviços, consultas, entrevistas, aulas, o escambau. Sabendo disso é que porto sempre comigo algum livro e tem sido assim, ao longo dos anos de espera, que venho conseguindo avançar bastante nas leituras, o que, ao menos, se configura em efeito colateral pra lá de benéfico. Mas não justifica os atrasos alheios, que fique claro.
Muito mais do que chegar na hora marcada, minha obstinação por cumprir o horário é tamanha que, via de regra, eu me materializo nos lugares antes, bem antes (“muuuitooo anteeees”, diria minha esposa, a quem vivo irritantemente a apressar) do que o necessário. Dez, quinze minutos antes, são fichinha. Normal é me verem ali plantado feito uma samambaia esperante meia hora antes do espetáculo, do café, da entrevista, da consulta, do escambau, como já disse antes, em clara pobreza de estilo literário que agora teima em reaparecer (cansei de esperar pela expressão mais adequada). Chego e fico ali, quarando. “Pra que vai tão cedo? Vai ficar lá quarando”, dizia minha avó. Pois é, vou e quaro.
Tenho me esforçado um pouquinho para às vezes chegar depois, mas não consigo. No máximo, nessas raras vezes em que tento ser atrasadinho, consigo chegar exatamente na hora, ou dois minutos antes. Até já não uso mais relógio de pulso há anos, desde que conseguiram enfiar as horas todas dentro dos aparelhos celulares, para desconsolo de minha esposa que acha elegante um bom relógio no pulso, mas não tem jeito, continuo adiantado.

Façam um teste, marquem algo comigo. Se eu chegar atrasado, é porque não sou eu, trata-se de um impostor. Se eu me atrasar, é porque já não fui mesmo. Agora com licença, que tenho um compromisso amanhã às duas e já vou indo...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de dezembro de 2013)

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

A conspiração

Sou vidrado em teorias da conspiração. Gosto de todas, acredito em tudo. Basta vir com uma teoria da conspiração para o meu lado que eu de imediato a adoto e viro partidário. E quanto mais cabeluda, melhor. Adoro!
O homem na lua, por exemplo. Que o homem foi para a lua que nada! Tudo não passou de armação dos americanos no final da década de 1960, no auge da Guerra Fria, para darem a impressão de terem vencido a corrida espacial contra os soviéticos, a quem desejavam convencer de que possuíam melhor e mais avançada tecnologia. Um recado tipo assim: “Ó, cuidado vocês aí... nós mandamos o homem para a lua... se não se aquietarem, mandamos todos vocês para o espaço”. Tipo isso, entende? Tem lógica, óbvio. E para tanto, usaram os recursos cinematográficos de Hollywood para criar o cenário convincente. Dizem até que contrataram o diretor Stanley Kubrick para dirigir a coisa toda, e que ele teria assinado um termo de silêncio, mas espalhou pistas sobre isso nos demais filmes que fez depois. Bah, claro que sim!
E os extraterrestres? Que me dizem dos extraterrestres? Barack Obama é um extraterrestre, assim como o são e foram todos os presidentes dos Estados Unidos. Óbvio que sim. Como prova, basta acompanhar os atos de seus mandatos ao longo das últimas décadas. Eles não fazem coisas de outro mundo? Hein? Que me diz? Han?
E Elvis não morreu. Nem John Lennon. Tampouco Michael Jackson. Tudo não passa de farsas bem armadas para que esses ídolos possam escapar das mordidas do imposto de renda ,escapar da encheção de saco dos fãs, escapar dos credores, escapar da mídia e irem viver suas milionárias vidas sob disfarce nas paradisíacas ilhas de Honolulu ou em recantos impensáveis no Terceiro Mundo. Prova disso é que dia desses cruzei com Jim Morrison ali na esquina da Júlio com a Dezoito, mas ele fez que não me reconheceu. O quê? A Júlio não faz esquina com a Dezoito? Tá, então não era o Jim Morrison. Vou passar lá de novo dia desses, para ver. Talvez fosse o impostor esse que há décadas se faz passar por Paul McCartney, porque o verdadeiro morreu ainda na época dos Beatles, como todos sabem.

E as peças do Shakespeare? Claro que não foi ele quem escreveu! Foram outros, se passando por ele. Afinal, ninguém queria ser chamado de gênio, e Shakespeare não poderia ser aquele gênio que ele é sozinho, entendem? Igual aos meus textos. Quem disse que sou eu quem os escreve? Já pensaram nisso? Ahá!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de dezembro de 2013)

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

A galinha a postos

Foi combinado que meu afilhado de um ano e meio passaria um dia inteiro conosco no sábado passado, enquanto seus pais aproveitariam a “folga” para cumprir algumas demandas no centro da cidade. Nós, por nosso lado, aproveitaríamos para nos encantarmos com as surpresas que o seu ininterrupto processo de descobertas do mundo proporciona.
Coube a mim, na véspera, providenciar a lista organizada por minha esposa, a título de “preparativos para a visita do João Vitor”. No supermercado, fui à caça de caixas de suco, já que João Vitor curte suco. Depois, fui à cata de banana, maçã e frutas em geral, uma vez que João Vitor já come de tudo com seus quatro dentinhos sorridentes. O iogurte veio em quantidade pensada para sobrar para os dindos, essa dupla de gulosos. O pacotinho de balões coloridos foi encontrado, após quilômetros de gôndolas rodados, na seção de festas, Marcos, seu asno. E uma caixa de cerveja bock. Para mim e minha esposa, claro, celebrarmos à noite o sucesso da empreitada.
Ao chegar em casa, mais lista de tarefas. A principal delas: deixar engatilhado o DVD com os filminhos da Galinha Pintadinha (aquela que usa saia e tem um monte de pintinha, sabe?), remédio eficaz para acalmá-lo em caso de início de choro inexplicável (depois descobrimos que a tal galinha e seu Galo Carijó andam perdendo popularidade para desenhos do Scooby-Doo e outros em que figurem “au-aus” diversos). Os choros não aconteceram, mas a Galinha até que ajudou na hora da naninha depois do almoço, pois que também ninguém é de ferro, muito menos um dindo quase cinquentão (eu, ao menos, dispensei a mamadeira).

Por fim, devia arregimentar os brinquedos. João Vitor, quando vem nos visitar, costuma trazer junto vários deles, e assim o fez. Mesmo assim, reuni os bichinhos de pelúcia que habitam nossa casa e que vêm à luz nessas ocasiões. Porém, tudo se mostrou desnecessário. João Vitor passou horas se entretendo mesmo foi com os balões e com um cestinho de prendedores de roupas. O cestinho, emborcado, era empurrado pela casa toda à guisa de caminhão desenfreado. Os prendedores ornamentaram, um a um, a cerca do terraço, a título de enfeite natalino. Na sua inocência infantil, João Vitor não depende de marcas, de moda ou de status para obter satisfação e alegria. Já a minha cerveja noturna não podia ser outra senão aquela da marca especial que eu mais aprecio, claro.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em  12 de dezembro de 2013)

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

No café da manhã

Eu não sei quem foi que inventou isso de inserir omelete e salsicha picadinha ao molho vermelho no buffet do café da manhã nos hotéis. Seja lá quem for o autor da ideia, merece um prêmio. Ou uma estátua. Ou, melhor ainda: merece um prato com uma pirâmide de omelete e salsicha picadinha ao molho.
Porque isso sou eu quando estou hospedado em algum hotel, no salão do café da manhã: lá venho eu equilibrando no pratinho, para a abertura dos trabalhos, uma pirâmide amarela de omelete coberta com uma espessa calda de molho vermelho, as rodelinhas de salsicha escorregando do pico da fortaia abaixo para irem se acumular ao redor da base, de onde serão pinçadas uma a uma com a ponta do garfinho até distribuirem seu sabor pelas reentrâncias de minha boca. Ahhh, que prazer iniciar o dia em terra alheia empanturrando o estômago com blocos de omelete ao molho vermelho das cintilantes rodelas de salsicha!
Mas não paro por aí. Desfilo garboso pelo salão, da mesa ao buffet, arrastando os chinelos e transportando copos de suco de laranja e depois de uva, taças de café preto e depois de café com leite, tigelas com iogurte e granola (nhamm, iogurte e granola no café da manhã no hotel!!), sem esquecer do pratinho de apoio para estacionar as fatias de mamão (bom para a digestão), de melão e de sei lá que outra fruta que se come nos cafés da manhã nos hotéis, mas que venha! Traz que a gente come, como sabiamente diz meu sogro.
Ah sim, e como esquecer-se deles, os croissants? Não é mais preciso atravessar as fronteiras até Uruguai e Argentina para deliciar-se com minicroissants crocantinhos. Basta hospedar-se em um hotel cujo cardápio do café da manhã seja minimamente maneiro para saciar o desejo por esse acepipe tão elegante, especialmente pela manhã. Tenho uma habilidade incrível em montar pilhas sólidas de croissants intercalados com pães de queijo quentinhos e equilibrar a estrutura até a mesa onde minha esposa me aguarda de boca aberta (não de fome, mas de espanto).

Toda essa festa sempre tem data para acabar, e se encerra com o fechamento da conta das diárias. Penso nisso aqui em casa esta manhã enquanto sonho com férias. Pego o cacetinho, corto ao meio, passo a margarina (putz, acabou a goiabada de novo), rosqueio a tampa do Nescafé, sorvo um gole do café preto e me ponho a sonhar com as pirâmides de fortaia e salsicha picadinha que me esperam no litoral...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de dezembro de 2013)

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

De olhos bem abertos

Talvez contar carneirinhos possa ajudar. Nas histórias em quadrinhos lidas na infância, o método sempre funcionava com Mônica, Cebolinha e Pato Donald, em suas noites de insônia. Eu não sofro de insônia, normalmente sou ótimo de cama, deito e durmo. Porém, dessa vez, já são três da madrugada e nada de cerrarem-se as cortinas de minha vigília. Aos carneirinhos, então.
Pelo que me lembre, é preciso arrebanhar uma centena de carneirinhos fictícios e reuni-los nas proximidades de uma cerca, ali posicionada para que saltem um a um por ela. Você, o insone, os vai contando ao saltarem e o segredo reside no fato de que, devido à repetição monótona do pulo dos carneirinhos, o sono acabe chegando sem que se perceba. Vamos lá. Imagino um prado, uma relva linda, um dia de sol, muito sol. Bem claro, muito iluminado. Não. Stop. Luz demais. Assim jamais conseguirei dormir. Essa carneirada que me desculpe, mas vão saltar é no escuro mesmo.
Mudança de cenário. Ainda o mesmo prado e a mesma relva, mas agora à noite. No céu, lua e estrelas. E apague aquele grilo, que o cri-cri dele também não vai me deixar dormir. Tá mas agora desgarraram-se dois ou três carneirinhos. Não posso fazer isso com apenas 96 ou 97 bichos. É preciso 100 exatos, porque vai que o sono se esconda exatamente no salto do 99º. Alguém os traga de volta, por favor. Foram certamente para lá, naquele matinho, junto ao qual passa um córrego. Aliás, boa ideia, também tenho sede.
Levanto da cama e vou à cozinha, beber água. Três e meia da matina e a madrugada corre livre, me deixando aqui, desperto e sozinho. A coisa vai mal. Mal para mim, mas não para minha esposa, que há horas exercita o sono dos justos naquela cama, de forma invejável. Até parece provocação.
Volto para o leito, esperançoso de que o sono da esposa possa ser contagioso. Vou encostar meu pé no pé dela, e roubar-lhe sono. Deito-me, meu pé procura o pé dela sob o lençol, e o encontra. Encosto e, de imediato, ela se mexe, dá um pulo, salta da cama, vai ao banheiro, retorna um minuto e meio depois, se deita e retoma o sono. Fico pensando se de fato ela chegou a acordar para fazer isso tudo.

Sou acometido por grande inveja. Insônia e inveja. Insônia, inveja e angústia. Inveja, angústia, insônia e cansaço. Insônia, cansaço, invezzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de dezembro de 2013)

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

A saída do viking

Sempre que tento sair à francesa, acabo saindo à viking mesmo. Posso estar em uma reunião, em um debate, em um encontro, em um seminário, na igreja, em uma festa, num almoço comunitário, no que quer que seja. Basta eu decidir abandonar o recinto de forma discreta, sem chamar a atenção, para que entre em cena meu aplicativo especial da desastrança e subverta por completo os planos.
Ocorre de tudo. Levanto e deixo cair um copo, dou a volta na cadeira e piso no pé de alguma senhorinha, caminho dois passos e esbarro numa vidraça, minha pasta abre e despeja todo o conteúdo no chão, tropeço em algum salto alheio, meto o cotovelo em costas que não me pertencem, dou de testa na quina da janela, enfio o dedo no saco de pipoca do esfomeado, verto vinho na toalha, chuto baldes, piso na casca da banana, cabeceio o lustre, esmago o rabo do gato, derrubo berços, trinco o aquário, rasgo calças, sou o pandemônio instalado. É como se carregasse um menir às costas e o fosse balançando desgovernadamente para os lados ao sabor da inoperância que comanda meus membros.
Elefante em loja de cristais é fichinha se comparado ao mastodonte que se apodera de meus movimentos. Cada perna e cada braço passam a agir em descompasso e desobedecem ao meu comando, inutilmente focado em fugar do recinto sem que as atenções recaiam sobre mim. Mas recaem, claro. Quero ser discreto, mas meus atos desgovernados traem o manto de invisibilidade que gostaria que me envolvesse nesses momentos. Ao querer me retirar, danço a dança das avalanches. Ao invés de simplesmente sair, me desmorono para fora. Todos percebem meu ato de retirada e sei que serei alvo de cobranças amanhã.
“Não ficaste até o fim, né?”. “Você saiu antes”. “Que houve que não permaneceu até o final, não gostou?”. “Ah, perdeste o melhor ontem”. “Na próxima, vê se fica”. Recebo as admoestações resignado com o fato de que, daqui em diante, talvez o melhor mesmo seja organizar minhas atividades de maneira a evitar ao máximo a necessidade de retiradas estratégicas antes do término de qualquer evento em que eu esteja envolvido. Desafio difícil para quem, como eu, prefere preâmbulos a posfácios.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de novembro de 2013)

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Esforço humano

Tenho convicção de que a diversidade é o maior patrimônio da espécie humana. Não só não somos iguais uns aos outros, como é exatamente o conjunto de nossas qualidades e defeitos individuais que nos torna seres únicos. Aqueles que amplificam suas qualidades positivas passam à posteridade (tanto os famosos quanto aqueles restritos a seus círculos pessoais) como seres iluminados, que vieram para aprimorar e transformar para melhor o ambiente em que atuam. Já os que se dedicam a exacerbar seus defeitos e maus atributos acabam se caracterizando no campo oposto, ocupado pelas pessoas que fazem do mundo um lugar pior para se viver.
Regras de convívio, códigos morais e de ética, leis e convenções são criados justamente para guiar os indivíduos no caminho visto como o “do bem”, a fim de que a convivência humana possa ser pautada pela fraternidade. Missão inesgotável enquanto existirmos como espécie composta por seres individualizados, cada um representando um universo complexo a coexistir com os demais, tentando equilibrar diferenças, vontades e necessidades.
Sorte nossa quando nos deparamos com seres que optam por fazer a diferença pelo lado positivo de suas personalidades. Azar o nosso quando topamos com os signatários do contrário. Sorte maior ainda quando nós mesmos decidimos moldar nossas biografias a partir das escolhas do primeiro grupo.
Penso nisso nesse período em que tive de recorrer às benesses da medicina para detectar e sanar um inesperado problema de saúde que resolveu me acometer da noite para o dia, sem aviso prévio. Tive sorte, no meio do pesadelo, em cair nas mãos de médico competente, disponível, humano e comprometido com as nuances de sua profissão. Tive sorte porque poderia ter sido diferente, já que não basta um diploma para que haja garantia de bom atendimento. Sabemos que existem médicos e médicos, assim como há jornalistas e jornalistas, empresários e empresários, escritores e escritores, pedreiros e pedreiros, motoristas e motoristas, cabeleireiras e cabeleireiras, pessoas e pessoas.

O que faz a diferença não é o diploma, nem a especialidade, nem a profissão, nem o sobrenome, nem a idade, nem a conta bancária, nem a altura ou a cor dos olhos. O que faz a diferença é o comprometimento de cada um em ser gente que colabora para melhorar a moral da espécie humana. Isso se faz no dia a dia e não requer esforço sobre-humano. O esforço requerido é apenas o humano mesmo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de novembro de 2013) 

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Beijo na testa

A certa altura na tarde daquele domingo, Mariana cansou de correr defronte às vitrines das lojas situadas naquele lado do shopping e resolveu assentar-se em uma das cadeirinhas de plástico dispostas por ali, do tamanho dela. Havia cinco ou seis mesinhas enfileiradas, cada qual com seu jogo de quatro cadeirinhas de cores alternadas, e Mariana escolheu uma verde para recostar o corpinho exausto de tanto gastar energias.
Sentou-se direitinho, cruzou as mãozinhas e retribuiu largamente o sorriso que lhe endereçavam os pais sentados poucos metros adiante, a uma das mesas da praça da alimentação, nas cadeiras grandonas do tamanho deles. Depois de intercalar durante mais de meia hora atividades como corridas aceleradas para tirar os pais da inércia, gritos alegres inesperados para enchê-los de satisfação e distribuir beijinhos com as mãos a todos os passantes para provar aprendia o que lhe era ensinado, agora Mariana requeria alguns minutos de descanso, enquanto planejava o que fazer assim que resolvesse saltar da cadeirinha, dali a pouco.
Mas sua atenção foi desviada para a mesinha ao lado, na qual se colocava um garoto cerca de um ano mais velho do que ela, que logo descobriu chamar-se Gael. O rapazote encaixou-se em uma das cadeirinhas, uma azul, e nitidamente tentava chamar a atenção de Mariana, apesar de quase derretendo de vergonha. Quando supôs que ninguém, exceto ela, estava vendo, Gael ousou fazer um gesto com a mão para que Mariana viesse sentar-se à sua mesa, o que ela compreendeu imediatamente e não hesitou em ababdonar sua cadeira verde para ir se posicionar ao lado de Gael, em uma branca.

Gael observava-a de canto de olho sem dizer nada, ao passo em que Mariana estendeu-lhe o bracinho esquerdo, exibindo a pulseirinha que, com muito orgulho, mostrava a todos os que se aproximavam dela desde manhã cedo, quando a mãe lhe colocara o adereço. Gael enrubesceu e encolheu-se todo, enfiando o pescoço para dentro da gola da camisa, sem saber como reagir agora que o convite para a aproximação fora surpreendentemente aceito. Para se livrar da situação de maneira honrosa, tascou de repente um beijo na testa da menina e saiu correndo ao encontro de seus próprios pais, derrubando a cadeirinha em que se sentava e deixando Mariana com cara de susto, sozinha, na mesa. Meia hora depois, ambos já haviam esquecido o episódio, prontos para seguirem, cada um, palmilhando atentos os desafios propostos por suas vidas em início de jornada.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de novembro de 2013)

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

A hora do polvo

Existem períodos na vida em que você se sente como se fosse um polvo, o par natural de mãos transformado em oito tentáculos imaginários que escapam do seu controle, parecendo terem vida própria e agindo cada um deles independentemente de sua vontade. A cintura como que se alarga sem aviso prévio, os pés se transformam em patas de ornitorrinco e pronto, a receita está completa para que você vire um desastre ambulante durante certo lapso de tempo. Quanto mais curto, melhor e menos pernicioso para si mesmo, para os que o cercam e para o ambiente que o envolve.
Situação dessas pairou sobre mim numa noite de sábado, quando decidi receber pessoas para jantar em minha casa. As coisas iam seguindo tranquilamente o roteiro imaginado até que, de repente, sem nenhum aviso, o deus dos desastrados se esgueirou pela fresta da porta de entrada e se instalou em meu corpo, fazendo surgirem os tentáculos de polvo, as patas de ornitorrinco e a cintura de hipopótamo. Foi o que bastou para, em questão de minutos, eu me botar a aprontar uma sucessão inimaginável de gafes.
Primeiro foi a garrafa de espumante, que desavisadamente foi colocada no congelador, coisa que não se faz, mas foi feita e resultou na consequência danosa: a rolha emperrou teimosamente e tive de lançar mão (tentáculos) a um método nada ortodoxo para sacá-la fora utilizando uma chave inglesa. Tentáculos são mais fortes do que mãos humanas e o golpe desferido arremessou a rolha ao teto, machucando o gesso novinho da cozinha, o que fez minha esposa exclamar “oh”.
Na sequência, por imaginar que o cunhado preferia cerveja, rodopiei com a cintura de hipopótamo rumo ao congelador equipado com um excepcional gancho para segurar latinhas, no qual procurei encaixar uma delas e, errando a mira, furei o produto, irrigando cerveja por toda a sala, cozinha, piso e cunhado, que por sua vez exclamou o seu “oh”. Para completar, na hora do jantar, ao tentar pinçar um suculento pedaço de filé para meu prato, na volta do cotovelo esbarrei em meu cálice de espumante e verti-o na toalha nova, banhando a mesa, as cortinas da sala e o corpo inteiro do afilhadinho de um ano e meio que se postava ao meu lado. Nesse momento, o “oh” foi em uníssono (exceto a criança, que ria).

Segundo me ensinaram meus familiares, esse deus dos desastrados é facilmente exorcizado com boas risadas e alma leve. Sorte minha. E deles.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de novembro de 2013)

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Olhar nublado

Foi minha mãe quem me ensinou a decifrar nuvens. O segredo ela ia revelando a mim e à minha irmã naquelas vezes em que viajávamos de carro em família de Ijuí a São Borja a fim de visitar os avós que lá moravam. O trajeto se afigurava intolerantemente comprido para duas crianças acostumadas a passar as tardes brincando ao ar livre e era preciso botar a funcionar a imaginação a fim de nos distrair no banco de trás do Corcel.
Para isso, nossa mãe, municiada com uma inesgotável fonte de criatividade, propunha brincadeiras as mais diversas durante o trajeto. Uma das que mais nos distraíam era a de vasculhar as nuvens para detectar formas nelas escondidas. Bastava calibrar um pouquinho o olhar, dirigindo-o para as alvas e volumosas formações estacionadas nos céus dos vastos campos que ladeavam a estrada, que as figuras começavam a aparecer. Eu avistava o Mickey de perfil e logo de pronto, mais acima, minha irmã via o Pateta. Mais para a direita, aquela nuvenzinha solitária em poucos segundos se revelava a clara imagem de um sapato. Dito isso, custava nada para alguém enxergar (exceto meu pai, lógico, que previdentemente matinha os olhos atentos à estrada), saindo da nuvem, a imagem de um homem de chapéu e cachimbo.
 Assim vencíamos dezenas de quilômetros antes de enjoarmos da brincadeira e tornarmos a ficar inquietos. Sem perder tempo, lá vinha a mãe de novo, propondo outro entretenimento: contar carros! Nesse jogo, cabia a cada um de nós (agora, o pai se permitia participar) escolher uma marca de automóvel (nos anos 70 não havia muito mais do que umas dez circulando pelas estradas brasileiras) e passar a contar quantos exemplares cruzavam no sentido contrário. Vencia quem contasse mais Opalas ou Variantes ou Gordinis até o final da jornada. Fusca não valia, pois havia demais e quem o escolhesse venceria o certame familiar na certa.

Observando agora o mundo daqui do alto do prédio onde moro, vejo nuvens no céu acima e automóveis cruzarem acelerados pelas ruas logo abaixo e me ponho a pensar sobre o que a adultice acaba fazendo com a gente. Hoje as nuvens me trazem o receio da chuva e, os carros, o medo de acidentes. Mudaram as nuvens? Os carros? Mudei eu ou todo o meu mundo? Temo que talvez nem mesmo a imaginação de minha mãe baste para solucionar essa inquietação do presente.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de novembro de 2013)

Quem quer dinheiro?

Pronto, agora não tem mais nem choro nem vela. Desde metade da semana passada, acabaram-se todos os prazos que a Caixa Econômica Federal havia concedido para que o felizardo sortudo paranaense de Ponta Grossa, apostador da Mega-Sena, retirasse seu prêmio de 22,9 milhões de reais. O sorteio correu no dia 10 de julho e as apostas têm validade de 90 dias. O prazo se encerrava em 10 de outubro, mas a CEF deu uns dias a mais para resgatar o valor, até 16 de outubro, devido à greve dos bancários.
Mas apesar de todo o auê feito pela imprensa, ainda alguns dias antes de vencer o prazo legal, não teve jeito de o apostador sortudo se apresentar para retirar o prêmio. E não é qualquer prêmio, convenhamos. Arredondemos, para fins de crônica, o montante para 23 milhões de reais. Baita grana, hein? E me pergunto, e pergunto a você também, leitor: o que faz um sujeito negligenciar assim, dessa forma quase acintosa, o resgate de um valor de tamanho vulto?
Sim, porque não teve jeito. O sujeito não foi porque não foi e não foi mesmo lá na agência da Caixa pegar a grana. Ele não quer os 23 milhões de reais. Não lhe fazem falta esses trocaditos. Será que foi o Eike Batista quem fez a aposta? Não, claro que não. O Eike Batista de alguns meses atrás, multibilionário, até poderia se encaixar no perfil do sortudo negligente. Mas o Eike Batista atual (e real), quebrado e afundado em dívidas, iria correndo conversar com o gerente, bilhetinho na mão, para meter nos bolsos os milhõezinhos esses.
Não foi o Eike Batista, então. O mistério permanece. Quem além do antigo Eike Batista seria tão rico a ponto de esnobar o acréscimo de um punhado de novos milhões em sua conta? Não consigo imaginar nomes. Mas e se o sujeito apostou e morreu? Pode ser, é uma possibilidade plausível. Para fins de efeito de crônica, imagino um velhinho aposentado que há anos faz a sua aposta e confere toda a semana os números que, se sorteados, solucionariam para sempre as agruras de sua vida. E quando finalmente a sorte lhe sussurra os números da mudança, ele morre de mal súbito dois dias antes do sorteio.
Enterrado em vala comum, só deus sabe onde é que meteu o bilhete. A vida real tem dessas coisas. Às vezes ela é pródiga em abortar sonhos.


 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de outubro de 2013)

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Revogaremos a lei

Vamos lá, vamos lá, vamos nos mexer e descruzar esses braços. Basta um punhadinho dumas trocentas mil assinaturas para encaminhar, via iniciativa popular, um projeto de lei a ser apreciado pelo Congresso Nacional. Feito isso, com mais um pouquinho de pressão, a gente altera as leis que não nos são satisfatórias.
Eu já estou me mexendo e dei inicio a um abaixo-assinado recolhendo adesões à minha proposta de revogar a lei que mais ando detestando ultimamente: a da gravidade. A gota d´água que transbordou meu copo de paciência pingou anteontem de manhã, quando eu me transtorcia para reinstalar um forno elétrico enquanto ao mesmo tempo encaminhava a instalação do forno de microondas (como todo bom cidadão desse estimulante século 21, preciso de todos os tipos de forno existentes no mercado, como pode-se bem perceber). Escorava o elétrico com a cintura enquanto dava-lhe as costas para pegar o de microondas que estava sobre a mesa quando, nesse contorcionismo de vai-vem corporal, o elétrico esquivou-se não sei como da longa e avantajada superfície de minha barriga e veio estatelar-se com estrondo e determinação contra o chão que dele distava não mais que um metrinho.
Mas o suficiente para fazê-lo em pedaços e injuriar meu pé que ainda hoje, ao narrar o feito, lateja ali embaixo. Culpa de quem? Da lei da gravidade, essa bandida puxadora de tapetes metafóricos e concretos. Culpa dela, também (foi o que me pus a refletir enquanto juntava cacos, peças e partes), o processo irreversível de queda da barriga de certos mamíferos bípedes portadores de sedentarismo crônico... da queda de cabelo em mamíferos similares em idades que se botam a superar o tempo... da desfiguração e queda do formato altivo e principesco dos seios das fêmeas da espécie com o andar do mesmo tempo... enfim, sem mais delongas, revoguemos a lei e experimentemos um novo e estimulante período de existência no qual haveremos de flutuar mais levemente as nuances de nossas existências.

Feito isso, podemos vir a pensar sobre o que fazer com a tal da passagem do tempo, citada por tabela na descrição anterior dos malefícios dessa já cansativa lei da gravidade, que nada mais fez senão lançar à fama o Issac Newton com aquela maçã que lhe melou a cabeça. Mas já estou a cair em devaneios. A gravidade, outra vez...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de outubro de 2013)

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Forte Apache e Zorro

Não preciso de convocação e nem de intimação com dedo em riste. Nada disso. Quando a ordem do dia consiste em rumar para uma loja infantil escolher brinquedo para dar de presente ao afilhado, dispenso ultimatos e já estou no carro, motor ligado, cinto colocado, mãos no volante.
Vamos, vamos, que sou fissurado por loja de brinquedos. Sinto-me como que mergulhando em um país das maravilhas toda vez que entro em algum desses estabelecimentos, distanciando-me da crueza do mundo adulto que parece ser represado do lado de fora daqueles domínios ao custo de nossas infâncias hoje perdidas. Perdidas em termos etários, mas não necessariamente sufocadas devido às responsabilidades inerentes à vida adulta. A criança que fui segue habitando em mim ao longo de minha existência, e ela exulta nesses deliciosos momentos que antecedem datas comemorativas em que o afilhado merece presentes.
Para mim, o presente é justamente poder passear pelas gôndolas me encantando com as infinitas possibilidades de abertura de mundos mágicos e lúdicos geradas pelos inúmeros brinquedos que nelas repousam, cada um fazendo silenciosamente o seu apelo para ser levado junto. Nos meus tempos de criança, lá em Ijuí, essa magia se materializava sempre que meus pais me levavam para lojas como a Ki-Presentes, A Boa Compra ou a Livraria Cultural, para escolher algum brinquedo. Tive uma infância repleta deles, dos quais lembro com especial carinho do Forte Apache; dos bonequinhos dos personagens de Walt Disney e da Turma da Mônica; da fantasia do Zorro com máscara, capa e espada; do revólver de espoleta com o qual caçava índios imaginários (hoje corretamente relegado à condição de brinquedo politicamente incorreto); do Estrelão, campinho de madeira compensada sobre o qual jogava futebol de botão; do teatrinho de fantoches com o qual aprendia a inventar histórias (mania que grudou em mim para sempre e que hoje pratico sob outras roupagens) e tantos outros.
Nada melhor para a construção de uma vida positiva do que uma infância feliz permeada de brinquedos. Sorte minha. Sorte a de meu afilhado. Pena que essa sorte ainda não seja a realidade de todos. Mas sorte é algo que a sociedade consegue mudar sempre que deixa de brincar com coisa séria, e a infância dos cidadãos é uma delas. Ah, o Dia das Crianças está aí!
 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de outubro de 2013)

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

O belo nas chaleiras

O que os norte-americanos não conseguem compreender nos nossos jogos de futebol é a plasticidade estética que resulta da movimentação dos dois times, ao se alternarem nas funções de ataque e defesa. É bonito assistir a uma partida de futebol, especialmente quando bem jogada e de boa qualidade técnica, justamente pelo encanto visual que provoca o movimento rítmico dos jogadores dos dois times pelas dimensões do gramado, movimento esse pautado a partir dos deslocamentos da bola, esse objeto que todos sempre queremos ver balançando as redes da equipe adversária.
Por não compreenderem esse aspecto sutil e quase subjetivo do esporte, é que os norte-americanos, via de regra, bocejam e sofrem de tédio frente às partidas de futebol e não entendem como podemos vibrar e sairmos satisfeitos até mesmo de um confronto que, após 90 longos minutos, resulte em um empate de zero a zero. O americano quer resultado, resultado imediato e, de preferência, resultado abundante. Daí seu fascínio por esportes como o basquete, que em apenas uma partida o seu time do coração é capaz de fazer um escore superior a 100 pontos. “Isso sim, é emoção”, dizem eles.
Para espanto de alguns, eu consigo detectar essa plasticidade bela de movimentos técnicos até mesmo no boxe, esporte, aliás, de minha predileção (na condição de mero espectador, óbvio). Nada de UFC ou MMA, mas sim o velho, bom, técnico e leal boxe, com suas luvas, golpes somente com os punhos e acima da linha da cintura. Futuramente, no divã do analista, assim que decidir que devo procurar um, descobrirei que esse meu fascínio deriva de alguma necessidade de compensação mental das agruras do cotidiano por meio do voyeurismo à violência consentida e regrada desenrolada sobre um ringue. Vá lá, que seja. Enquanto isso, levanta a guarda, cara de calção amarelo!
Ultimamente, por culpa dos canais de tevê a cabo que trazem o mundo todo para dentro da sala da minha casa, dei de ficar viciado em assistir a partidas de curling, aquele bizarro jogo praticado por suecos, noruegueses e outros povos nevados, no qual utilizam chaleiras deslizantes como se jogassem bocha. Adoro! Sei todas as regras e torço que me vergo no sofá por finlandeses ou ucranianos de nomes esquisitos. Plasticidade, meu amigo. Tudo não passa de uma simples questão estética.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de outubro de 2013)

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

No frigir dos ovos

Dia desses, flagrei-me sem ovos. Horrível isso, de ver-se desprovido de ovos. Abri a geladeira e a crua realidade se descortinava ali dentro: nem um ovinho sequer, nem mesmo um pequeninho de codorna, para salvar a pátria.
Esse tipo de situação é impensável na vida de um homem que se preze: estar sem ovos. Impede que você salve o jantar logo mais à noite, quando a esposa chega do trabalho, produzindo uma omelete (que ela devora faceira, chamando de fortaia), ou surpreendendo-a com panquecas recheadas de delícias, ou ainda, se a inspiração for do tamanho da fome, com um elegante crepe (mas quando você está sem ovos, até mesmo um singelo ovinho frito figura como a salvação da lavoura).
Isso não podia continuar assim, de forma alguma. Onde já se viu, ficar sem ovos! Suspendi a produção do trabalho que estava em curso, peguei o carro e fui até o mercadinho ali perto de casa, onde o casal de proprietários me conhece e a simpatia está na alma do negócio, motivo principal que os faz terem a mim como cliente, especialmente nesses momentos cruciais que exigem solução rápida. “Boa tarde, Seu Fulano, tem ovos?”, já entrei, perguntando. Diferentemente de mim, o dono do mercado tinha, sim, ovos, o que revelou-se um verdadeiro alento.
Fui lá no canto que ele me indicou com o dedo e pus-me a escolher belos ovos brancos de galinha, colocando cuidadosamente um por um no saquinho plástico, pois que ali os ovos são vendidos a granel e você pode comprar até números ímpares de ovos, ao invés das restritivas caixinhas de sempre, com seis ou 12. Eu queria cinco ovos, e fui pondo ali no saquinho, um ovo, dois ovos, três ovos, quatro pletch! O quarto ovo sei lá o que deu nele, mas aproveitou um segundo de distração minha e saltou do gancho de meus dedos com o qual eu o sustentava, rodopiando no ar e indo se estatelar contra seus demais irmãos que tranquilamente se acomodavam no fundo do saquinho.

Quebrei a ovaiada toda e fiquei ali, com cara de tacho vazio. Felizmente, o dono do mercadinho, revelando-se um expert em ovos e em fidelizar clientes, saiu de trás do balcão sorrindo, disse que aquilo não era nada, pegou para mim outros cinco ovos e acomodou-os intactos em outro saquinho, sem nem querer saber de me cobrar pela omelete instantânea que eu me pusera a fazer ali na sua venda. De noite, vocês tinham de ver o dó que me dava de quebrá-los para a fortaia...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de setembro de 2013)

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Ô de baixo!

Sempre me perguntava a razão que faz os trabalhadores da construção civil falarem tão alto uns com os outros ao longo dos dias em que estão envolvidos na tarefa de erguer novos edifícios e residências nessa nossa pujante Caxias do Sul, há anos transformada em um imenso canteiro de obras. Além do ruído intenso proveniente dos afazeres típicos decorrentes da construção (você não martela um tijolo de mansinho e nem corta chapas de aço com o poder silencioso de sua mente), existe a conversação entre os pedreiros e mestres-de-obras, invariavelmente entabulada aos brados retumbantes, a ecoarem por entre os ambientes de cimento ainda vazios de habitantes. Por quê?
Ora, basta pensar um pouco para decifrar o enigma. Eles falam alto para serem ouvidos uns pelos outros, ora. Como fazer Pedro, que está a erguer a parede de um banheiro no quinto andar, para se comunicar com Wellington, que passa massa corrida nas paredes do primeiro pavimento, pedindo a ele que, quando subir, traga junto a espátula dourada, se não for por meio da elevação do tom de voz às alturas? E como comentar dali do terraço os lances bola-murcha e bola-cheia dos jogos do final de semana quando o Robinson atulha o carrinho-de-mão com sacos de cimento lá no térreo, o Anderson descarrega a areia que chegou de caminhão ali na esquina e o Jeferson alinha uma parede no sétimo, senão aos gritos?
A construção inteira é o escritório deles. Estivessem todos ao mesmo tempo realizando tarefas na suíte do casal na cobertura, ninguém gritaria, mas não é assim que a coisa funciona. E querer que não se comuniquem justamente em nossa tão exaltada Era das Comunicações seria um contrassenso repressivo démodé, deixemos disso.

Eu sou do tempo em que as redações de jornais, repletas de máquinas de escrever, aparelhos de fax e de telex e telefones barulhentos, faziam com que a jornalistada passasse falando alto entre si, com os editores, com os revisores, com os diagramadores e repórteres, e estes com suas fontes, e mesmo assim escrevíamos e nos concentrávamos. A informatização e o advento dos fones de ouvido transformaram as redações em ambientes sisudos, silenciosos e insípidos, iguais a salas de espera. Espero que jamais o mesmo aconteça nos canteiros de obras, nos quais a vida humana ainda se faz notar por meio da palavra. Em alto e bom som.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de setembro de 2013)

domingo, 15 de setembro de 2013

Sinuca tecnológica

Tá, e agora? O leitor de textos de meu computador desconfigurou, não consigo abrir os arquivos já escritos e tampouco produzir textos novos. E não são poucos os textos antigos que preciso abrir para pesquisar ou para dar sequência ao trabalho, e também não são poucos aqueles que preciso escrever hoje para atender às demandas de meu ofício, como esta crônica aqui do Pioneiro. O que se faz numa hora dessas?
Primeiro, grita-se. Pode ser mentalmente, mesmo, afinal, não vale a pena passar recibo de louco a toda a vizinhança e atormentar a esposa que lê tranquila o jornal no andar de baixo. Grita-se contra a tecnologia moderna, contra a invasão da informática no nosso cotidiano, contra a ditadura dos computadores, contra os políticos corruptos (que sempre é saudável aproveitar para, já que se está gritando mesmo, incluir os políticos corruptos na jogada), contra a alta do preço do tomate e os buracos nas estradas.
Desferidos os devidos gritos mentais, pode-se passar para a fase dois, que é a postura da vítima. “Por que isso acontece comigo? Por que eu? Por que justo hoje? Eu não mereço. Tenho tanta coisa para fazer”. Depois, recomenda-se entrar logo na etapa da nostalgia pelos velhos tempos, para aplacar um pouco o espírito. Lembrar das velhas e boas máquinas de escrever (alternativa disponível apenas para quem tem mais de 35 anos de idade), que, quando davam xabu, bastava trocar o rolo de fita e seguir esmurrando as teclas e parindo textos e mais textos.

Como nada disso resolve coisa alguma, passadas todas essas etapas, o melhor é chamar um técnico (recomendável), ou fuçar no computador para tentar resolver a coisa por conta (alto risco) ou escrever tudo a mão e enviar por pombo-correio para a redação do Pioneiro (funcionou, não?). Porém, desesperar, jamais.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de setembro de 2013)

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Beijo nas Alturas


Entro no elevador no subsolo das garagens, preparado para um longo trajeto até o décimo-primeiro andar. Não durará mais do que 40 segundos, eu sei, mas sabe como são esses elevadores: cubículos estreitos, lacrados, desagradáveis, parece que concebidos justamente para que não despertem em ninguém a mais remota intenção de permanecer ali dentro uma fração de segundo sequer além do necessário. Por isso, a vontade, sempre, de que a viagem seja curta, sem paradas no meio do caminho.
Mas pronto. É só pensar nisso que o danado estaciona já no térreo, para receber vizinhos rumo a seus aposentos. As portas então se abrem e revelam as identidades de quem me fará companhia ao longo dos próximos instantes: trata-se daquele jovem casal do sexto andar, acompanhado pelo filhinho de cerca de dois anos de idade, que entra alegremente acavalado sobre o pescoço do pai. “Oi, como vão” daqui; “olá, tudo bem” de lá e eles vão entrando, ela com as sacolas de compras, ele fazendo malabarismos com o garoto, que lhe escala o corpo a ponto de ficar de cabeça para baixo um instante, a dar gargalhadas, eu segurando a porta aberta enquanto eles se acomodam, e vamos em frente.
O elevador retoma seu movimento metálico para cima, a suavidade intercalada com alguns estalos sempre perturbadores, e o silêncio entre os adultos se instala como de praxe nesses ambientes, apenas quebrado pela festa que o menino faz com o pai. Recebe mordidinhas na barriga e gargalha, olhando para mim em busca de um sorriso conivente que sua inocência induz a almejar. Sorrio-lhe de volta, embalado pela sua alegria infantil e desmedida. Desnecessário haver medidas para a alegria quando se é criança feliz em família, voltando para casa à noite com os pais, brincando dentro de um elevador na presença de um estranho.
A caixa semovente estaciona no sexto andar e abrem-se automaticamente as automáticas portas, convidando-os a saírem. Ela sai primeiro, com as sacolas, seguida pelo marido, que se despede de mim com um “boa noite” e diz ao filho: “dá tchau para o titio”. Ato contínuo, o menino leva a mãozinha à boca, tasca um beijo e o atira para mim, acertando em cheio minha alma, que não resiste e se debulha em uma gargalhada infantil como há tempos eu não dava. Espontaneidade de criança é coisa altamente contagiosa.
 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de setembro de 2013)

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Marte é logo ali

Pois é, o pessoal agora quer ir morar em Marte. Uma empresa espacial holandesa abriu cadastro para elencar interessados do mundo inteiro em se transformarem em colonizadores de nosso vizinho planeta rubro. A ideia é organizarem expedições interplanetárias que levarão os cosmonautas até lá em uma viagem de sete meses de duração. E só de ida. Ou seja, vão e nunca mais voltam a pisar na Terra natal.
Mais ou menos parecido com a situação que viveram, mais de um século atrás, os imigrantes europeus que largaram suas vidas no Velho Continente, se enfiaram em navios por alto-mar em longas viagens e vieram colonizar a América, jamais voltando a contatar seus lugares de origem, em uma época em que não existiam facilidades como telefone, internet, celular, ipad, facebook, Skype, essas tralhas. De qualquer forma, aqueles imigrantes permaneceram na superfície de nosso planeta, por mais que tenham se deslocado. Já esses neo-migrantes almejam se tornar extraterrestres de carteirinha, os primeiros que teremos certeza de que existem. Ousados, não?
Se forem mesmo para lá, se tornarão ETs por adoção e finalmente passaremos a ter certeza de que haverá vida em outro planeta. Se inteligente, não sei, mas vida. E os filhos deles se transformarão nos primeiros marcianos de verdade. Quando a gente pensa que Marte (a julgar pelos dados enviados de lá pelas sondas lançadas por nós de cá) é uma terra inóspita, quente pra chuchu, desértica, sem água (há controvérsias), sem vegetação, sem vida animal, sem shopping centers, sem rede wi-fi, sem estádios de futebol, sem chuva e nem neve, sem novela das nove, sem Carol Portaluppi, sem farmácias... é de impressionar o fato de mais de 200 mil pessoas terem se inscrito como voluntárias (brasileiros, inclusive).

Bom, mas pensando bem, também vão escapar do trânsito engarrafento, dos buracos nas estradas (lá, crateras não são eufemismos), da corrupção generalizada, dos alarmes que disparam de madrugada, das narrações do Galvão Bueno, das filas nos supermercados... Fora uma que outra chuvinha de meteoros e a possibilidade de crescerem antenas e de se ficar verde (marcianices, sabes?), começo a achar que poderá mesmo haver mais ganhos do que perdas. Não fosse esse meu medo de alturas, até que me habilitava...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de setembro de 2013)

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Tá, e a neve?


Encontrei parentes e amigos no final de semana passado em minha terra natal, Ijuí, distante 400 quilômetros de Caxias do Sul. A sensação do encontro eram as fotos e filminhos que fizemos aqui, pouco mais de duas semanas atrás, quando a Serra foi brindada com uma das mais significativas nevadas de sua história recente.
Os telhados branquinhos, as calçadas congeladas, as copas das árvores nas ruas parecendo um desfile de pinheiros de natal que só se vê em filmes europeus e norte-americanos. As pessoas encasacadas, enluvadas, entoucadas e enrodilhadas em cachecóis a construir bonecos de neve na frente de suas casas e a brincar no alvo presente da natureza, esquecendo o frio que nos encarangava as almas.
Pois é, isso tudo há tão pouco tempo, e já aparentemente tão distante em nossas memórias, especialmente nesses primeiros dias de setembro que agora nos empurram para o extremo oposto e nos fazem pensar em camelos cruzando o deserto do Saara debaixo de um sol esturricante. Olho para fora da janela e vejo um céu límpido, azul, pontilhado de raras nuvens. O termômetro da sala bate na casa dos 24 graus centígrados (positivos, né), e parece desconfortável ao lado da grossa jaqueta que ainda pende esquecida no encosto da poltrona, pronta para ser vestida a qualquer momento a fim de enfrentar o frio, a chuva, o vento, o inverno, que até ontem ainda nos fazia reclamar e escrever crônicas evocando a visita do sol. Eis ele aí, pois, a pedidos.
Saltamos de um frio de fazer gemer urso polar em uma semana para esses calores de derreter dromedário poucos dias depois, sem que haja tempo para uma transição paulatina que nos permita irmos saindo dumas e entrado noutras com mais vagar. Até o clima parece ter decidido entrar em sintonia com esses tempos modernos criados pela sociedade, nos quais a correria, a transição ultrarrápida, a impermanência das coisas se transforma em regra geral. Neve de madrugada, eclipse de lua com Vênus de noite, calores desertificantes logo ali adiante, chuva e mais chuva daqui a pouco... Todas as opções de clima, temperatura e pressão disponíveis no menu, a fim de satisfazer a todos os gostos. Até a meteorologia parece estar ingressando na era da customização de serviços.

Depois estranham quando uns tomam chimarrão em trajes de praia em plena neve. Por pouco, não fui um deles...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de setembro de 2013)

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Reflexão eclipsada

Existem dois tipos de finais de semana: aqueles em que você só descansa e aqueles nos quais você se cansa. Em sendo finais de semana, claro que, em essência, são sempre prazerosos, mas o último enquadrou-se, para mim, na segunda categoria, uma vez que foi composto por uma agenda intensa de atividades que incluíam duas longas viagens de automóvel pelas nossas selvagens estradas, pouco sono, uma festa de aniversário, o revisitar de parentes, almoços e jantares compartilhados e assim por diante.
Fui conseguir baixar a bola, relaxar e descansar mesmo somente a partir do entardecer de domingo, quando enfim pude calçar as chinelas, lançar-me ao sofá da sala, esticar as pernas para cima do pufe e começar a folhear os jornais sabatinos e dominicais. Lá pelas tantas deparei com uma notinha que me chamou a atenção. Dali a poucos minutos, por volta das 19h, seria possível visualizar no céu, na altura do poente, um raro fenômeno astronômico: a lua eclipsaria, durante alguns minutos, o planeta Vênus, oferecendo um espetáculo bonito e único caso a noite estivesse bela e clara.
Larguei o jornal, ejetei-me do sofá e dirigi-me à janela da sala para constatar se a noite estava bela e clara. Pois estava, e arrebanhei a família para descermos do prédio e irmos para a calçada a fim de observar o eclipse diferente. Dito e feito, lá estava a lua, no formato crescente, uma unha de luz rasgando o escuro do céu, sendo tocada de leve em uma das pontas pelo brilho arredondado e intenso de Vênus, como um diamante a reluzir na superfície de uma aliança.
Em silêncio, ficamos contemplando aquilo, cada um imerso em seus próprios pensamentos e divagando seus conceitos de poesia, quando alguém me perguntou quantos planetas existiam no nosso sistema solar, além daquele Vênus que ali observávamos a distâncias astronômicas e da Terra, na qual pisávamos. Falei então dos oito planetas e da tristeza de os astrônomos terem, poucos anos atrás, demitido Plutão, o último da fila, da lista oficial de planetas, reclassificando-o como um reles planeta-anão.

Terminei o domingo entristecido pela sina de Plutão, que, para mim, segue integrando minha listagem clássica dos planetas de nosso sistema. Afinal, Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano e Netuno já estavam acostumados com a vizinhança dele. A gente não deve se desfazer assim tão fácil de um amigo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de setembro de 2013)

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

O segredo das coisas

Há alguma coisa em certas coisas que faz com que essas coisas sejam coisas diferenciadas do restante das coisas. Se você se der ao trabalho de ler novamente a frase de abertura desta crônica, perceberá que, dessa vez, estou coberto de razão. Mas vou dar um exemplo para ser mais claro e consolidar essa minha teoria filosófica, fruto de anos de observação e reflexão.
Tomemos a questão dos pastéis. A princípio, tendemos a crer que pastéis são pastéis e pronto. Mudam os recheios, certo, especialmente nos dias de hoje, em que tudo parece ser válido para atender aos gostos da freguesia, por mais heréticos que possam ser (há pastéis de anchovas, acreditem), porém, para efeitos de demonstração aqui nesta crônica, quando falarmos em pastéis estaremos nos delimitado aos tradicionais acepipes empanturrados com um tradicional guisado mesmo, combinado? Então: os pastéis. Pastéis são pastéis, porém, você haverá de concordar em discordar comigo, dizendo: “sim, pastéis são pastéis, porém, os pastéis da Tia Rosvilda são os melhores do mundo”. Eu não conheço os pastéis feitos pela sua Tia Rosvilda, mas aceito como válida sua observação porque ela contém a verdade universal que desejo aqui externar. Pastéis são pastéis, coisas são coisas, mas há alguma coisa nos pastéis da sua Tia Rosvilda que...
O que será essa coisa que faz com que o pastel dela, apesar de ser pastel, e de guisado, como tantos outros ao redor do mundo e das rodoviárias, que faz dele um diferencial entre a massa ignota dos pastéis universais? Onde reside o segredo da diferença? Na forma cadenciada de Tia Rosvilda mexer o guisado na panela escutando Odair José no radinho de pilha vermelho? Na saudade de um amor secreto escondido em seu coração, despertada sempre que faz pastéis, quitute que costumava compartilhar com aquele lindo mancebo nos anos de sua distante juventude? Você não sabe, eu não sei, mas algo há nos pastéis da Tia Rosvilda que os fazem ser coisa diferente de todas as coisas, sendo aparentemente a mesma coisa.

Talvez também não haja coisa alguma nos pastéis da Tia Rosvilda e o segredo da coisa resida dentro de você mesmo, na forma como trabalha internamente a poesia de seu universo particular, conferindo significados especiais às coisas aparentemente banais que compõem a sua existência. Mas agora migramos dos pastéis para a filosofia, o que desperta minha fome. Preciso urgentemente de um pastel da lancheria de Espumoso...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de setembro de 2013)

Sem pé nem cabeça

Não sei explicar a razão disso, mas às vezes dou para encasquetar com a falta de sentido de algumas expressões que a gente utiliza no dia a dia, sem nunca atentar para o fato de que estamos a repetir sandices. “O cair da noite”, por exemplo. A noite não cai, né, gente. Ela vem chegando de mansinho e vai se debruçando como um véu sobre a paisagem, abraçando primeiro o topo dos edifícios, depois tocando o telhado das casas, logo invadindo o passeio, acionando o acendimento automático das luzes nos postes das ruas, escurando as vielas, ensombrecendo as salas e os corredores. As minhas noites faz tempo que não caem. Eu as amparo no colo e as acolho. As noites, em mim, se deitam.
“Tomar sorvete”. Mas quem é que toma sorvete? Sorvete se come. Ele não é líquido. Quer dizer, se você ficar segurando a casquinha abobadamente por mais do que cinco minutos sob um sol ardente (“sol ardente”, tudo bem, mas “escaldante” já gera controvérsias) sem tascar-lhe uma lambida, ele obviamente que vai derreter-se todo sobre seus dedos e você terá de sorvê-lo se não quiser ficar no prejuízo, mas aí já é babaquice sua e nada tenho a ver com isso. Mas eu como sorvete. Uso uma pazinha para isso. Se fosse tomá-lo, eu o faria com um canudinho (milk shake não conta, é sorvete derretido, tá?). Não mastigo, mas como. Como sorvete; não tomo sorvete.
E “pegar no sono”? Alguém realmente pega no sono? Minha mulher capota no sofá defronte à televisão toda a noite depois de suas longas jornadas de trabalho, mas aí sim é que ela não pega nada, muito menos o sono. O sono vem vindo, vem vindo, se esgueira de mansinho por debaixo da porta da sala, passa por minhas pernas e zapt, captura-a e imediatamente a põe a dormir. Ela então é invadida pelo sono. Em se tratando de sono, a pessoa é o sujeito passivo da ação, e não o ativo. Ela é pega pelo, e não pega o, tá entendendo?
E me digam que lógica tem “fazer de conta”? “Ele fez de conta que escreveu uma crônica espertinha no jornal de hoje”. Ma, che, “fez de conta”, o quê! Alguém me explique o nexo que tem essa expressão, hein? E não me venham bater boca e dizer que já comecei esse texto me desdizendo ao afirmar que “dei para encasquetar”, porque se o sujeito encasqueta, ele encasqueta de graça, sem dar nada por isso. Agora que me dei por isso. Opa... outra!

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de setembro de 2013)

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

O vampiro da festa

Certa vez, na minha adolescência, uma coleguinha de aula resolveu celebrar o aniversário de 15 anos promovendo em sua casa uma festa a fantasia. Esse tipo de acontecimento não era comum em Ijuí nos anos 1980 e a iniciativa dela causou alvoroço na cidade, a gurizada disputando convites e traficando influências para se aproximar rapidamente de seu círculo de amizades a ponto de conseguir ser admitido no evento. Posso estar inventando, afinal, sempre vale a máxima de que “se non é vero, é ben trovado”, mas, pelo que me lembre, saiu até notinha publicada no jornal da cidade.
Eu e minha irmã éramos amigos dela há muitos anos e figurávamos desde o início na lista de convidados, portanto, passamos ao largo desse estresse. De minha parte, dediquei-me à crucial tarefa de decidir qual seria o motivo de minha fantasia para a tal da festa. Pouco tempo antes eu já havia causado sensação no colégio durante uma atividade recreativa na qual fui fantasiado de Visconde de Sabugosa (eu era alto e magro que nem um palito, portanto, minha caracterização funcionou perfeitamente) e agora desejava repetir o feito, como forma de afirmação.
Decidi ir fantasiado de Conde Drácula. Vesti uma blusa colante preta de minha mãe, calças pretas, tênis Bamba pretos; transformei uma minissaia vermelha de minha irmã em capa; recortei em cartolina umas garras compridas azuis que fixei sobre minhas unhas com Durex; ataquei o estojo de maquiagem da mãe para produzir olheiras profundas com rímel e criar sobrancelhas hediondas; meti uma chapa de plástico de brinquedo com caninos pontiagudos e lá estava eu, o Conde Drakirstácula em pessoa!

Problema é que, na festa, decidi encarnar o personagem e agi o tempo todo de acordo com o que eu imaginava que seria o comportamento de um vampiro: fui sorrateiro, me esgueirei pelos cantos da casa, não comi nem bebi nada (só observava o pescoço alvo da Carin), não falei com ninguém, fiz cara de mau e ar blasé. Quando as meninas cruzavam perto, eu gesticulava a garra com unhas de cartolina e fazia “graur”. Resultado: até hoje não sei o sabor das guloseimas servidas e Carin passou a me olhar de maneira esquisita. Não vejo a hora de descontar isso tudo numa próxima festa a fantasia, em que irei transmudado em Dona Redonda, para tirar o atrasado e me atracar nos croquetes. Desde aquela vez, aprendi a levar as coisas um pouco menos a sério...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de setembro de 2013)

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Amanhã fico bom

Quando eu era criança, acreditava piamente que meu avô materno era uma espécie de super-herói, invulnerável e imbatível. Eu escutava as histórias que ele contava e o enquadrava como um ser especial entre os personagens do mundo que aos poucos ia se abrindo aos meus olhos. Nesse aspecto, eu estava coberto de razão.
Certa feita, na fazenda que ele tinha no interior de São Borja, passou a manhã inteira serrando toras de madeira com a motosserra e só parou quando minha avó, por volta de onze horas, pediu que ele matasse um pato para ser transformado em almoço. Apressado, resolveu fazer o serviço utilizando um revólver calibre 22 (tenente reformado do exército, possui licença especial para porte de armas). Escolheu aquele aparentemente mais saboroso e fez a mira. Porém, as mãos tremiam devido ao esforço contínuo com a motosserra, e decidiu apoiar os braços na forquilha de uma árvore, envolvendo a arma com as duas mãos.
 Refez a mira no pato e puxou o gatilho. O som do disparo, no entanto, foi “plé” ao invés do esperado “bang”. E o pato, ao invés de cair estatelado, fez “quá” de susto e seguiu andando. No dedo esquerdo de meu avô, todo ensanguentado, alojara-se a bala. Sem querer, envolvera o cano da arma com os dedos da mão esquerda e acabara desferindo um tiro no próprio indicador. Entrou em casa apressado, sob os questionamentos de minha avó: “Cadê o pato?”. E respondeu: “Um deles está lá fora, o outro, aqui dentro”. Sem se abalar, pegou um facão, arrancou o projétil fora, passou alguma coisa no dedo (Merthiolate, Cobrina, Frixal?), tomou um gole de algo (Olina, Underberg?) e foi dormir “que amanhã estaria bom”. A mesma frase e o mesmo método eu sei que ele usou outra feita, quando tirava mel das caixas de abelhas e foi atacado pelos insetos, levando diversas ferroadas. “Vou dormir que amanhã estarei bom”, dizia.
Seguindo esse mantra, de alguma forma, completará 90 anos de vida no início da semana que vem. Não recomendo seguir à risca suas atitudes em casos como esses. Essa gente nascida há quase um século era fabricada em moldes menos frágeis e delicados do que os nossos atuais. Mas também vinham imbuídos de uma maneira menos complicada de se relacionar com a vida. Essa, sim, é a parte que deveríamos aprender a seguir com mais atenção.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de setembro de 2013)

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Um joelho e duas luvas

“Pois, então, me traga dois niples de cobre de meia polegada, duas luvas de quarenta para esgoto e dois joelhos meia polegada, de cobre e com rosca interna”. Eram essas as derradeiras peças que ainda faltava providenciar para que o encanador pudesse finalmente concluir o processo de instalação das novas torneiras adquiridas para a casa. Com a chave do carro em punho, pronto para decolar rumo à loja de materiais de construção a duas quadras dali, flagrei-me desprovido de caneta e papel para anotar as encomendas. Belo jornalista esse, sem caneta, sem papel, nem mesmo um gravadorzinho para portar o pedido em viva-voz.
Mas havia meu cérebro, que sempre me acompanha para onde quer que eu vá, municiado internamente com um aplicativo de memória repleto de neurônios que já estava acionado e ser-me ia muito útil. “Já volto”, anunciei, enquanto o profissional se botava a rosquear uma das torneiras. Cinco minutos depois, eu adentrava as portas da loja despejando aos ouvidos do atendente rapidamente a lista de minhas necessidades, antes que me esquecesse: “Preciso de duas luvas de cobre de meia polegada, dois niples para esgoto e quatro joelhos de quarenta qualquer coisa”, disparei, convicto.
O atendente me olhou meio espantado, afirmou que não existiam niples para esgoto, mas mesmo assim eu que o acompanhasse até o final da loja, onde se localizavam essas peças, para vermos juntos o que eu precisava. Aquilo me desconcertou um pouco, mas no fim, com a boa vontade do rapaz, saí da loja faceiro, portando uma sacolinha recheada com um joelho de meia polegada com rosca externa, oito niples de plástico de meia polegada, seis luvas de vinte para esgoto, um serrote que não sei como se enfiou no meio da história e uma bela chave de fenda com cabo azul.

“Não era nada disso que eu te falei”, sentenciou, sem dó, o objetivo e prático encanador, mexendo com os dedões dentro da sacolinha plástica e misturando joelhos com niples e luvas, mas detectei nele um olhar de cobiça desferido à minha chave de fenda com cabo azul, que logo tratei de levar a um lugar seguro no quarto das visitas, por onde ele não tinha nada que circular. Enfadado, o encanador achou melhor voltar junto comigo à loja, a fim de fazer pessoalmente o pedido correto. Agora estou eu aqui, com esses niples e joelhos errados, sem saber que destino dar-lhes. Mas antes urge providenciar um bloquinho e uma caneta.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de setembro de 2013)