quarta-feira, 30 de setembro de 2015

A arte da navegação

Dizem os calendários e os almanaques que hoje, 30 de setembro, celebra-se o Dia Mundial da Navegação. Dito assim, sem ir mais a fundo na origem da data e nas intenções da homenagem, pode-se navegar na maionese e atribuir à efeméride uma plêiade (ah, os dicionários!) de significados que singram (ah, os trocadilhos) muito além das obviedades marítimas. Porque o Dia Mundial da Navegação, hoje em dia, pode se referir não só a marujos e capitães espiadores de escotilhas, mas também aos internautas que passam a vida a navegar pelas vastidões oceânicas do mundo virtual. E inclusive a seres esquisitos como eu, que navegam pelas páginas da literatura.
Tirando aquelas vezes na infância em que fui levado por meus pais às praias de Camboriú e de Cassino a fim de molhar os pés e os gambitos nas marolas da beira-mar, a primeira vez que naveguei mesmo em alto-mar foi na companhia do velho pescador Santiago, acomodado na canoa em que travou a batalha de vida e morte contra o enorme marlin que Ernest Hemingway tão bem retratou nas páginas de seu “O Velho e o Mar”. Anos mais tarde, passeei pelos sete mares a bordo do Pequod, testemunhando a insânia do Capitão Ahab na caça ao cachalote branco Moby Dick, na alucinada e inebriante obra homônima de Herman Melville. Começava assim a entender o significado das palavras contidas no verso famoso de Fernando Pessoa, de que “navegar é preciso, viver não é preciso”, como metáfora para a existência.
Depois amargurei as agruras de Ulisses a bordo da Argos, repleta de argonautas, em sua longa e atribulada jornada marítima de volta para casa em Ítaca, após sair-se vitorioso na Guerra de Troia. Aquilo também não foi nada fácil. Mas a bordo da nau capitânia da armada de Pedro Álvares Cabral, vivi emoção ímpar ao espiar pelo ombro do escriba Pero Vaz de Caminha quando ele registrava em suas cartas as emoções da descoberta das novas terras situadas do lado de cá do Atlântico.

Essas minhas grandes navegações literárias só encontraram eco quando finalmente passeei de fato em alto-mar a bordo do navio de cruzeiro Monarch, que me levou a saborear as cristalinas águas do Mar do Caribe, no ano passado. Ah, “o mar, o mar”! A simbologia de sua vastidão é quem está de parabéns nesta data, a inspirar as aventuras de quem o singra a bordo de barcos, de computadores e de livros.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de setembro de 2015)

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Água marciana

E lá vamos nós de novo, voltar nossos olhos para o alto, rumo ao céu infinito, porque, do jeito como andam as coisas, é só de cima mesmo que se pode esperar a vinda de alguma notícia boa, isso quando o que não cai de lá é granizo ou chuva forte. Os antigos gauleses temiam que o céu lhes caísse sobre a cabeça, por desconfiarem de que o dito “firmamento” não fosse lá tão firme assim. Mantinham os olhos abertos para os perigos do céu e descuidaram dos perigos terrestres vindos de ultramar, sendo conquistados pelas legiões romanas comandadas por Júlio César, mas isso é História e outra história, deixemos prá lá e voltemos cá.
As boas novas, boas e históricas novas, vieram ontem, segunda-feira, dia 28 de setembro de 2015, da Nasa, a agência espacial norte-americana, que enfim sentiu-se apta a vir a afirmar que, sim, minha gente, existe água líquida no planeta Marte. Durante muito tempo julgou-se que Marte fosse um planeta seco, desidratado, um desertão redondo e rodopiante ao redor do Sol, mas não, nada disso. Marte tem água, e água fluida, água corrente, como se fossem córregos cortando certas regiões do vizinho corpo celeste. Que coisa, hein?
O que se dá é o seguinte, explico para que depois a madame não venha a passar vergonha por falta de informação ao comentar com as amigas as coisas que lê insistentemente aqui nessas esforçadas linhas do terráqueo cronista. Pois o que se dá é que já se sabia que Marte possuía água em formato de gelo, ou seja, os futuros astronautas que desembarcarem lá já estavam faceiros que poderiam comemorar a façanha metendo algumas pedrinhas de gelo nos copos de uísque para o brinde. Mas quando chega a época do verão marciano, quando os homenzinhos verdes e as mulheres de antenas colocam as sungas e os maiôs sintéticos para se reunirem em torno das crateras, daí esse gelo derrete e surgem córregos e quiçá rios caudalosos, com água e água corrente.

Sim, é um prelúdio para que, em breve, venha a Nasa anunciar que existe alguma forma de vida nessas águas marcianas. Será algo realmente fantástico! Enquanto isso, unimo-nos à faceirice dos astronautas que, depois de brindarem seus uísques com gelo marciano, terão até mesmo condições de lavar e enxaguar os copos. Que tempos que estamos vivendo!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de setembro de 2015)

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Literalmente teimosia

Afirmo que todo leitor é um resiliente. Ou um resiliente, ou um masoquista, ainda não cheguei a uma conclusão definitiva sobre o assunto. Não descarto a hipótese de que todo leitor (e quando digo “leitor” estou me referindo a todas aquelas pessoas que têm a paixão e o hábito de ler livros, de se entregar ao ritual silencioso e ensimesmado de passear pelas páginas de obras literárias), de que todo o leitor, repito, seja na verdade um grande casca grossa. “Casca grossa” aqui querendo significar um caldo de qualidades como resiliência, masoquismo, teimosia, determinação, vontade inquebrantável, essas coisas.
Trata-se de um estudo que ando fazendo para tentar entender as motivações secretas e indevassáveis que ainda movem essas cada vez mais raras pessoas que gostam de empunhar um livro e dedicam horas de suas existências ao ofício da leitura, os chamados “leitores”. Como sou um deles - integro a espécie desde que vim ao mundo e desde antes de ser alfabetizado -, o objeto de minha pesquisa está bem ao alcance das minhas mãos e dos meus olhos, pois estudo a mim mesmo. Por que somos tão teimosos?
Sim, porque é preciso ser dotado de altas doses de teimosia para ser um leitor. Teimosia, resiliência, resistência, masoquismo e “casca-grossismo”. Convenhamos, você aí que é leitor também, nós seguimos lendo porque deve haver algo de errado conosco, algum neurônio deve ter sido desligado em nossos organismos, justamente aquele que leva ao cérebro a sensação física do desconforto. Porque simplesmente não existe (e isso eu afirmo do alto de minha condição de leitor-desde-sempre) posição confortável para ler. Pode ser sentado na cadeira, esparramado no sofá da sala (com ou sem pufe para o descanso dos pés), no banco do ônibus, na sala de espera do consultório, em pé na fila do banco, escorado no porte, escorado no muro, semideitado na cama com o travesseiro nas costas, deitado no tapete, agachado, sob a sombra da árvore, em cima dos galhos da árvore, à beira do rio, na rede, na cadeira de praia à beira-mar, sobre a esteira, enfim, lê-se de todas as formas, de todos os jeitos, mas nenhuma posição é confortável quando se tem um livro nas mãos.

Mas seguimos lendo e lendo e lendo e lendo. Deve ser porque alguma coisa na leitura desliga os desconfortos do corpo, supre a alma e nos plenifica de vida. É um mistério. Espero jamais desvendá-lo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de setembro de 2015)

sábado, 26 de setembro de 2015

Gol de letra

Sabemos que tudo aquilo que é dito corre o risco de ser desdito e que toda a regra tem uma exceção (inclusive esta). Contradizer-se ou ver-se obrigado a rever um conceito são fenômenos usuais a quem tem por hábito (ou por ofício, como no caso deste mundano escriba) dar pitaco sobre tudo, ainda mais por escrito, pois que o escrito e publicado fica impresso e, por isso mesmo, causa fortes impressões. Impressiona, digamos assim, para não deixar passar batida a chance de um trocadilhozinho, e eis que cedo fácil outra vez às tentações da escrita, não me corrijo, sou o que sou. Perdão.
O fato é que esbaldei-me em transcorrer ontem aqui, neste espaço destinado às minhas crônicas de mundanismo militante, a respeito da suposta falácia contida na expressão “futebolzinho de brincadeira”, defendendo a tese de que, no universo das gentes, especialmente no das gentes masculinas, simplesmente não existe na prática esse conceito de realizar uma partida de futebol que se configure como sendo “de brincadeira”, em que não entre em campo, em meio à bola, às canelas e às chuteiras, também a competitividade e a vontade de massacrar o adversário, de preferência com uma goleada histórica acachapante que faça sublimar os doloridos 7 a 1 sofridos em certa recente Copa do Mundo que... Mas me estendo e tergiverso. Foco, foco.
O fato mesmo é que entra em campo uma notícia que vem colocar por água abaixo minha preconceituosa retórica de ontem, comprovando que existe, sim, não só a possibilidade de um futebolzinho de brincadeira, como a realização de uma criativa partida de futebol de caráter cultural e literário, envolvendo times de escritores caxienses a enfrentar uma seleção de autores arrebanhados pela Associação Gaúcha de Escritores, a AGES, sediada em Porto Alegre. Trata-se do Desafio Litero-Futebolístico, organizado pela AGES e pelo Patrono da 31ª Feira do Livro de Caxias do Sul, Uili Bergamin, evento integrante do calendário de pré-atividades vinculadas à Feira, que ocorre neste domingo, dia 27, a partir das 15h30min, na quadra de futebol society do Planeta Bola, no bairro Santa Catarina. A entrada é franca e estão todos convidados a verem escritores caxienses e gaúchos concretizando tratos à bola, tudo em nome da cultura.

Como, madame? Se eu entrarei em campo? Ah, eu estarei por lá, isso é certo. Mas é aquilo que eu disse: a pelada é para escritores jogadores. Tenho dúvidas de que me enquadre em alguma das categorias... Veremos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de setembro de 2015)

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Peladas de mentirinha

Tirem as crianças da sala, porque vou falar aqui algumas coisas impróprias para menores. Não para menores em geral, mas para crianças. E para crianças bem pequeninhas, fique claro. Também não falarei coisas exatamente impróprias no sentido corrente do termo, mas sim coisas que crianças pequeninhas não deveriam saber antes da hora. Vamos a elas: Papai Noel não existe. Coelhinho da Páscoa também não existe. A Bela Adormecida, depois que abriu os olhos (bem abertos), não viveu feliz para sempre com o Príncipe, que desencantou. Lamento, são verdades. Mas verdades adultas. Poupemos as criancinhas. Afinal, tudo a seu tempo.
Mas há outras coisas que também não existem na prática, na vida real, apesar do mito que se forma em torno delas, mesmo na adultice. E é sobre uma dessas coisas que eu quero falar aqui neste espaço hoje, fazendo um link à inexistência do Coelhinho da Páscoa, do Papai Noel e da felicidade eterna da Bela Acordadinha. Coisa que não existe, meus amigos leitores, minhas estimadíssimas leitoras, é “joguinho de futebol só de brincadeira”. Não existe isso. Pra cima de mim, não, jacaré! Homem, quando entra em campo ou em quadra, calçando chuteiras, exibindo os gambitos, um olho na bola e outro na rede adversária, ficará imediatamente possuído pelo espírito competitivo que move o gênero masculino desde que lhe foi extraída aquela costela para que surgisse a expressão mais elevada da espécie: a mulher. O homem, que já nasceu como um projeto torto, ficou ainda mais precário com a perda daquela costela, lamento, mas é a verdade, e eu avisei para tirar as crianças da sala.

Mas não me venham com “joguinho só de brincadeira”, porque isso, meu caro Coelhinho da Páscoa, meu amigo Noel (não o sambista, o outro), isso não e-xis-te. Pare e observe o que acontece, mesmo nas ditas partidinhas de final de semana entre os amigos, entre os colegas de serviço. Basta a bola começar a rolar que é possível escutar o rosnado que sobe do esôfago de cada um dos contendores. Há uma bola picando em campo e é preciso ser o primeiro a chutá-la rumo à meta adversária, marcar os tentos, sair-se vitorioso. E dê-lhe canelaço, carrinho, trombada. A brincadeira mesmo fica por conta da cervejinha após a partida, quando todos voltam a ser amigos, colegas, parceiros. Viva! Nessa hora, até arrisco em dar as caras. E não estranhem se me virem surgir acompanhado do Coelhinho ou, de preferência, com a Bela.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de setembro de 2015)

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

A hora do gato

Poxa, mas assim fica difícil! Se nem eu me ajudo, quem vai poder me ajudar? Essa conta aqui tinha de ter sido paga ontem, dia 23. Como fui esquecer? Estava na agenda, direitinho, o compromisso devidamente lançado. E esqueci. Como pude? O que explica? Por onde andou minha cabeça ontem o dia todo, que não efetuei o pagamento dessa conta, que religiosamente vence todo o dia 23, há tantos anos? Bom, agora não adianta ficar chorando sobre o suco de uva derramado. É preciso sair de casa e ir até uma agência ou posto bancário para quitar a pendência, porque essa conta aqui só oferece essa alternativa. Fazer o quê?
Levanto-me da cadeira e, pela janela do escritório de casa (“home-office”, meu contador cansa de me alertar: “home-office”, bem mais chique), meu olhar atribulado recai sobre o gato preto que refestela o couro sobre o telhado de zinco da garagem do vizinho. Uma réstia de sol surgiu por entre as nuvens de sempre e ele, rápido como o gato que é, não perdeu tempo e está ali, esquentando o corpo espichado ao largo, que de burro não tem é nada. “Gato que brincas na rua”... Não era assim que o poeta iniciava o poema? “Gato que”... Bom, bom, vamos lá, há uma conta atrasada a pagar e a rotina de trabalho do dia acaba de ser alterada, não é hora de olhar gatos e pensar em poemas. Chave do carro? Aqui. Documentos? Aqui. A maldita conta? Aqui. Vamos lá.
Vou num pé e não volto noutro, por causa do trânsito de início da tarde. Engarrafa aqui. Engarrafa ali. Acidente na sinaleira obriga a desviar quatro quadras longe do destino. Achar lugar para estacionar... Onde? Onde? Ali não dá... Ali não... Ah, enfim, aqui. Entro na agência, fila quilométrica, como era de se esperar. O celular toca, as demandas começam a se atropelar. Mas não há problema que não tenha solução. Chega a minha vez, pago a conta, retorno para casa, adentro o escri... o home-office e, de novo, o olhar atravessa a janela direto ao gato. Ainda preto, ainda refestelado ao sol, só que, agora, mudou de lado. Como era mesmo o poema pessoano? Ah: “Gato que brincas na rua/ Como se fosse na cama,/ Invejo a sorte que é tua/ Porque nem sorte se chama”.

Sim, apesar de tudo, de toda a atribulação diária e de não podermos ser gatos ao sol na rua, pelo menos temos a sorte de poder recordar poesias. Verdade: temos mesmo é sorte.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de setembro de 2015)

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

A sorte do terceiro

Aqui em casa funciona assim: minha esposa é a olheira e eu sou o executor. Hein? De que raios estou falando? Calma, acompanhe que tudo em breve clareia, igualzinho à neblina matinal que, como um véu, encobre o mundo a partir de nossas janelas e, pouco a pouco, ao ritmo do nascer do sol, vai se dissipando e revelando as cores do mundo (exceto, claro, nos dias em que chove cântaros e oceanos da alvorada ao crepúsculo, como estamos habituados a ver por essas bandas). Mas eu dizia mesmo...? Ah, sim, de como são as coisas aqui em casa: ela, a olheira; eu, o executor. No próximo parágrafo...
Estou a falar de comida, que é assunto de alto interesse universal, conforme já detectei por meio de pesquisas de popularidade aplicadas aos temas recorrentes aos quais recorro com frequência aqui nessas mal digitadas. Comida! Falemos de comida, que sempre rende. Ocorre que a senhora minha esposa é vidrada nesses programas de televisão estilo reality shows culinários, nos quais um bando de trapalhões de avental se mete a esbarrar em panelas e caçarolas para serem xingados frente às câmeras por uma equipe de jurados formada por chefs ditos renomados cujas falas requerem legendas, já que, no Brasil, para ser renomado, precisa vir de fora. Não tenho paciência para assistir aos episódios e o combinado é que ela me chama para perto da tevê somente na hora da apresentação final dos pratos. Se eu gosto do que vejo, no dia seguinte, vou às panelas em casa, para tentar reproduzir o menu. Sozinho e sem xingamentos (ao menos, durante o processo de preparo).
Mas descobri uma coisa, nesse procedimento todo: em se tratando de testes culinários, ri melhor quem vem por terceiro. Explico. A primeira experiência é vivenciada somente a dois: minha senhora e eu. Aprovado o prato, ousamos convidar algum casal de amigos ou de parentes (de preferência primeiro os parentes, que mais dificilmente nos deserdarão em ocorrendo alguma catástrofe) para exibir o novo prato recém-inserido no cardápio oficial da casa. Mas normalmente erros ainda acontecem nessa fase. Felizes mesmo acabam sendo os comensais da terceira leva, quando, via de regra, o Salmão a Wellington, por exemplo, sai dourado, crocante e bem assadinho, como deveria ter sido desde a primeira vez.

Aqui em casa, vale a pena chegar em terceiro. Informe-se a respeito do pódio sempre que receber daqui um convite para o jantar.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de setembro de 2015)

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Pixote, nada!

O dia amanheceu bonito após algumas semanas nubladas, úmidas e chuvosas (parecia certa cidade da Serra Gaúcha, mas não, o cenário remontava à região do Havre, no norte da França), e o grupo de familiares e amigos decidiu aproveitar a bonança e ir à praia capturar camarões. João, estudante de Direito, estava mais interessado em focar seus estudos nas graciosidades apresentadas pela bela e jovem viúva conhecida como Senhora Rosémilly, loura de olhos azuis, cujos “cabelos soltos, que esvoaçavam à menor brisa, e o ar petulante e ousado de sua expressão, não condiziam com seu espírito equilibrado e metódico”.
Do lado de cá das páginas sublimes de Guy de Maupassant (1850 – 1893), descritas no romance “Pedro e João”, ficamos torcendo de imediato pelo sucesso das sutis e elegantes investidas de João, uma vez que a Senhora Rosémilly se nos apresenta de fato encantadora. Vamos lá, João, mostre a ela o seu melhor, encante a dama, isso, empunhe com determinação a rede de pesca e dirija-se resoluto à beira da praia, vencendo o pequeno rochedo, as calças arregaçadas, e ponha-se logo a encher o balde com dezenas de camarões, a exemplo de Pedro, seu irmão mais velho, que logo ali adiante se dedica com afinco à tarefa e, em continuando assim, todos terão de atribuir o sucesso do jantar, mais tarde, somente a ele. Lá vai João, sob o olhar atento da Senhora Rosémilly e a torcida fervorosa de nós, do lado de cá.
Porém, pouco afeito às lides praianas e camaronísticas, João escorrega, bate no balde, verte dele a água, perde a rede nas águas revoltas do mar. Ao longe, a jovem e bela viúva se diverte com a cena e grita de lá “pixote!”. Epa! Pausa aí na leitura. “Pixote”? Como assim, “pixote”? Que quer dizer isso? A única relação que faço com a palavra é o antigo personagem de desenho animado da Hanna-Barbera, o Dom Pixote, aquele simpático cachorrinho azul de gravata borboleta e chapéu. Mas, claro, o livro, comprei em sebo e é uma edição de 1956, texto antigo, termos que caíram em desuso, passados quase 60 anos.

Mas o velho e bom Aurelião salva a leitura: “Pixote: novato, inexperiente, principiante, menino novo, criança”. Ah, bom! Agora, sim, adiante. Que vergonha, hein, João, dando uma de inexperiente frente à dama de seus encantos. E eu aqui, no sofá, para sempre agarrado ao meu volumoso Dicionário Aurélio. Porque, a menos nisso de leituras, de pixote não tenho nada.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de setembro de 2015)

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Dedos pintados

Não, eu não aderi a essa nova febre que atingiu certa parte das pessoas ditas adultas ao redor do planeta (ao redor da parte ocidental do planeta, ressalte-se), de comprar livros para colorir. Tenho visto nas livrarias as pilhas dessas obras, repletas de desenhos em preto e branco de mandalas e vários outros motivos, compostos por linhas finas e muitos espaços em branco, que devem ser coloridos ao bel prazer de cada um, com lápis-de-cor ou canetinhas hidrocor, a título de exercício para a liberação do estresse acumulado nesses nossos dias, e passo reto, insensível ao apelo descolorido que deles vem.
Não por ser insensível, mas por simplesmente não ter conseguido entrar em sintonia com o modismo repentino, diferentemente de outras ondas anteriores nas quais já me engajei até com certo entusiasmo, e não as elenco aqui em uma tentativa certamente vã de preservar o bem estar de minha biografia. Pois não é por ser insensível que não adquiro os livrinhos de gente grande para colorir, mas, sim, porque tenho convicção de que a atividade, no meu caso, não surtirá o efeito a que alegadamente se propõe: proporcionar-me relaxamento psíquico. Isso porque passei boa parte da infância e adolescência, lá nos idos das décadas de 1960 e 1970 (tudo isso no século passado, note-se bem), dedicado a justamente colorir livrinhos por vontade própria ou por demandas da catequese e das aulas de educação artística. Pintei tanto que hoje não tenho a mínima vontade de pintar mais.
Fora isso, passava boa parte das tardes ajoelhado ao lado de minha cama, em casa, criando histórias em quadrinhos que desenhava em cadernos, os personagens e os cenários feitos com as tais canetinhas Neo-pen e às vezes coloridos com lápis-de-cor, as falas introduzidas nos balões com caneta Bic. Acumulo milhas e milhas de manuseio de objetos colorintes por meus dedos e agora passo ao largo desse apelo. Não, eu não teria paciência hoje de me botar a colorir asas de borboletas e espirais concêntricas em mandalas. Perdi a habilidade de manusear lápis-de-cor e creio não lembrar sequer de como funciona um apontador (para que lado rosquear o lápis depois de inseri-lo no orifício?).

O texto talvez seja decorrência desses dias chuvosos que pintam a vida em tons de cinza. Mas não desesperancemos: falta pouco para a entrada da Primavera, prevista para a quarta-feira, às 5h20. Um dia o sol volta. Até lá, dedico-me a palavras cruzadas.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de setembro de 2015) 

sábado, 19 de setembro de 2015

Tempo não é dinheiro

Fico me perguntando: para que se botar a querer dizer algumas coisas, se há quem as diga muito melhor do que você jamais seria capaz de fazer? Foi o que pensei quando assisti esta semana, em uma rede social (gosto do jargão “em uma rede social”, porque fica assim, na indefinição, e ninguém sequer de longe imagina qual “rede” seria, o que é compreensível, haja vista a existência de redes que, devido a seu conteúdo, estão mais para antissociais do que qualquer outra coisa), quando assisti a um trecho de vídeo contendo um depoimento marcante que o então presidente do Uruguai, José Mujica (presidiu o país entre 2010 e 2015), concedeu a um documentário intitulado “Quebrando o tabu”. Assisti e parei para refletir.
Em vez de ficar aqui viajando na maionese, como é de lei nestas mal digitadas que mal digito diariamente, e quem me lê bem o sabe, decidi ceder o espaço à transcrição das palavras do estadista uruguaio, por achar que vale a pena. Assim sendo, lá vai Mujica:
 “A forma como vivemos, e também os nossos valores, são a expressão da sociedade na qual vivemos. E a gente se agarra a isso. Não digo isso por ser presidente do Uruguai hoje. Pensei muito sobre isso. Passei mais de dez anos na solitária. Tive tempo... Em sete anos, nem sequer li um livro. Tive muito tempo para pensar. E descobri o seguinte: ou você é feliz com pouco, com pouca parafernália, pois a felicidade está em você, ou não se consegue nada.
Isso não é a apologia da pobreza, mas da sobriedade. Só que inventamos uma sociedade de consumo, consumista, e a economia tem de crescer, porque, se não cresce, é ‘uma tragédia’. Inventamos uma montanha de consumos supérfluos, em que nos dedicamos a ficar comprando e descartando o tempo todo. Mas o que gastamos realmente é tempo de vida. Isso porque, quando eu ou você compramos algo, não o pagamos com dinheiro. Nós pagamos é com o tempo de vida que tivemos de gastar para obter aquele dinheiro. Mas tem um detalhe: a única coisa que não se pode comprar é a vida. Tudo se compra, menos a vida. A vida se gasta. E é lamentável gastar a vida para perder a liberdade”.

E ponto. Nada mais a dizer sobre aquilo que tão bem está dito.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de setembro de 2015)

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Síndrome de Topo Gigio

Gente, como chove! Mas como chooooove (e o enfileiramento de “os” se dá aqui não como uma elegia ao mais popular site de buscas da internet, mas sim como metáfora visual em que cada redondinho da letra simboliza uma nuvem carregada de pingos prontos a serem despejados sobre nossas cabeças e telhados, tanto as ocas quanto as calvas – as cabeças –, tanto os de zinco quanto os de vidro – os telhados). Agora, nunca vi chover tanto! Que aninho mais chovido este, hein?
A verdade é que, contabilizando, nunca perdi tanto guarda-chuva às voltas por mês como neste ano chuvento. Nunca levei tanta pedra de gelo na cabeça! Nunca recolhi tanta roupa encharcada do varal ao voltar para casa no início da noite! Nunca fiquei com tanta vontade de dormir só mais um pouquinho de manhã cedo! Nunca desejei tanto ficar dentro de casa (e cada ponto de exclamação que meto no texto sintoniza com o estrondo de um raio que desce vertical lá fora)! Cabruuum! Lembrei do Topo Gigio cantando “Chove, Chuva” ao lado do Agildo Ribeiro, e não me perguntem quem é um e quem é outro que minha memória já fraqueja e posso confundir o artista com o rato. Quiser saber, pesquise no Google ou converse com seus avós. Dias de chuva são convidativos para fazer visitas aos avós. Fica a dica.
Mas, voltando à nossa conversa de elevador, e o frio, hein? Como tem feito frio! E tem gente dizendo que não teve frio este ano. Mas como que não teve? Claro que teve! Aqui em casa, ao menos, teve! Quem diz o contrário, ou sofre de amnésia, ou anda comendo palito de fósforo. Aceso. Porque, aqui, faz frio e chove (frio dentro e chuva fora, pelo menos isso). De noite, na cama, é um tal de puxa coberta, empurra coberta, rouba coberta, resgata coberta. Não sei o que esquenta mais: se as cobertas em si ou se a movimentação que elas induzem.

Só que não era sobre nada disso que eu queria falar aqui hoje. Escrever, melhor dizendo. Melhor teclando. Não era sobre nada disso que eu queria escrever aqui hoje. Mas a gente se viu, fomos entrando, engrenei um papinho de elevador na abertura da crônica para irmos quebrando o gelo e esquentando o ambiente e deu no que deu: chegamos ao fim do texto e... Cadê crônica? Desse jeito, vou atrair raios e trovoadas sobre minha cabeça ocalva (oca e calva), receber pedradas em meu telhado de vidro e acabarei ficando na geladeira. Melhor me emendar na próxima.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de setembro de 2015)

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Olha o moranguinho!

E então, na esquina, o homem tenta vender moranguinhos. Estacionou o carro, abriu o porta-malas, escorou dentro dele as caixas de papelão de forma a deixar a vermelhidão reluzente e sedutora das frutinhas à vista de todos e caiu na informalidade. Mas vê-se logo que não tem jeito para a coisa. Caminha de um lado para o outro com uma das caixas na mão e a oferece timidamente à moça que passa, ao motorista que para ao sinal, ao aposentado que meneia a cabeça em silenciosa recusa.
Uma recusa que grita e ecoa fundo na alma do mais novo vendedor de moranguinhos da cidade. No rosto, a desolação fica evidente. O que será que fazia antes? Metalúrgico? Comerciante? Um desempregado devido à estagnação da economia? Para saber, só perguntando. Não ouso e sigo a observar. Ele não é do ramo, nem das vendas em rua, nem dos morangos in natura, tampouco das artes da abordagem ao ar livre. Seu corpo fala. Às vezes, parece que desiste. Larga a caixa no porta-malas ao lado das demais, coloca as mãos na cintura e dá voltas ao redor de si mesmo, enquanto observa o movimento da cidade apressada, os olhos fitando um ponto ao longe, onde talvez vislumbre a esperança.
A desolação dura pouco. Logo volta a empunhar a caixa de morangos robustos, nitidamente transgênicos, e retoma a calçada, as energias de vendedor renovadas, vai que tenha identificado na multidão o aproximar de um cliente em potencial. Mas o cidadão cruza e a caixa de morangos segue ignorada. A recusa dói na alma. Na dele e na minha, abrigada atrás de uma taça de cappuccino que provavelmente custa o mesmo que sua caixa de morangos que, se não forem vendidos, restarão mofados e desprovidos de poesia.

Agora, sentou-se sobre o engradado de plástico emborcado ao lado do carro e deixa o olhar vagar perdido mais um pouco. Eu não poderia afirmar, mas acho que foi meio automático o seu gesto de, alheado em pensamentos, pinçar da caixa um morango e metê-lo na boca. É quando leva um sobressalto com a cutucada da rapariga em seu ombro: “moço, quanto custa o morango?”. Ah, vitória! Vendeu uma caixa! Talvez não seja tão sinistro assim, afinal, aquilo que lhe reserva o destino nessa sua nova fase de vida. Termino meu café, pago e saio à rua, determinado a não deixar na unidade a experiência de venda do vendedor de morangos. Compro também eu uma caixa e sigo para casa. Mas, pena, os morangos são ruins. Tomara que saiba também vender flores...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de setembro de 2015)

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

A Era do Atropelo

A pressa e o imediatismo são algumas das principais características do mundo moderno. Existe uma ânsia acelerante regendo as relações sociais, as atitudes, o andamento das instituições, o trânsito, o caminhar nas calçadas, o falar, o fazer, o acumular, o descartar e o pior de tudo: o decidir. Vivemos uma Era do Atropelo, derivada de uma miopia que se aprofunda cada vez mais, embaçando a capacidade de detectar com precisão, antever e imaginar a amplitude das consequências daquilo que as pessoas geram com a tomada acelerada e precipitada de decisões. Especialmente as destrutivas.
Contaminados pelo individualismo e pelo ritmo frenético que o ato de viver vem impondo, imaginamos que temos a premência de agir em sintonia com essa velocidade exageradamente acelerada. E aí decidimos correndo, agimos por impulso, metemos o trator por cima rumo ao objetivo, sem pensar em tudo aquilo que vai sendo derrubado ao redor por tabela, capaz de gerar ondas de destruição às voltas sem que tenhamos previsto e cujos efeitos podem vir a desabar sobre nossas próprias cabeças, um pouco mais adiante. Sem falar nos mortos e feridos que nada tinham a ver com o pastel. Mas nada interessa. Interessa é arremessar o tijolo certeiro na cabeça do alvo e vê-lo se partir. Esfregamos as mãos e sorrimos cantando vitória, indiferentes ao desastre incontrolável que geramos no entorno, e aí vai-se o boi com a corda e vai-se a vaca ao brejo.

Depois, claro, começam a chegar as faturas decorrentes dos atos, palavras e feitos adotados sem reflexão. Vão se empilhando, uma em cima da outra, e aí nos sentimos vítimas do destino. Sempre míopes, não conseguimos ligar as consequências às causas, originadas por nós mesmos, e culpamos de novo os outros, o mundo, Deus, o governo, os políticos, a crise, o nhenhenhé, o nhonhonhó, mas nunca nós mesmos. Individualistas ao extremo, míopes e frenéticos, blindamo-nos contra nosso dedo acusador de culpas, e recarregamos as energias para metralhar para todos os lados mais uma vez, em represália às consequências dos nossos próprios atos anteriores, mergulhando em um redemoinho interminável de causas e efeitos gerados por uma destrutiva cegueira que oculista algum é capaz de corrigir. E salve-se quem puder!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de setembro de 2015)

terça-feira, 15 de setembro de 2015

A maior das angústias

Eureka! Descobri! Demorou, mas finalmente achei! Consegui detectar, entre as infinitas notas da orquestra da vida (ai, que metáfora bonitinha me surgiu agora entre dedos teclantes, vocês notaram ali?), a existência de um sentimento de angústia que consegue superar a já famosa “angústia do goleiro na hora do pênalti”. Não sei se você é ou já foi goleiro alguma vez, mas, independentemente disso, todo o brasileiro é um jogador de futebol em potencial nato, e, pelo menos nesse momento, assistindo a uma partida, somos, todos nós, capazes de deixar aflorar a empatia e sentimos na alma a mesma angústia do goleiro ante a cobrança do pênalti, especialmente se o goleiro for o que defende a camiseta de nosso time, porque, do contrário, queremos mais é que a bola cruze por entre suas pernas e sacuda as redes e deu pra bola, segue o jogo.
Mas há, sim, caro leitor e estimadérrima leitora, uma angústia superior em intensidade e em capacidade de mortificar a alma muito superior a essa que goleiros sofrem e que torcedores sofrem junto, na boca do gol, à iminência da cobrança do pênalti. Trata-se da angústia da escolha da ordem das mesas para se servir no bufê na hora da festa. É horrível. Essa sensação torturante assoma a todos os seres humanos sempre que se veem na condição de convidados a algum evento festivo no qual a hora da boia está previamente organizada, devendo obedecer a algum critério (sempre indecifrável aos famintos convidados) de ordem para que a horda (“ordem” e “horda”, notaram o trocadilho, hein, eita esse cronista mundano, hein, cada vez mais espertinho) não avance descontroladamente até a mesa das panelas, atropelando cerimonialistas, derrubando pratos e tirando o foco que deveria estar centrado nos noivos, ou no formando, ou na debutante, ou no condecorado, enfim, no dono da dita festa, que nos convidou e que gentilmente trata de alimentar a nós, que aqui estamos a prestigiá-lo, claro, porém, esverdeados de fome e só pensamos se ainda conseguiremos cravar o garfo em algum filé ao molho madeira e arrebanhar um punhado significativo de batatas salteadas para dentro de nosso prato, mas vejam, aquela senhora ali está voltando para sua mesa portando uma escandalosa pilha de seis bifes, provavelmente entre eles o meu, o de minha esposa e os outros dois que seriam os da repetição!

 É muita angústia!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de setembro de 2015)

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

A tristeza do vagalume

Vou desde já avisado ao leitor e à leitora (à estimada leitora, porque, às damas, sempre uma deferência a mais) que hoje vou produzir uma crônica alegórica. Alegórica porque será permeada por metáforas, o mundano cronista aqui se utilizando de figuras de linguagem escondidas nas entrelinhas do dito para tentar dizer na essência outra coisa, que não está explicitamente escrita, ao contrário dessas duas sentenças de abertura, explícitas e didáticas.
Mais do que uma crônica alegórica, o pretensioso e mundano cronista (agora revelando-se tão pretensioso quanto mundano, porque mundano todos já estavam calvos e lustrosos de saber que o era e ainda é) vai tentar produzir uma pequena fábula. Nossa crônica alegórica será, portanto, uma singela (o que em nada alivia a pretensão) fábula, uma vez que terá como protagonista um pequeno animal. Não é porque tem animal que é fábula, e nem toda a fábula exige um animal, mas essa nossa fábula o terá, e nosso protagonista será um pequeno vagalume.
Mas, calma, não se enganem com as aparências. Não desenvolvam imediatamente carinho e simpatia pelo vagalume de nossa crônica fabulosa metafórica, porque esse vagalume, não sei se diferente dos outros ou se representante da essência de todos os vagalumes, porque pouco sei da psiqê vagalumística, esse vagalume de nossa fábula não é flor que se cheire. Esse vagalume tem o hábito de, todas as noites, sair de seu esconderijo, posicionar-se no galho mais alto de uma laranjeira e, nas noites de céu limpo e lua clara, ficar olhando para o céu na direção de Antares, uma das estrelas mais brilhantes do firmamento. E ele baba. Baba de raiva e de inveja devido à luz portentosa e sublime que Antares emite, lá do alto, inalcançável, inatingível, exuberante e bela. Ah, como o vagalume tem inveja de Antares! Tem inveja porque sabe que sua tênue e fraca luzinha jamais atingirá a intensidade, a força e a significância da luz da inatingível estrela.

E, então, o vagalume trama. Ele urde contra Antares, ele tenta atingir, desmerecer, diminuir, atacar, desqualificar Antares, movido sempre pela mais opaca inveja. Aquela mesma inveja que faz sua luz permanecer vagalumisticamente fraquinha frente à luz de Antares que, nascida para brilhar, segue luzindo, indiferente, apesar dos lamentáveis esforços do vagalume triste de nossa crônica. Ainda bem que vagalumes assim só existem em fábulas.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de setembro de 2015)

sábado, 12 de setembro de 2015

Em busca do Rio Kirst

Dizem que um bom jornalista se mede por sua capacidade de espanto. O que o axioma pretende sinalizar é que o profissional da informação não pode deixar adormecer a sua capacidade de se surpreender com as coisas do mundo que o rodeiam, sob o risco de amortecer a habilidade de detectar aquilo que é notícia, assassinando assim a essência jornalística. O mesmo vale para um cronista mundano. Ele precisa manter sempre desperta em si a capacidade de se surpreender com as coisas do mundo que o cercam, sob pena de perder a mão, ficar sem inspiração nenhuma e, daí, foi-se crônica!
Eu procuro fazer a minha parte, mantendo sempre os olhos bem abertos, os ouvidos aguçados, o olfato afiado, a boca o mais fechada possível e os dedos prontos a dedilharem o teclado, com todos os sentidos atentos (consegui citar todos os cinco conhecidos, viram só?) em busca daquilo que possa me surpreender e virar, se não notícia, pelo menos, uma crônica mundana. E é surpreendente a minha capacidade de me surpreender com aquilo que me surpreende! Esses dias, por exemplo, tenho andado surpreso com o estranhismo de algumas coincidências existentes em alguns episódios significativos da História universal. Querem ver?
Vejam só a coisa esquisita: o Rio Hudson, aquele rio famoso que corta parte do estado norte-americano de Nova York e que banha a cidade de mesmo nome, foi descoberto no ano de 1609. Sabem por quem? Ora, por um explorador e navegador inglês chamado Henry Hudson (1550 – 1611)! Chamava-se Hudson o sujeito que descobriu o Rio Hudson! Não é uma coincidência fantástica? Fico só imaginando o Henry lá na Inglaterra, já na porta de casa, mochila nas costas, pronto para sair e se despedindo da esposa; “Tchau, darling, vou dar uma navegadinha e ver se descubro algum rio pela aí e já volto”. A esposa, concentrada fazendo um bolo inglês, atira-lhe um beijinho de longe e, quando vê, meses depois, ele volta com a notícia: “Honey, você não vai acreditar, mas descobri justamente o Rio Hudson”! Não é fascinante?

Tantos rios no mundo àquela época ainda a serem descobertos pelos navegadores e o Hudson dá de cara justamente com o Rio Hudson! É uma chance em quantas? Mais difícil do que eu me embretar aí pelos morros da Serra e amanhã topar com o Rio Kirst. Jamais viverei essa glória. Até porque, o das Antas já foi descoberto há tempos...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de setembro de 2015)

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Na mira do dragão

No começo, era um dragão. Nitidamente um dragão, de perfil. A bocarra escancarada, alguns dentes mais salientes ajudando a compor o ar selvagem e misterioso característico da personalidade dos dragões, mesmo que nem todos eles sejam, necessariamente, selvagens, porém todos, sem exceções, misteriosos, isso sim. O furo na parte superior frontal fazia as vezes de olho. Olho de dragão. Um dragão completo, portanto, com olho, bocarra, dentes e ares de mistério.
Não era possível vislumbrar o corpo do dragão. Não. Via-se tão-somente sua cabeça, mas aquilo bastava para dar a certeza de que não se tratava de nenhuma outra coisa senão um dragão. Um óbvio e ululante dragão, mesmo que dragões não sejam óbvios e tampouco ululem. E estava faminto. Via-se que desejava devorar alguma coisa logo adiante de sua boca, agora salivante, e o salivante aqui corria por conta de minha imaginação, já que gotas de saliva não eram visíveis, mas pressentíveis. O que era aquilo que o dragão estava prestes a abocanhar?
Desviei minha atenção do dragão e pousei-a por alguns instantes sobre as formas do objeto, ou do ser, que em breve se transformaria em lanche da tarde daquela mística criatura manifestada às minhas vistas. Uma bola? Não, não era exatamente uma bola. Além do mais, nunca ouvi dizer que dragões devorassem bolas. Nem mesmo na Wikipédia, onde tudo é possível e imaginável. Não, bola, não. Talvez um croissant. Sim, estava mais para croissant. Vai que fosse um dragão criado em território francês, apreciador de acepipes de qualidade, como croissants! Um dragão preparando-se para engolir um croissant gigante. Sim, podia ser isso mesmo. Vejamos agora o quadro todo.
Mas, epa, que fim levou o dragão? Ele estava ali agora há pouco, enquanto eu desvendava a essência do objeto ao seu lado, na iminência de ser por ele devorado. Não há mais dragão nenhum. No melhor das hipóteses, a misteriosa criatura descambou para um jacaré desqualificado, a boca torta caindo para o lado e, sim, agora, sim, dá para ver uns pingos de saliva voando para a direita e, nossa, é vento demais, esfacela-se o dragão/jacaré e, do croissant, nem mais sinal. Tudo se evapora em fiapos em questão de segundos, as formas desvanecendo nos cantos da memória e a imaginação refluindo para dentro, e de volta ao trabalho, que há muito a fazer e o dia ainda é longo, chega disso de ficar flertando nuvens em horas de expediente!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de setembro de 2015)

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Nu sem a mão no bolso

Nós, seres humanos, somos uns bichos esquisitos. Pertenço à espécie há quase meio século e continua sendo difícil me acostumar. Fazemos coisas complicadas de explicar e, na maioria das vezes, não temos maturidade para arcarmos com as devidas consequências. Há quem defenda a tese de que errar é humano e que persistir no erro é burrice. Porém, quanto mais conheço os humanos – até por ser um típico representante deles –, mais me convenço de que o ditado carece de calibragem. O correto talvez seja: errar é burrice; persistir no erro, isso sim, é humano, infelizmente.
Mas eu falava sobre esquisitices humanas, e vamos ficar hoje na superficialidade delas mesmo, porque não estou lá muito a fim de mergulhar nas águas profundas da filosofia (anti) humanística, especialmente em uma semana como esta, mais curta devido a um feriadão tão benfazejo e tão humanitário. Pois não é esquisita essa mania que temos, nós, bichos humanos, de nos cercarmos de tantos penduricalhos e aparatos artificiais, a ponto de, quando eventualmente saímos à rua sem eles, nos sentirmos nus, pelados, como se retrocedêssemos aos tempos das cavernas? Sim, porque, na era das cavernas, reza a História e a Antropologia que andávamos nus em pelo e barba. Eu não contraponho porque tenho só quase meio século de existência, como já disse, e não me lembro de nada antes de meu nascimento e juro que só ando pelado dentro do box do banheiro.
Mas confesso que me sinto nu quando saio às ruas sem minha pasta de trabalho, por exemplo. Minha esposa sofre a mesma vertigem quando sai de casa sem a bolsa. Meu cunhado, sem o aparelho celular (smartphone, corrijo-me); minha irmã, sem as chaves da casa; minha cunhada, sem meu sobrinho; meu outro cunhado, sem a camisa do Grêmio; um amigo meu, sem seus livros; outro amigo, sem a carteira; o sogro, sem o pente. Em resumo, somos, todos, dependentes dos penduricalhos nos quais nos escoramos para justificar a nós mesmos o tamanho de nossa frágil humanidade.

Somos esquisitos, é verdade, mas esse aspecto soa mais engraçado do que qualquer outra coisa (eu avisei que hoje tenderia para o sumo do superficial). De qualquer forma, preocupante mesmo seria sairmos de casa desprovidos de nossa humanidade e não nos sentirmos nus por causa disso. Agora, sim, a coisa aprofundou um pouquinho. Pensemos. Até amanhã.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de setembro de 2015)

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Vândalos virtuais

Da mesma forma como no mundo real, o universo virtual também é infestado pela praga dos mal-intencionados, legião que só faz crescer a olhos vistos e digitados. Se do lado de cá dos computadores precisamos nos precaver contra as ações de estelionatários, criminosos, bandidos, enganadores e espertitos, do lado de lá das telas precisamos tomar doses cada vez maiores de prudência para não sermos presas fáceis da engenhosidade malévola de quem quer tirar vantagem a todo o custo dos imprudentes, aliados ao bando dos que querem mesmo é anarquizar. É bom estar sempre alerta.
Todos já estão carecas de saber (ou deveriam estar) da existência dos hackers, aqueles nerds especializados em programação de computadores que conseguem invadir a sua máquina à distância por meio de programas-espiões, a partir dos quais roubam suas senhas de cartões de crédito e das contas bancárias e fazem aquele estrago nas suas finanças. Isso é uma coisa. Há também os criadores de vírus, cujas funções variam desde estragar sua máquina até apagar programas e arquivos, roubar senhas, zerar seus escores nos joguinhos, entre outras maldades irritantes e destrutivas. Isso é outra coisa, parecida com a primeira coisa. Coisas da mesma laia, em última análise.
Mas existe outro tipo de terrorista virtual em relação ao qual é preciso estar alerta, sob risco de sair pela aí reproduzindo informação errada e passando recibo de anta. Trata-se dos vândalos da informação, aqueles engraçadinhos que não têm graça nenhuma, cujo prazer psicopata é esculhambar sites ditos informativos, plantando neles dados errôneos. Claro que todos sabem (ou deveriam saber) que sites como a Wikipédia, por exemplo, não são confiáveis, uma vez que são domínios abertos ao público, ou seja, qualquer um pode acessar e inserir ali o que bem entender, sem que haja nenhum processo de triagem que garanta a lisura dos dados. Problema, e aí é que vem a coisa, é que as pessoas cada vez mais se utilizam de sites como esses para buscar e, pior, repassar informações que, algumas vezes, estão bombardeadas de erros.

Daqui a algum tempo, corre-se o risco de estarem dizendo que o Brasil é uma monarquia parlamentarista democrática, quando, na verdade, sabemos que o regime de governo aqui é... é... é o que, mesmo? Puxa, e agora?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de setembro de 2015)

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Quando pinga na conta

Hoje a crônica vai ser daquele tipo “seção pegadinha”, você sabe como é? O amigo leitor, a estimada leitora, já foram submetidos a essa espécie tão comum de crônica antes? Não? Sim? Não lembram? Nem sabem do que eu estou falando? Bom, então, o negócio é seguir adiante e ver no que é que vai dar.
Crônica do tipo “pegadinha” é dessas que começam propondo uma questão ao leitor, a servir de gatilho para remetê-lo a um mergulho dentro dos meandros (“meandros” caiu aqui como uma luva) de sua própria memória. Por exemplo: “onde você estava quando morreu Ayrton Senna?”. Ou ainda: “o que você estava fazendo quando morreu Tancredo Neves?”. Opa, essa última aí não faz o menor sentido para leitores que não estavam fazendo absolutamente nada pelo simples fato de não terem sequer nascido à época do ocorrido, isso se supusermos a eventualidade de eu ter de fato leitores com menos de 30 anos de idade. Mas essa aqui é comum a todos: “onde você estava, com quem estava e o que pensou quando o Brasil levou sete a um da Alemanha na última Copa do Mundo?”. Han? Preferiu esquecer completamente o episódio? É, foi mal, essa aí não serve de bom exemplo para nada mesmo.
Bom, mas o leitor e a leitora já entenderam o espírito da coisa e podemos seguir em frente. O que eu queria era convidá-los a recordar o destino que deram ao primeiro salário que receberam em suas vidas de trabalhadores, uma vez que o que fazer com o salário, quando o temos, e quando (e se) ele pinga na conta, é uma das questões que mais andam apoquentando o cotidiano dos brasileiros nesses hodiernos tempos de crise (já o “hodiernos” ali foi odioso, admito). Você se lembra de seu primeiro salário e o que fez com ele? Eu me lembro.

Os idos eram o final dos anos 1980 e eu começava como repórter de um jornal diário em Santa Maria da Boca do Monte. Recebi o olerite (ahá, olerite!), conferi os cifrões que me cabiam e parti firme para a mais tradicional loja de calçados daquela região, onde adquiri dois pares de sapatos. Depois, corri até a livraria e comprei um manual completo sobre a arte da diagramação de jornais (investimento em aprimoramento profissional) e outro com reproduções luxuosas de telas do pintor Salvador Dalí. Foi em sapatos e livros que gastei meu primeiro ordenado. Artefatos que vêm guiando meus passos por estradas tanto tangíveis quanto imaginárias, ao longo da vida. De minha parte, creio que comecei investindo certo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de setembro de 2015)

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Bendito dito

Diz o ditado popular que você não pode julgar um livro pela capa. Sim, concordo, todos concordamos. Aliás, é de lei concordar com a essência dos ditados populares. Qualquer pessoa municiada de bom senso concorda, afinal, o que os ditos ditados populares fazem é encerrar em si toda a carga conceitual de uma visão de mundo compartilhada pela esmagadora maioria da população. Por isso é que são populares. Os ditados impopulares, por outro lado, até tentam lá ditar as suas coisas, mas são refutados pelo gosto do povo e acabam sugados pelas bocas-de-lobo da História. Da História dos ditados populares, diga-se, mas não de passagem.
Ninguém vai sair por aí repetindo um ditado impopular, porque, em fazendo isso, estará incorrendo em uma contradição em si mesma, uma vez que o próprio ato de evocar o ditado, tirando-o da sombra, o populariza, e ele, de impopular que originalmente era, passa imediatamente a ser alçado à categoria de ditado popular, que é ao que todos os ditados, em última análise, aspiram. E não podemos ser condescendentes – e muito menos coniventes - com as aspirações escusas dos ditados impopulares. Nós, não, jacaré! Tenho dito!
Mas falávamos do dito ditado referente às capas dos livros, que são insuficientes para determinar a qualidade do conteúdo literário que envolvem. Uma capa de livro bela, atraente, bem transada, não significa que a literatura nele contida está em igual patamar em termos estético-literários. Às vezes, ocorre justamente o contrário, e então, estaremos comprando gato por lebre e trazendo à luz outro ditado popular que momentaneamente neutraliza e impopulariza o ditado anterior. É claro que uma capa bonita, bem transada, conforme já dito, tem o poder de nos aproximar do objeto livro, especialmente quando pouco sabemos a respeito da obra e menos ainda sobre o autor.

 É só depois de efetivado o contato inicial, viabilizado pelo poder de atração exercido pela cosmética da capa, que passaremos a conhecer em detalhes a consistência do conteúdo do livro. Disso dependerá nossa decisão de nos afastarmos dele, ou de nele mergulharmos, independentemente da capa. Eis aí a sabedoria popular do ditado, já que serve de metáfora óbvia para tanta outra coisa. Bendito aquilo que está bem dito, ponho-me aqui a criar ditado novo, para ver se populariza.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de setembro de 2015) 

sábado, 5 de setembro de 2015

Monarquia em alta

Francamente, venha cá, vamos combinar: estamos carecas de saber que não faz o menor sentido viajar a Roma e não ver o Papa, ainda mais agora, sendo o Papa um tomador de chimarrão igual a todos nós. Todos os outros deslizes semelhantes são até desculpáveis, como ir à Inglaterra, ficar mosqueando na frente do Palácio de Buckingham durante horas e não ver a Rainha, como fez certo cronista mundano caxiense um par de meses atrás, e nem vou dizer quem, para não gerar constrangimentos e intrigas literárias.
Ou atravessar a Grã-Bretanha até o Lago Ness, no norte da Escócia, e não avistar nem sinal de Nessie, o monstro pop-star que habita aquelas escuras e misteriosas águas, como fez outro mundano cronista de nossa cidade na mesma época, e de novo não vou revelar quem, para não ser tachado de destruidor de reputações literárias. Tudo isso, exceto a questiúncula ali relativa a Roma e ao Papa, é plenamente justificável e compreensível, perdoável, até, quando for o caso. Mas não se aplica perdão nenhum ao sujeito e à sujeita que (igual à questão do Papa e a viagem a Roma), estando em Caxias do Sul neste feriadão, mais especificamente no sábado à noite, não direcionar suas atenções à escolha do novo trio de soberanas da Festa da Uva, evento que mobiliza a comunidade inteira, onde, conforme diria minha avó, se o pudesse, “só se fala em outra coisa”.
Perdoável não ver a Rainha em Buckingham; perdoável não avistar Nessie no Lago Ness e, vá lá, perdoável também não ver sequer o Papa em Roma, porque o Papa é o Papa e perdoaria tamanha distração. Mas não ter candidata a Rainha da Festa da Uva, ah, convenhamos! Até eu tenho! Nunca vi o Papa ao vivo, nem Nessie e tampouco a Rainha da Inglaterra, mas vou acompanhar o evento de escolha no sábado à noite, e torcer pela minha candidata. Afinal, sou filho adotivo desta terra há 23 anos e também me sinto, sim, representado pela simpatia, pela inteligência, pela cultura, pelo carisma e pelo charme (pela beleza não, porque elas, belas que são, não representam nem de longe minha cara de uva chupada pelo Monstro do Lago Ness) das futuras Rainha e Princesas, sejam elas quem forem. Façam suas apostas e boa torcida a todos.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de setembro de 2015)

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Independentes. Será?

Sempre que lanço os olhos sobre o calendário, ponho-me a pensar a respeito das datas que ele encerra, do significado de algumas delas. Umas, pessoais (como a de meu aniversário, por exemplo, a que eu mais gostava até os 15 anos de idade, e a que mais camuflo depois dos 40) e, outras, locais, nacionais e universais. Agora, por exemplo, o dia que se diferencia no calendário de mesa recebido de presente por generosidade extrema da agência bancária que para guardar o dinheiro que tenho cobra o dinheiro que não tenho, é a do 7 de setembro vindouro próximo, feriado, naturalmente.
Desde que me lembro por gente, comemora-se o 7 de setembro. Dando uma pesquisadinha básica (eu e as pesquisas, lembram?), não foi difícil descobrir, para minha surpresa (pessoas autocentradas levam muitas surpresas quando descobrem que as coisas não giram sempre ao redor de seu umbigo), que o 7 de setembro é comemorado há muitos anos antes de eu ter me descoberto por gente, lá pelos sete anos de idade, no início da década de 1970. Primeiro, a data passou a me chamar a atenção porque era o dia em que não havia aula, porém, tínhamos de, mesmo assim, vestir o uniforme do colégio e sairmos da cama bem cedo, no frio (em setembro ainda faz frio, desde aqueles idos), para irmos marchar na praça, ao som de bandas marciais.
Demorou ainda alguns anos para passar a ter a noção de que a data evocava mais do que apenas um dia de folga (se é que marchar na praça por obrigação pode ser considerado como folga, vá lá), mas tratava-as da celebração da Independência do Brasil do jugo de Portugal, feita por Dom Pedro I, em 1822. Muitíssimo antes de eu nascer, portanto. Mais sete anos e se comemorará o Bicentenário da Independência. E é aí que entra em cena o tal do “eu pensando ao olhar o calendário”. Independência de que, mesmo? Ah, sim, de Portugal.

Pois é. Dos ditames de Portugal, nos livramos há quase 200 anos. Falta ainda nos independizarmos da ação das quadrilhas de corruptos, da violência urbana, dos maus governantes, da falta de educação do povo, da pobreza econômica e cultural da sociedade, da falta de cidadania e de tantas outras coisas que o leitor e a leitora ajudam a completar. Libertar-se de Portugal, visto agora, em retrospecto, parece ter sido fichinha. Mas Dom Pedro I não está mais aí para comparar, né. Do resto, cabe agora a nós darmos nossos gritos do Ipiranga.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de setembro de 2015)

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Linhas tortas

Alguém andou me perguntando pela aí, pelos cafés da vida, qual a relação que existe entre a leitura de um bom livro e o ato de saborear uma torta. Sim, isso mesmo. Desafios intelectuais dessa estirpe rondam as mesas dos cafés cult daqui de nossa região (e não são poucos na Serra Gaúcha, felizmente) e pousam nas mesas dos fregueses, indiscriminadamente, sem fazer triagem de nível educacional, nível econômico, nível intelectual, time do coração, assepsia e humor.
Quando você menos espera, logo depois da chegada de seu cappuccino com chantilly acompanhado por uma lasquinha de laranja cristalizada, a sorridente garçonete dá as costas e pá!, aterrissa na nossa mesa um desafio cerebral como o exemplificado ali em cima, e você não tem como escapar dele, sob pena de ser visto por seu companheiro de mesa (e pelos que estão ao redor, que ficam a espichar as orelhas para pescar fiapos das conversas alheias, que bem sei), sob pena de ser visto por todos (repito o termo sempre que interponho intercalações quilométricas na frase, que prejudicam o acompanhamento do raciocínio por parte do leitor), sob pena de ser visto por todos (ai, isso está cansando) por todos como um pobre inepto discursivo. E eu não sou um pobre inepto discursivo, minha senhora, meu senhor, ah, isso não sou, não! Inepto posso ser em muitas áreas, admito, mas menos nas cursivas e discursivas. Deixa comigo que eu tasco!
Como era mesmo a questão que caiu aqui, quase em cima da pirâmide de chantilly ainda sequer escavada com a colherinha em busca de vestígios de café? Qual a relação entre a leitura de um bom livro e o ato de saborear uma boa torta? Ah isso é fácil. Basta pensar, por exemplo, em uma suculenta Marta Rocha, e no prazer que existe em ir desfrutando seus sabores, cada garfada abocanhada representando uma página bem moldada de um livro bom. Uma garfada, uma página. Um lento mastigar decifrando as delícias escondidas na torta, no mesmo ritmo e cadência do mastigar metafórico do sentido das linhas lidas no livro bom. Eis aí a relação entre torta e leitura, prezado comensal, prezado leitor e querida leitora.

Dez com estrelinha para mim, acostumado que sou a me sair bem em desafios intelectuais profundos como o aqui citado, nem que seja por linhas (e) tortas.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de setembro de 2015)

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Quem pesquisa, sabe

Dedicado a fazer algumas pesquisas, acabei descobrindo certas coisas que até então, antes de começar as pesquisas, eu não sabia, fato que, por si só, revela, demonstra e atesta o bom termo a que vieram dar essas tais minhas pesquisas, uma vez que o mínimo resultado que se espera de uma pesquisa, quando iniciada, é que a seu cabo ela forneça dados que se configurem na condição de novidades, ao menos, para o pesquisador, porque senão, do contrário, de que serviria dedicar-se a fazer pesquisas não fosse pela iminente certeza de obter delas novos conhecimentos? Como é, madame? Gostaria de dar uma paradinha para recuperar o fôlego? A frase foi quilométrica sem que houvesse aviso inicial para os de pouco preparo? Ok, percorra então devagar o espaço em branco após o ponto final e nos encontramos no início do segundo parágrafo. Aguardo-a lá.
Oi, tudo bem? Recuperada? Tentemos seguir com frases mais curtas, a partir de agora. Tipo esta. Assim está bom? Ok. Então, como eu ia dizendo (a senhora pode dar uma paradinha também nos dois pontos, como agora): devido às minhas pesquisas, cujo teor não vem ao caso, acabei descobrindo, por tabela, o significado do nome da cidade catarinense de Blumenau, que se chama, vejam só, Blumenau. E por que motivo Blumenau se chama Blumenau? A senhora sabe? Não? Nem eu, mas fiz pesquisas. A senhora fez pesquisas? Pois se fizesse, talvez descobrisse, como eu descobri, que Blumenau evoca o sobrenome de uma figura importante para aquela cidade, o senhor Hermann Bruno Otto Blumenau, um imigrante alemão, filósofo e químico, que fundou aquela cidade, na metade do século 19. Fundou a cidade e foi homenageado e eternizado dando-lhe o nome. Seu próprio nome. Sabia? Eu não sabia.

Assim se dá também, madame, com várias outras cidades de nosso país, e nem nos damos por conta. Florianópolis homenageia Floriano Peixoto. Petrópolis (“a cidade de Pedro”) homenageia o Imperador Dom Pedro II, que a fundou. Caxias do Sul homenageia o Duque de Caxias, que também é homenageado em Caxias, no Maranhão, e em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Eu não tenho nenhuma homenagem citadina, uma vez que desconheço Marcópolis ou Kirstópolis (não, senhora, Patópolis não é em minha homenagem, a senhora está me tirando?). Mas, enfim, isso mostra como são importantes as pesquisas para o aprimoramento de nosso conhecimento geral. Aguardem os próximos compartilhamentos...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de setembro de 2015)

terça-feira, 1 de setembro de 2015

A hora do polichinelo


Eu não gostava dos professores de educação física, no colégio. A sentença encerra uma contradição em si, porque, na verdade, o que eu não gostava mesmo era das aulas de educação física, e acabava projetando nos professores toda a intensidade de minha não-gostança daquelas horas que, para mim, eram quase tortura. Os professores, em si, não tinham nada a ver com esses meus gostares e desgostares, que não servem de escala para medir a personalidade de ninguém.
Na verdade, hoje, olhando em retrospecto, percebo que os professores de educação física que tive ao longo de minha vida de estudos (primeiro e segundo graus e universidade) eram boas pessoas, educadores esforçados, profissionais, figuras bacanas, camaradas, coisa e tal. Problema mesmo era eu, que, resignado, enfiava o calçãozinho em casa e os kichutes a partir de um ritual mecanizado conduzido pela imperiosa necessidade de obter a frequência necessária para não acabar amargando no final do ano a vergonha de ficar de recuperação em... educação física! E ia-me eu lá, para as aulas de educação física, duas vezes por semana, correr em volta do campo ou da quadra, fazer dez apoios, dez polichinelos (eu odiava polichinelos devido à exposição pública sistemática de minha falta de coordenação motora), meu fôlego se esvaindo, o coração querendo sair pela boca e a alma rezando para voltar correndo para casa desenhar histórias em quadrinhos e continuar lendo as aventuras de Pedrinho nas imensidões do Sítio do Picapau Amarelo.
Sem falar que tinha a questão dos óculos, essa parte integrante de meu corpo que nasceu comigo e que era a mais prejudicada nesses momentos. O suor jorrava sobre as lentes e as embaçava enquanto eu corria. A armação era alvo preferencial das bolas de futebol, de tênis, de vôlei e de basquete nas quadras, onde não podia tirá-la sob pena de sair sempre correndo rumo às paredes dos ginásios; e eram indispensáveis nas aulas de natação para que eu pudesse diferenciar a superfície do fundo das piscinas. É, também tinha isso.

Mas sobrevivi, cá estou, saudável e faceiro, a ponto de poder redimir minha lembrança daqueles ótimos professores de educação física e de poder estender meus parabéns a todos os profissionais dessa área, cujo dia se comemora hoje.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de setembro de 2015)