sábado, 31 de outubro de 2015

Chega de bruxa importada

Você, eu não sei, mas eu já vi. Juro que já vi. E não apenas uma, mas várias vezes. Passei a ver com mais frequência depois de perceber que, para essas coisas, basta ter olhos para ver. Aí sim é que a gente passa a ver mesmo. E eu via muito, especialmente na infância. Eu via, via, via.
Via embaixo da cama de meu quarto no meio da tarde, enquanto fazia os temas da aula; via na casa de minha avó materna, no meio dos moranguinhos da horta; via no pátio de minha avó paterna, no canteiro de flores; via empoleirado nos galhos mais altos da timbaúva no quintal de casa na Rua dos Viajantes. Via por tudo. E quando não via, ouvia. Ouvia a risadinha sapeca denunciadora de sua presença depois que alguma arte era flagrada pelos adultos (e a culpa acabava recaindo sobre algum de nós, as crianças); ouvia o barulho de uma xícara sendo quebrada por arte dele; ouvia o alvoroço das galinhas no galinheiro, já que pregar sustos nas penosas era uma de suas traquinagens favoritas; ouvia o relincho dos cavalos na fazenda de meu avô, quando tinham seus rabos e crinas trançados em nós produzidos por suas mãos habilidosas.
E quando não via nem ouvia, cheirava. Sim, porque o aroma do fumo proveniente de seu cachimbo, sempre aceso, denunciava de longe sua presença, especialmente para quem estava sempre atento às suas peraltices, como eu, depois que descobri que ele existia lendo os livros de Monteiro Lobato e os gibis do Ziraldo. Desde que me lembro por gente, a figura do Saci-Pererê, com o gorro vermelho, fumando cachimbo e pulando em sua única perna, às vezes transportado por um redemoinho, integra o extenso time de personagens criados pela imaginação humana que fazem companhia à minha existência no mundo real. Meio esquecidinho pelas crianças de ontem e desconhecido das de hoje, o Saci conta com um grupo de defensores de sua memória reunidos em uma entidade chamada Sosaci (Sociedade dos Amigos do Saci), que conta com cerca de 1,1 mil associados em todo o país. O que eles querem é preservar a imagem dessa figura do imaginário brasileiro instituindo a data de 31 de outubro como o Dia do Saci (já existe projeto de lei federal tramitando no Congresso nesse sentido).

Sim, porque, quem é que precisa importar bruxa e Halloween dos estrangeiros, se temos seres de sobra no folclore nacional para povoar com criatividade a nossa imaginação? Tô nessa! Voto pelo Saci!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 31 de outubro de 2015)

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

O balconista embrulhado

Hoje é o Dia do Balconista. Eu já fui balconista. Isso foi há muito tempo. Muito, muito tempo atrás. Obviamente que não segui a carreira de balconista, apesar de essa atividade ter se configurado como o meu primeiro emprego. Muito tempo atrás, e por pouco tempo. Mesmo assim, aceito orgulhosamente os parabéns pela passagem da data comemorativa, por parte de quem quiser parabenizar-me. Obrigado, obrigado. Mas eu não mereço.
Não mereço porque não fui um representante competente desta categoria profissional. Nas três ocasiões em que me dediquei a atuar no ramo, colecionei atrapalhos capazes de fomentar um livro cômico ou uma típica crônica mundana daquelas que certo cronista costuma publicar neste jornal, neste exato espaço, vez que outra. Só o que ouso adiantar é que, sobre o balcão no qual atendia na adolescência, durante as férias escolares, cuidando do negócio de secos e molhados de um tio-avô que se tocava para a praia, fiz misérias sob os olhares incrédulos da freguesia que meu parente tanto suava para conquistar ao longo do ano. Pergunte ao balcão, algumas marcas ainda devem estar por lá, na distante Ijuí.
O problema mesmo era na hora dos embrulhos, de fazer os pacotes contendo os produtos que o cliente adquirira. Aquela coisa de dobrar o papel pardo, de enfileirar direito os vidrinhos, de acertar a fita durex, de... Bom, deixemos prá lá, que a tônica aqui hoje é outra. Os detalhes ficam por conta da imaginação do leitor que, tenho certeza, jamais conseguirá se aproximar do que foi a triste realidade. Aquela cena de o cliente saindo da loja e o barulho dos vidros se espatifando contra a calçada instantes depois e... Mas, já disse, deixemos prá lá!

O que importa é que desisti da carreira de balconista (o cliente voltando para a loja, a fumacinha saindo pelas suas orelhas...) e fui me dedicar a atividades mais afins com minha verdadeira vocação (a forma como socava o balcão, exigindo a reposição dos produtos...), porque um dos segredos da vida é justamente saber identificar em si (a suprema humilhação de o cliente exigindo que o novo pacote fosse feito por qualquer um da loja, menos eu...) as aptidões que lhe vão trazer realização pessoal ao longo da vida (e eu olhando a destreza com que o colega empacotava, ele, sim, um balconista de verdade!). Afinal, há um galho específico à espera de cada macaco.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de outubro de 2015)

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

O amor e a cadeira

Que relação pode haver entre uma cadeira e o amor? Ou entre uma batedeira, o amor e o ódio? Ou, ainda, entre uma caneta, o calor e o amor? A princípio, nenhuma, apressar-se-á em sentenciar o leitor mais afoito, a leitora mais desavisada. Mas como, felizmente, sou um cronista mundano brindado com a atenção generosa de leitores nada afoitos e de leitoras avisadíssimas, não corre esta singela crônica o risco de ser mal interpretada e de ecoar suas mensagens no vazio. Nada disso. Extrairemos, sim, muito sumo desta pera, basta seguirmos adiante.
Qual, então, a relação entre os sentimentos acima elencados e objetos tão díspares como uma batedeira e uma cadeira e a sensação de calor? Ora, toda, todíssima, se abandonarmos por alguns instantes a tendência de avaliarmos o mundo a partir da lógica cerebral e cartesiana e abrirmos espaço para o domínio da imaginação e da poesia. Uma batedeira pode, sim, encontrar sentido e revelar simbologias mil ao se deparar com a sensação de amor ou de ódio, dentro dos versos de um poema que vai sendo moldado à luz de uma súbita inspiração ou de um desafio proposto por um escritor no auditório de uma escola aos estudantes que se debruçaram a esquadrinhar uma das obras de sua autoria.
Foi o que aconteceu este mês durante dois encontros que tive com os criativos, artísticos, dedicados e reflexivos alunos das turmas das sétimas e oitavas séries do Ensino Fundamental e dos primeiros, segundos e terceiros anos do Ensino Médio do Colégio Mutirão Objetivo, em Caxias do Sul, dentro do programa “Encontro com o Escritor”, desenvolvido ali pela responsável pela Biblioteca, Domingas Giacomin, e pelas professoras de diversas disciplinas. Depois de apreciar os trabalhos artísticos criados pelos alunos que leram e refletiram sobre um de meus livros, lancei às turmas o desafio de produzirem ali, ao vivo, algum poema a partir de palavras escolhidas em conjunto e ao acaso. Foi quando batedeira rimou com amor e cadeira desbancou o ódio, entre outras sacadas poéticas de qualidade e surpreendentes.

Porque a Poesia sempre pode existir desde que tenhamos olhos para vê-la, coração para senti-la, vontade para acolhê-la. E ela, em podendo agir, faz uma diferença enorme nas nossas vidas e no mundo que nos cerca. Isso aprendi com os alunos do Mutirão. E consegui até fazer crônica unindo cadeira e amor, conforme fui desafiado pelos alunos. Afinal, “tudo vale a pena, se...”, não é mesmo, Poeta?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de outubro de 2015)

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Pegar pelo pescoço

Costuma ser batata! Estando eu de polegar enterrado no botão dos canais do controle-remoto da tevê, zapeando para cima, des-zapeando para baixo, vira e mexe eu estaciono no primeiro canal que esteja exibindo algum documentário sobre vida selvagem. Isso porque sou fissurado em bicho. Seja savana africana, Pantanal brasileiro, deserto do Saara, selva asiática, o que for, aparecendo bicho, eu travo e fico. É o que basta para logo ter a sala toda ela só para mim, a esposa debandando para o quarto assistir na tevê de lá a alguma outra coisa menos animal e eu me adonando de todo o território e do acesso mais rápido aos suprimentos de porcarias na geladeira e na despensa. Viro o rei leão da sala sem ter sequer de urrar.
Daí fico hipnotizado pelos anéis coloridos da cobra-coral, pela agilidade matreira do guepardo (que é bem diferente de leopardo), pela dança de acasalamento das avestruzes, pelas artimanhas das hienas, pela inteligência dos elefantes e dos golfinhos, pela ternura da mamãe-gorila com seus filhotes, pela organização coletiva dos cupins, pela fome canibal da fêmea do louva-a-deus, pela esquisitice do ornitorrinco, pela esquisitice maior ainda da equidna (que tenho certeza de que a amiga leitora sequer sabia que existia, ahá!), pelo colorido esdrúxulo do mandril, pela semelhança da ave kiwi com a fruta do mesmo nome (e que me diz dessa?), pela ferocidade do dingo, pela elegância do tigre-de-bengala (apesar da bengala), pela solidão da morsa, pela doçura do suricato (sou fã dos suricatos) e por mais, muito mais.

Noite dessas, de zapeada típica, descobri que as leoas, lá nas selvas africanas, detestam as girafas, porque elas são tidas como “as fofoqueiras das savanas”. Aquela coisa: a leoa está lá, barriga encostada no solo, olhos fixados na saborosa zebra que está dando mole logo adiante e, quando se prepara para dar o bote final que garantirá o jantar de toda a ninhada e do maridão (que não faz nada, por sinal), a girafa, pescoçuda e de olho em tudo o que se passa ao redor, dá o alerta com um grito e a zebra dá no pé. Ou melhor, nas patas, deixando a leoa a ver navios imaginários. E morrendo de raiva da girafa, querendo pegá-la pelo pescoço. Que coisa mais odienta essas girafas. Mas o mundo animal tem dessas coisas, fazer o quê.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de outubro de 2015)

terça-feira, 27 de outubro de 2015

O preço de ser mau


Nem sempre saber das coisas é uma boa ideia. Às vezes, permanecer na ignorância, especialmente quanto a questões relativas a você mesmo, pode ser mais saudável para a manutenção de sua sanidade mental e autoestima. Diz a Bíblia que a queda da humanidade começou a se dar a partir do momento em que Adão e Eva, burlando as regras impostas pelo Criador no jardim do Éden, decidiram experimentar, sim, do fruto da Árvore do Bem e do Mal, aquele que, ao ser degustado, lhes abria as portas da percepção e lhes proporcionava conhecimento. Perderam, assim, a inocência que lhes permitia seguirem habitando o Paraíso e dele foram expulsos.
Trata-se, a passagem bíblica, de uma metáfora poderosa para demonstrar que o acúmulo de conhecimento está direta e inversamente ligado à manutenção da inocência, representada pelo pouco saber das coisas. Quanto mais sabemos, menos ignorantes e menos inocentes somos. Nem sempre trata-se de uma questão de opção possuir o acesso ao saber. Mas possuir esse acesso e decidir não usufruir dele, aí, sim, é questão de exercício do livre arbítrio. Podemos optar por não saber e, assim, engrossarmos deliberadamente as fileiras dos ditos piores cegos, que são aqueles que, como atesta o ditado popular, têm olhos mas não querem ver.
Digo isso tudo porque eu, ontem, ao ler uma notícia na internet, descobri algo sobre mim mesmo que preferiria não ter tido conhecimento. Cheguei à conclusão, minha senhora leitora, meu prezado leitor, que eu sou uma pessoa má. Muito má. Sou mau, mau, mau, mau, mau. Acompanhem meu raciocínio. Li que saiu na revista “Forbes” a notícia de que o homem mais rico da China, o senhor Wang Jianlin, presidente e fundador do grupo imobiliário Dalian Wanda, simplesmente mais do que dobrou a sua fortuna em um ano. Ano passado, ele possuía 13 bilhões de dólares. Este ano, ele chegou aos 30 bilhões de dólares. Até aí, tudo bem. Jianlin deu uma entrevista à imprensa em que afirmou que “é bom ter dinheiro”. Até aí, tudo bem, também. Mas ele disse mais. Ele disse que “a maioria das pessoas que têm dinheiro, e muito especialmente as pessoas extraordinariamente ricas, são boas pessoas”.

Somando a mais b e noves fora, concluo, ao tomar conhecimento disso, que sou uma pessoa muito, muito, muito, mas muito má. Preferia não ter ficado sabendo disso...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de outubro de 2015)

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Fantasma na máquina

Eu fico maravilhado e acho tudo muito lindo, quando se trata dessa coisa de tecnologia. Agora, por exemplo, o tablet que eu tenho lá em casa (aquele aparelhinho, madame, parecido com um tablete de margarina - daí o nome -, só que três vezes maior, mais fino e que carrega a internet todinha dentro dele, sacou?), pois o meu tablet passou a ser habitado por um espírito eletrônico (“um programa”, me ensinam as novas gerações) que entende o que eu falo e cumpre as tarefas que eu ordeno. Genial!
Moderníssimo como sou, aprendi a organizar uma agenda eletrônica de minhas tarefas e compromissos apertando o botãozinho certo no tablet (e a porcaria do Word insiste em grafar “tablete” toda a vez que eu teclo “tablet” e tenho de voltar para suprimir o “e” que sobra) e simplesmente ordenando, em voz alta, no meio da sala: “agende reunião com Fulano de Tal, às tantas horas”! E pimba: a secretária eletrônica entende o que eu digo e tasca lá na agenda o compromisso, sem que eu tenha de digitar nada. Fantástico, supimpa, admirável mundo novo! Só que não. Nem sempre.
Ontem, por exemplo, entrei em briga feia com a secretária eletrônica, que subitamente se revelou pouco capacitada para as tarefas a que se propunha ao invadir meu tablet. Ela simplesmente não entende minha pronúncia para “dia 26”. No lugar disso, agendou meu compromisso para outros dias, ou para dias diferentes no horário das “vinte horas e seis minutos”. Pô, que dificuldade de comunicação! Resultado: tive de desistir do auxílio dela e digitar com meus dedões mesmo o compromisso na agenda eletrônica de forma correta. Fui obrigado a deixar de lado a ultramoderna tecnologia eletrônica e botar meu cérebro e meu corpo a agir, para conseguir o objetivo, que era simplesmente marcar a reunião.

E isso, amiga leitora, prezado leitor, isso é muito, mas muito bom. Porque isso significa que, ao menos por enquanto, as máquinas precisam se colocar no seu lugar, porque elas falham, sim senhor, e ainda precisam de nós, humanos, para desempenhar suas funções. É um alívio. Porque, até então, a gente estava condicionado a aceitar a teoria vista nos filmes antigos de que os robôs nunca falham... ca falham... ca falham... ca falham...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de outubro de 2015)

sábado, 24 de outubro de 2015

Nossa mão fechada

Nós, seres humanos, somos bons ou maus por natureza? Nossa essência em termos de espécie corresponde ao antigo mito do “bom selvagem”, que defendia que os homens nascem bons e o que os desvirtua é justamente o processo civilizatório? Ou, pelo contrário, os fundamentos da civilização refletem com exatidão os desvirtuamentos originais existentes na essência humana? Boas perguntas para um final de semana, hein?
Longe de ser uma questão que ocupa e preocupa somente filósofos, artistas, escritores, psicólogos e teólogos, também os cientistas andam às voltas com o problema, e não é de hoje. Conhecer a essência da espécie humana, a raiz das motivações de seus atos e sua forma de pensar e agir, se configura em instrumento de fundamental e vital valor para compreender as ações e reações humanas e aprimorar o convívio em sociedade. Afinal de contas, não é de hoje que nós, seres humanos, precisamos da imposição (às vezes por medo das consequências da Justiça, outras vezes, por temor da ira divina) de códigos de ética e de conduta para que possamos conviver minimamente em paz e harmonia, sem que prevaleça a ditadura de nossos instintos, de nossas raivas, de nossas invejas, de nossas paixões, de nossas cobiças e assim por diante. Daí as leis, daí os mandamentos. Não fosse assim, talvez nem mais existiríamos enquanto espécie.
Cientistas da Universidade de Utah (EUA) andam desenvolvendo uma pesquisa no sentido de descobrir quais as reais utilidades da mão humana no formato como a possuímos hoje. Além da destreza em agarrar objetos, manipulá-los e transformá-los, a mão humana é a única capaz, entre todos os seres do planeta, de formar um punho fechado e, com ele, desferir socos, muito mais agressivos, poderosos e destrutivos do que os tapas e os soquinhos de mão semiaberta com que os símios atacam e se defendem. Ou seja, nós, seres humanos, batemos melhor, agredimos melhor, ameaçamos melhor do que qualquer outra espécie humanoide ou símia que já tenha existido sobre a face da Terra.

Talvez a primazia do Homo Sapiens (que somos nós) sobre outras espécies de humanoides mais gentis e elevadas espiritualmente (como o Homem de Neanderthal, que coexistiu com os Sapiens e depois foi extinto) tenha se dado devido ao império do uso da força e da violência. Talvez esses sejam, em essência, os pilares de nossa civilização e de nossas almas. Talvez. Tomara que não.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de outubro de 2015) 

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

A idade do mundo

James Ussher é o nome da figura sobre quem vamos conversar um pouquinho hoje aqui neste espaço destinado ao preenchimento de certas mal-digitadas linhas, sempre de autoria deste que vos assombra. James Ussher, assim mesmo, com dois esses. Já ouviu falar? Não? Confesso que nem eu, até ontem, quando vasculhava sites e livros e jornais e revistas e enciclopédias e a memória em busca de um tema para a crônica de hoje (”um tema, um tema, meu reino por um tema”, acho que já li coisa parecida em algum lugar, porém, creio que o objeto de desejo do suplicante era algo mais equino).
Mas o James Ussher esse daí, com dois esses no sobrenome, foi um cara que viveu na Irlanda, onde nasceu, em Dublin, no ano de 1581. Depois morreu, em 1656, com a idade longeva de 75 anos, uma raridade naqueles tempos. Ao longo de sua vida, dedicou-se à religião, seguiu carreira na Igreja Irlandesa a ponto de se tornar Arcebispo de Armagh, coisa das mais importantes porque significava responder por toda a Igreja da Irlanda naquela época. E sendo o que era e quem era, o que ele dizia e escrevia virava lei. Especialmente o que escrevia, porque era um pensador dedicado a estudar as Escrituras Sagradas.
E foi estudando as mensagens secretas e subliminares que acreditava estarem escondidas sob o verbo impresso nos textos bíblicos que o James Ussher se botou a calcular a cronologia dos fatos do mundo, especialmente os descritos nos dois primeiros livros da Bíblia: Gênesis e Êxodo. Dessa maneira, publicou um livro que ficou muito famoso em toda a Europa, intitulado “A Cronologia do Mundo”, em que afirmava, por a mais b, que o universo havia sido criado exatamente às nove horas da manhã do dia 23 de outubro de 4004 antes de Cristo. Ou seja, segundo Ussher, o Universo faz hoje seu aniversário de 6019 aninhos.

A tese de Ussher foi levada a sério em grande parte do mundo ocidental durante muito tempo. Hoje em dia, também por a mais b (ou seja, usando-se a mesma técnica, que consiste em acreditar piamente naquilo que optamos por piamente acreditar), a maioria das gentes acredita que o universo é bem mais velho e não se pode (ainda) fixar com exatidão a data de seu nascimento. Eis que assim, demorou muito pouco para que testemunhássemos a queda da tese de Ussher, o que, por si só, poderia render um conto. Por enquanto, contentemo-nos com a crônica.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de outubro de 2015)

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

De olhos bem abertos

Nesse mundo em que vivemos, habitado e comandado por seres humanos, não podemos correr o risco de sermos ingênuos. A ingenuidade também tem um preço a cobrar e, na maioria das vezes, a conta é bem alta. Não significa defender que sejamos maquiavélicos, mal-intencionados e malvados como os Minions, não. Precisamos é saber nos defender das gentes que são desse jeito e, tão importante quanto isso ou até mais, precisamos saber nos precaver contra eles, contra suas intenções, contra suas atitudes, antever seus passos, detectar suas reais intenções, para não corrermos o risco de sermos conduzidos e manipulados como cordeirinhos a serviço de seus escusos interesses.
Não é fácil. É preciso estar sempre alerta. Afinal, ninguém dá nada de graça. Também não significa adotar a paranoia geral como estilo de vida e passar a detectar a ação de supostas teorias da conspiração em tudo, longe disso. Apenas é conveniente ficar atento para a manipulação dos fatos e aos discursos que, na verdade, camuflam as reais intenções das coisas. Nem sempre é assim, mas, muitas vezes, infelizmente, é, e é aí que mora o perigo. Em recente e muito lúcida entrevista concedida ao jornal Zero Hora, o Comandante do Exército Brasileiro, Eduardo dias da Costa Villas Bôas, fazendo uma análise de atual conjuntura internacional, com seus conflitos localizados, declarou: “qualquer confronto tem fundo econômico, mas se reveste de outros aspectos para ter legitimidade”. Bingo! Na mosca!
O Comandante referia-se especificamente aos conflitos armados registrado ao longo da história humana, mas sua reflexão vale para tudo. Tanto nas guerras, nas quais o fator motivador quase sempre é o econômico (que precisa ser camuflado) quanto em várias outras situações do cotidiano social, as verdadeiras razões que movem certos atos, movimentos, posicionamentos e discursos são camuflados sob o manto de teses palatáveis e defendíveis, fáceis de ganharem adeptos e apoiadores. Seria diferente caso os reais motivos fossem explicitados, portanto, é necessário dourar a pílula para que ela desça redonda.

E a pílula sempre desce redonda na garganta dos incautos e dos ingênuos, que se transformam em massa de manobra sem que se deem por conta disso. Aí é que mora o perigo, pois, como na Justiça, o argumento de não conhecer a lei não absolve a pessoa do crime que cometeu. Olhos foram feitos para serem mantidos abertos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de outubro de 2015)

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Sonho nababesco

Noite dessas, sonhei que era rico. Riquíssimo, segundo o que dava a entender o sonho. Não que estivesse pilotando iate e voando de jatinho particular, nada disso, porque em sonho, como sabem todos aqueles que sonham, as coisas não precisam ser explícitas para que você saiba o que está acontecendo. Sonho tem muito de sensação, e, pela sensação e pelo contexto do sonho de noite dessas, eu era, sim, rico. Riquíssimo. E daí? Ora, madame, siga lendo, que há, sim, um “e daí” aí.
Eu não gosto muito de narrar sonhos e também não gosto que me narrem os sonhos alheios, porque, sei lá, para mim, sonho é sonho, cada um com os seus, tanto os sonhados dormindo quanto os cultivados desperto, mas o sonho em questão, esse em que sonhei que era rico (riquíssimo), dá pano para crônica, então, a ele, e perdoem-me os leitores e também a madame, que eu sei que sempre me perdoa, valeu! Até porque, eu nunca sonho que sou rico, ao menos, não dormindo. Deve ter sido devido àquelas costeletas de porco assadas que comi no jantar. Também, nunca como costeletas de porco assadas no jantar. Assim, aplicando a lei da causalidade, chego à conclusão lógica de que a ingestão noturna de costeletas de porco assadas produz sonhos nababescos.
Bom, mas o sonho. Sonhei que eu, rico, participava ali no Vale dos Vinhedos de um seleto grupo de bilionários que estavam fazendo uma degustação de espumantes importados caríssimos, que só nós mesmos poderíamos pagar, orientada por um sommelier de gravata borboleta. Lá pelas tantas, no entanto, o sommelier arrancou de minhas mãos uma garrafa de um espumante raro, ainda mais caro que os demais, e foi levando lá para dentro, dizendo que aquela garrafa não, aquele espumante estava reservado para ser degustado amanhã, por um grupo composto por “ainda-mais-ricos”. Mas, como assim, “ainda-mais-ricos”? Eu não estava sonhando que era rico? Por que diabos haveria de haver em meu raro sonho de rico outros mais ricos do que eu? Por que não podia eu mesmo fazer parte do grupo dos “ainda-mais-ricos”, se o sonho era meu? Que droga de sonho tabajara era aquele? A crise anda tão terrível que até sonho de rico chega desvalorizado?
Indignado, acordei e pulei fora daquele grupo de ricos de segunda classe. Amanhã dobrarei o número de costeletas de porco assadas no jantar. Quero só ver. Aquele sommelier vai se ver comigo.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de outubro de 2015)

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Três no pódio

A semana começou com o pé direito, já com uma notícia boa e alvissareira vinda do balanço geral feito pela organização da 31ª Feira do Livro, que se encerrou domingo após 17 dias de debates, livros, livreiros, escritores e leitores transitando pela Praça Dante Alighieri. À parte a crise econômica que também se refletiu na queda das vendas de livros (41% a menos do que na edição do ano passado, o que não é pouca coisa), a parte boa ficou por conta da presença significativa dos autores locais na lista dos títulos mais vendidos este ano: dos dez mais procurados, três são escritores daqui. Bom, hein?
Eternamente campeã de vendas em qualquer feira literária, a Bíblia naturalmente também está na lista, ocupando uma das posições, até porque, ninguém vai ser desavisado a ponto de querer competir com o Autor desse atemporal best-seller. Sobram, então, nove posições a serem preenchidas por escritores terrenos e mortais e, entre elas, um terço ficou com os locais. Foram eles: Felipe Gremelmaier, com seu “Ora Bolas”; Pedro Guerra, com “Queda Livre” e o Patrono da Feira deste ano, Uili Bergamin, com “Cadê a Tampa?”. Juntos, os três venderam mais de 600 exemplares, o que é significativo em tempos de crise e também em uma época em que se fala tanto na (discutível) crise de leitores de livros impressos.
O campeão de vendas foi “O Diário de Um Banana”, de Jeff Kinney, best-seller mundial que, sozinho, vendeu quase mil exemplares aqui na nossa Praça. Compreensível, haja vista o poder da mídia em que se ampara. Por outro lado, os nossos três escritores locais cujas performances foram excelentes possuem a seu favor tão-somente o poder de fogo de seu próprio talento e de sua dedicação à escrita e ao mundo da literatura, aprimorando seus textos e protagonizando os processos de formação de leitores, desenvolvendo atividades literárias junto à comunidade. Colhem, assim, os merecidos frutos de seu esforço e passam uma rasteira na batida máxima de que santo de casa não faz milagre. Aqui, em Caxias, faz, sim.

Ponto também, e com estrelinha, para os leitores caxienses, que sabem reconhecer a qualidade existente na literatura produzida por escritores de verdade que moram na vizinhança de suas próprias casas. Aqui, em Caxias, se escreve bem e se lê bem também. Os números provam o que dizem as letras.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de outubro de 2015)

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Um poder de mente

Achei a tática nada menos do que genial e me propus a adotá-la de imediato, pois que acabava de testemunhar por mais de uma vez a sua assombrosa eficácia no período de cerca de duas horas. Em pleno horário de pico, quando o trânsito atinge seus ápices de ansiedade, estresse e aglomeramento, no entorno do meio-dia e logo depois na retomada das atividades no início da tarde, ela, serena e tranquila, conseguiu encontrar vagas para estacionar seu carro três vezes seguidas em diferentes pontos do centro, bem defronte aos locais que precisávamos visitar. Como? Qual o milagre?
“Ora”, ela explicou. “Simples”, prosseguiu. E, daí, desfiou em poucas palavras a revelação da tática mágica a que lançava mão para obter vagas para estacionar o carro em qualquer lugar no conturbado centro da cidade, a qualquer hora do dia. E não se trata de pegadinha do cronista mundano aqui, não, senhora, a senhora anda me tomando por outros, eu não faço esse tipo de coisa com o leitor. Quem? Eu? Quando? Imagina, nunca! Prove! Não, senhora, ela não enfia seu automóvel na primeira garagem paga que encontra no entorno, como a senhora está imaginando que eu vou tascar já na próxima linha, só para ficar do lado de cá das teclas segurando risinho com as mãos e pensando “peguei vocês, peguei vocês”, que eu já disse que não faço esse tipo de coisa. A personagem-motorista aí da minha crônica detém mesmo uma estratégia incrível para conquistar vagas no meio-fio, em plena via, e vou revelar do que se trata no próximo parágrafo.

Depois de muito arregalarmos os olhos, minha esposa e eu, que estávamos de carona, ela cedeu em contar seu truque, para o que, por sinal, não foi preciso que insistíssemos muito. “Eu apenas mentalizo que vai haver uma vaga esperando por mim bem na frente do local em que preciso ir, e pimba: chego perto e lá está a vaga, me esperando”. E funciona mesmo. Eu vi, minha esposa também, três vezes em duas horas. Claro, ela confessou que, em certas ocasiões, quando está muito ansiosa e estressada, a coisa não dá certo. Ufa, fiquei aliviado em saber que há uma margem para o humano nessa magia urbana toda. Que é justamente onde se enquadra o meu poder de mentalização de vagas: no coeficiente zero de aproveitamento, porque, sempre que eu chego perto, minha vaga já está ocupada por outro que mentalizou melhor do que eu. Mas juro que ando treinando.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de outubro de 2015)

sábado, 17 de outubro de 2015

O meme de Angicos

Andam rindo, aí pelas plagas das redes sociais (não, madame, eu escrevi “plagas”, mesmo, sinônimo de “região”, mas a senhora tem razão na confusão, pois, em se tratando de questão relacionada às redes sociais, poderia muito bem este metafórico cronista estar usando o termo “pragas” a fim de desqualificar alguma típica baboseira que nelas transita, mas não é o caso, apesar de, pensando bem, talvez vir a ser mesmo o caso, acompanhemos o desenrolar do texto para ver no que é que vai dar). Dizia eu, mesmo...? Ah, sim, mas no segundo parágrafo, que este aqui já ficou tijolaço.
Andam rindo, aí pelas pragas das redes sociais (opa, agora me enganei, mesmo, eu queria escrever “plagas”, mas façamos assim: cada leitor aplica o termo que achar melhor , tanto “plagas” quanto “pragas”, que ambos se encaixam no contexto do que vai ser discutido, e, de lambuja, aprofundamos o exercício da construção comunitária e democrática da crônica). Mas andam é rindo do povo da cidade de Angicos, no interior do Rio Grande do Norte, que esta semana entrou em pânico ao confundir um drone com um disco voador. Pois é, viraram meme nas prag... quer dizer, nas redes sociais os áudios de angicanos (será assim?) apavorados, testemunhando o sobrevoo da assustadora máquina desconhecida, cheia de luzinhas piscantes, certamente proveniente de outro planeta, a confirmar a chegada do final dos tempos com a descida de ETs esverdeados e repletos de más intenções. Mas o disco voador não passava de um simples drone, utilizado por uma empresa para fazer o levantamento fotográfico aéreo de determinada área. Foi o que bastou...

Só que não tem graça nenhuma a confusão e o desespero vivenciados por alguns dos moradores de Angicos. Primeiro, porque o ritmo das evoluções tecnológicas hoje é tão alucinado que ninguém está livre de, às vezes, ficar com a impressão de que é o único peixe fora d´água (conheço gente que não sabe anexar arquivo em e-mail, por exemplo) e acabar pagando mico de vez em quando. Segundo, porque, uma vez que não se tratava de disco voador coisa nenhuma e tampouco de invasão marciana, tanto os moradores de Angicos quanto o restante de nós teremos de seguir nos apavorando mesmo é com as barbaridades e descalabros cometidos pelas más intenções dos humanos daqui da Terra. E isso não tem graça nenhuma.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de outubro de 2015) 

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Prudência nua

Daí você passeia na internet pelos sites de notícias de empresas jornalísticas nacionais e internacionais ditas “sérias” e vai sendo confrontado por chamadas para a leitura do tipo: “Modelo promete fazer strip caso seu time retorne à Série A”; “Cantora Fulana sensualiza durante evento de moda”; “Sicrana de Tal e banda planejam show pelados”; “Loira misteriosa é flagrada saindo de hotel com Jogador Beltrano”, “Senhorita de Tal aplica não-sei-o-quê nas coxas e será capa de revista masculina”, e assim por diante. Isso apenas em uma rápida rodada com o mouse em punho, e para ficar somente nas chamadas menos cabeludas, porque, sim, madame, há as bem mais cabeludas que isso, asseguro.
E, daí, pergunto: a que serve essa espécie de exposição na mídia? Ora, um dos aspectos da questão é facilmente respondível: serve aos propósitos de conquista da fama a qualquer custo, perseguida com afinco e voracidade por celebridades, subcelebridades e candidatos a subsubcelebridades em todos os quadrantes do planeta, homens e mulheres. Lógico, claro e cristalino. E não questiono aqui os métodos utilizados por cada um em busca de seus objetivos, afinal, cada qual luta com as armas de que dispõe, e não sou juiz para julgar coisa alguma. Afinal, quem garante que, fosse eu popozudo, não estaria também criando factoide e prometendo tirar a roupa no chafariz da Praça Dante (depois de encerrada a Feira do Livro, lógico) caso o Juventude e o Caxias ascendam à Eurocopa em 2098? Tudo é possível...
O que me pergunto é o que explica e justifica a visão dos pauteiros e editores dos sites de empresas jornalísticas mundiais ditas “sérias” ao decidirem dar visibilidade a essas claras e tristes tentativas de geração de factoides em busca da fama por parte das subsubsubcelebridades? A mera conquista de índices de leitura basta para justificar as chamadas para o vazio e o nada? Ameaçar tirar a roupa é notícia? Até que ponto o jornalismo anda se dispondo a ser conivente com a banalização da baixaria? Publica-se porque todos querem ver, isso justifica e basta?

Não, eu não estou defendendo censura. Estou debatendo prudência frente ao sensacionalismo barato e critério jornalístico. Se é que isso também já não foi extinto há muito tempo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de outubro de 2015)

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Água nas mãos

“Zu bett, Marcos und Daniela”! Apesar da sonoridade pesada alemã, a frase que meu pai usava para ordenar que minha irmã e eu fôssemos dormir, porque já era hora de criança estar na cama, era dita de maneira divertida e branda. Como éramos crianças da década de 1970, obedecíamos sem pestanejar ao que nossos pais (e professores, e avós, e tios e adultos em geral) diziam, e, ao ouvirmos o mantra paterno, dávamos início automática e pavlovianamente ao ritual de preparação para o sono, que se iniciava às nove da noite. É, crianças dos anos 1970 iam para a cama às nove da noite, sim, senhorinhos e senhorinhas leitores (a vida a partir das dez da noite era um mistério total para menores de doze anos de idade).
E o rito consistia em lavar os pés (porque criança daqueles tempos corria de pés descalços na terra e na grama), escovar os dentes, vestir o pijama e lavar as mãos. Lavava-se muito as mãos, desde pequeninos, em Ijuí, naqueles tempos: antes de todas as refeições, depois das refeições, depois de brincar, antes de dormir. Lavava-se as mãos sempre, porque era, e segue sendo, cada vez mais, uma questão de higiene e de cultivo da boa saúde. Tanto é assim que, não sei se o senhor leitor e a senhora leitora sabem, mas, desde 2010, o Brasil adotou o dia 15 de outubro como data destinada à conscientização sobre a importância desse ato tão singelo e crucial de higiene. Hoje é o Dia Mundial de Lavar as Mãos. Já lavou as suas hoje?
Quando fiquei sabendo da existência da data, num primeiro momento, levei um susto, imaginando que se tratava de uma data especial criada para celebrar o ato simbólico de tirar o corpo fora, de repassar o abacaxi adiante, de fugir das responsabilidades, ações popularmente designadas como “lavar as mãos”, lembrando que tudo começou com Pôncio Pilatos, o governador romano da Judeia, que fez assim na tentativa de tirar o corpo fora da decisão de crucificar o nazareno que andava incomodando alguns poderosos naquelas possessões palestinas, dois mil anos atrás. Mas a História mostra que não adiantou nada Pìlatos lavar as mãos, e até hoje ele é responsabilizado por ter feito o que fez, especialmente contra Quem o fez.

Eis que assim aprendemos que “lavar as mãos”, entre aspas, é atitude temerária, covarde e cínica, e faz mal para a saúde da alma. Já lavar as mãos sem aspas é fundamental para a manutenção da saúde de corpo e alma. Opte sempre pela segunda.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de outubro de 2015)

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Luminosa crise

Fala-se em crise. Fala-se e vive-se a crise, porque ela existe e influencia diretamente no cotidiano das gentes. Alguns percebem mais do que os outros devido às contingências, afinal, 11 mil postos de trabalho fechados em uma cidade como Caxias do Sul em um ano é fato concreto o suficiente para ninguém ousar falar em “crise psicológica”. Vai dizer que a crise é “psicológica” para as famílias dos que perderam o emprego. Experimenta. Quero ver se a resposta vai ser “psicológica” também.
Mas é claro que crise não se combate com lágrimas. É preciso reagir, e a reação exige a convocação do suor, daquele suor decorrente da tomada de ações proativas e propositivas, da determinação em fazer o movimento de levantar do sofá, descruzar os braços, fechar a matraca da chorumela e arregimentar essas forças todas em favor de ações criativas que revertam o quadro. Só assim é possível alterar as tintas da pintura. E a tela é possível, sim, de ser transformada, mas a magia não vai se dar sem a atuação do mágico. E os mágicos somos nós, cada um de nós (boa essa, hein, amiga leitora, estimado leitor?). “Os mágicos somos nós”... Eita, cronista!
Mas, como sou, além de cronista mundano, também um jornalista mediano (quis rimar os adjetivos e, na pressa, só me ocorreu esse, que me desabona um pouquinho, é verdade, mas preferi favorecer a rima a qualquer custo), não posso deixar de constatar um fato doloroso e compartilhá-lo com meus parcos e insistentes leitores, mesmo que doa sabê-lo, e saibam que dói. Há uma crise que é impossível de ser revertida, mesmo que se empreguem contra ela todos os recursos humanos possíveis, conhecidos, realizáveis e imagináveis. Trata-se da crise de Sol.

Sabe o Sol, também conhecido como Astro-Rei, aquele corpo celeste gigante, brilhante, bola de fogo, estrela ao redor da qual a planetada do sistema circula sem parar, bajulando e mamando o calor e a energia necessários para seguirem suas órbitas milenares na estrutura universal? Sabe? Hein? Já se esqueceu dele? Pois é, aí é que está, faz tempo mesmo que não dá as caras e, quando o faz, é de forma tão tímida e fugaz que já se some de novo, a ponto de muitos terem mesmo esquecido de suas características. Crise de Sol. Ontem até que espiou um pouquinho por entre as nuvens, mas não sei não... Acho que não anda gostando do que vê acontecer aqui em baixo, daí o sumiço e a opção por também entrar em crise. Começo a ficar preocupado...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de outubro de 2015)

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Sobre não comer moscas

Existem profissões e atividades que não permitem um segundo sequer de desatenção e de descanso por parte de quem está exercendo a tarefa (sim, senhora, eu sei que às vezes, aqui, eu teço sentenças como se fosse o grande descobridor do caminho para as Índias, sendo que as Índias sempre estiveram lá, apesar da ignorância de quem supôs tê-las descoberto, eu sei, eu sei, eu sei, mas seja tolerante comigo, afinal, preciso parecer esperto e me iludir de que estou sendo útil em alguma coisa).
Mas puxo o tema porque a amplitude da situação que acomete certos profissionais no cumprimento de suas atividades tornou-se clara e cristalina em mim noite dessas, quando desempenhava o papel de mediador de debates entre escritores regionais na programação da Feira do Livro, ali na Praça Dante. Um mediador, percebi ali, não pode vacilar um segundo sequer ao longo do debate que a ele cabe conduzir, junto ao palestrante. Tanto ele quanto o convidado não têm o direito de comer moscas durante o espaço de tempo em que estiverem neles depositadas as atenções da plateia. O espectador pode, eventualmente, desligar por alguns instantes o cérebro e pensar na conta que precisa pagar amanhã, nas orientações que deve passar ao subordinado ou aos filhos, nas compras que estão faltando na casa, essas coisas. O mediador, não. O mediador não pode se permitir viajar na maionese enquanto o palestrante fala, sob o risco de receber subitamente de volta dele a palavra e exclamar algo como “sopa instantânea e uma lata de leite condensado!”, porque pensava na lista de supermercado. Não, de jeito nenhum. Isso seria levar gol contra.

Da mesma forma, o treinador do time de futebol que está em campo. Ele não pode perder um lance sequer da partida, sob risco de sofrer gol e não marcar tento algum. O mesmo se dá com o piloto de Fórmula-1 durante a corrida. Não pode ficar pensando na louça suja que deixou sobre a pia antes de se dirigir ao autódromo. Senna não fazia isso. Por isso, foi campeão tantas vezes. E o médico durante a cirurgia, então? Não pode sacar o bisturi e ficar pensando que não comprou flores para a esposa no aniversário de casamento. E o dentista com a broca em punho frente à boca aberta do paciente? Não, minha senhora, é preciso foco. Tudo é uma questão de foco, para que possamos marcar os devidos gols em nossas vidas. Viu como eu acabaria chegando às Índias, apesar das voltas?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de outubro de 2015)

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Uma vez criança...

Fiquei muito surpreso quando, certo dia 12 de outubro de mil, novecentos e lá-vai-pedrada, contando eu já uns bons duns vinte-e-tantos anos (percebam que lanço mão aqui a subterfúgios gastos, batidos e constrangedores para escamotear a idade, que coisa mais triste, mas, enfim, atire a primeira pedra quem ainda não engrisalhou), estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Santa Maria, apareci na casa materna na distante e natal Ijuí para passar o feriadão e caíram-me os butiás do bolso (o que é um lugar-comum anacrônico porque, naquela época, eu ainda não vivia na Serra Gaúcha e não conhecia a expressão) quando minha mãe chegou no café da manhã com um presente de Dia das Crianças. Adoro ganhar presentes, mesmo agora engrisalhado, porém, naquele momento, me senti um pouco constrangido porque, tendo recém saído da adolescência, desejava (como todo adolescente e todo jovem deseja) desvincular-me a todo o custo de qualquer característica que ainda pudesse me atrelar ao universo pueril que eu recém deixava de habitar.
Eu queria ser adulto e receber presente no Dia das Crianças me soou meio estranho. Felizmente, não demorou muito para eu perceber que, para nossos pais, nós seremos eternas crianças a serem por eles amados, cuidados, cultivados, presenteados, corujados, independentemente da idade que tenhamos. Não seria uma maravilha recebermos presente do Dia das Crianças aos 70 anos de idade, de nossos pais de 95? No embalo da chegada do Dia das Crianças, recebi e-mail da leitora Claudete Fontana, com a reflexão que reproduzo a seguir:
“Para mim o passar dos anos nos traz a conexão que a infância e a maturidade perdem. Nós vamos crescendo e nos deixando envolver com tudo e com todos e a nossa essência fica lá, quietinha, hibernando. Mas chega um momento em que não tem mais como dormir e aí nos parece natural gostar de tudo que gostávamos quando crianças. Não é que se volte a ser criança, é que simplesmente chega um ponto da vida em que a conexão é automática, só isso! Mas é claro que, para alguns, isso não existe: se cresce, amadurece, envelhece e pronto. Sempre digo aos meus filhos: cultivem suas crianças interiores, sejam crianças na hora de ser criança e adultos na hora de ser adulto, sempre”.

Assino embaixo, Claudete. Feliz Dia das Crianças!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de outubro de 2015)

sábado, 10 de outubro de 2015

De formiga em formiga

Desde criança, sempre cultivei um fascínio profundo pelos insetos que me rodeavam. Mesmo tendo nascido, crescido e espichado em áreas urbanas, minha infância não se deu somente entre quatro paredes de concreto, as fuças enterradas dentro de livros, como uma análise superficial de minha biografia poderia sugerir. Apesar de gostar de ler desde muito miudinho, também tive lá meus joelhos esfolados por escorregar no cascalho correndo ao ar livre, levei tombos de bicicleta, caí de árvores, fugi de cachorros, pisei em roseta, espinhei dedo, colhi bergamota, levei picada de marimbondo, entre outras aventuras típicas de quem também respira fora de casa e passeia a cabeça ao sol.
Em meio a esses cenários de fundo de quintal, minha atenção sempre foi direcionada à atividade dos insetos, que me encantavam (e ainda encantam) devido às suas formas estranhas, à composição anelada e encaixada de seus corpos, à profusão de asas, antenas e pernas, originando combinações esdrúxulas e surpreendentes, como só mesmo a Natureza seria capaz de conceber. Uns voam, outros, rastejam; uns são simpáticos, outros, dão medo; alguns são belos, outros, horripilantes; uns cantam, outros, gritam, enfim, um universo imenso e indecifrável acolhe o incontável número de seres passíveis de serem agrupados na classificação de insetos, a fazerem companhia aos dias de infância que permanecem vivos na memória de quem a teve (a infância) e de quem ainda a tem (a memória).

Anos atrás comecei a escrever uma crônica para o jornal Pioneiro, na qual elencava alguns desses insetos que, a meu ver, andam meio sumidos do cotidiano urbano nesses dias de hoje, e dos quais eu andava meio saudoso de ver por aí, como a joaninha, o louva-a-deus, o vagalume, a libélula e outros. Mas o texto ficou comprido demais e deixei que adormecesse na gaveta (quer dizer, no HD do computador). Isso até descobrir que o artista plástico Antonio Giacomin compartilhava esse mesmo fascínio e andava desejoso de pintar insetos em suas geniais aquarelas. Foi o que bastou para firmarmos a parceria e lançarmos em conjunto o livro “Insetolândia: Uma Viagem ao Redor do Quintal”, viabilizado pelo Financiarte. Neste sábado, dia 10, Giacomin e eu autografaremos a obra no Leiturário da Feira do Livro de Caxias, a partir das 15h. Quem quiser, é só chegar, afinal, de formiga em formiga, se preenche um formigueiro.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de outubro de 2015)

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Loas a Svetlana

Ufa! Conseguimos nos safar de novo! A Academia Sueca divulgou ontem o Prêmio Nobel de Literatura de 2015, e ele não foi para Paulo Coelho! Mais uma vez, que alívio! O nome da agraciada é (espera aí, deixa minimizar a tela do Word e verificar, porque é nome difícil, de lá do outro lado do mundo)... A agraciada é Svetlana Alexievich, natural da Bielorrússia, uma ex-república da antiga União Soviética, situada na Europa Oriental, entre a Rússia, a Polônia e a Ucrânia. Longe, longe, longe...
Como é, minha senhora? Se eu já li algum livro escrito por ela? Mas claro que não, eu sou burro de dar dó, eu sequer sabia da existência da escritora bielorrussa. Aliás, para informar sobre a localização do país, tive de recorrer ao Google Maps, não pense a senhora que eu sou um atlas ambulante, não, longe disso. No máximo, sei que Roma fica na Itália. Mas fui pesquisando, né, porque a gente não pode sair pela aí passando recibo de anta assim, sem mais. Cronista mundano, sim; anta universal, alto lá! Aquela coisa: quem não me conhece, acha que sou burro; quem me conhece, tem certeza. E isso fica mais evidente a cada ano, em outubro, quando a Academia (a Sueca) divulga o nome do novo Nobel de Literatura, e eu nunca sei de quem estão falando.
Exceção feita ao peruano Mario Vargas Llosa, que foi agraciado em 2010. Aí, sim, até já havia lido livro. Mas a Svet... Slev... Espere um pouco, deixa conferir de novo... A Svetlana, realmente, eu aqui do alto da minha asnice, jamais havia ouvido falar. Até porque, convenhamos, descubro também que não existe nenhuma obra dela publicada no Brasil. Aí fica difícil, né, minha senhora, pode parar de me olhar assim de soslaio (não gosto que me olhem de soslaio). Eu só leio em português. Não encaro livro nem em espanhol e nem em inglês, que dirá em bielor... Opa, espera aí... Que língua se fala na Bielorrússia? Pesquisemos. Ah, ela escreve em inglês. Bom, mas mesmo assim, eu não sabia de nada e não tive nada a ver com isso.

Só o que me deixa aliviado é que o Nobel de Literatura mais uma vez não saiu para o Brasil, porque o que me tira o sono é a possibilidade de esse sonho nacional, da terra que gerou Machado de Assis, ser realizado com uma eventual premiação a Paulo Coelho. Que os deuses da Literatura façam existir ainda zilhões de Svetlanas espalhadas pelos cantos todos desse vasto mundão! Enquanto houver Svetlanas, estaremos a salvo!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de outubro de 2015)

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Livros à mostra

Senão, vejamos. Estive a falar aqui ao longo desses dias de Feira do Livro (que começou na sexta-feira passada e se estende generosamente na Praça Dante Alighieri até o dia 18) a respeito da necessidade vital, tanto para as coisas do corpo quanto para as coisas do espírito, de se cultivar a própria horta. Para quem vive na colônia ou no campo, o termo “cultivar a horta” não se apresenta como embalagem para uma metáfora. Não. Para o colono e para o agricultor, “cultivar a horta” é cultivar a horta mesmo. É plantar rabanete para depois colher rabanete. É sujar os dedos de terra para depois lambuzar os beiços com o sabor colorido das verduras e legumes. É isso e pronto.
Já para quem vive um cotidiano longe das lides da terra, “cultivar a horta” pode funcionar como uma imagem evocativa daquelas ações que devemos fazer para manter viva e bem alimentada (eis aqui a metáfora de novo) uma relação pessoal, uma situação social, uma entidade, uma atividade, enfim, tudo aquilo que requer cuidados para vingar e se manter ativo. Uma amizade precisa ser cultivada pelo contato; uma relação amorosa pelas demonstrações de carinho e de amor; uma entidade pela dedicação que voltamos a ela, essas coisas, e a fila de exemplos pode aqui ser largamente preenchida pelo amigo leitor e pela estimada leitora a seu bel prazer, pois que ando me tornando um cronista mundano cada vez mais generoso e democrático, como bem pode detectar aqueles que com tanta generosidade me leem.

Pois nessa coisa de “cultivar a horta”, o escritor José Clemente Pozenato andou usando a metáfora para elogiar a iniciativa da Academia Caxiense de Letras de trazer os escritores locais para falarem sobre suas obras vencedoras do Concurso Literário Anual da Biblioteca Pública Municipal, na Semana do Escritor que realiza dentro da programação oficial da Feira do Livro. Afinal, os daqui precisam ser lembrados. Outra iniciativa nesse sentido é a banquinha da Academia Caxiense de Letras instalada este ano na Feira, administrada pelo escritor e editor Wagner Hertzog, que disponibiliza e expõe as obras de escritores locais (não somente os da Academia, mas todos os que quiserem ali disponibilizar seus títulos), valorizando os daqui, cultivando a horta. Dê uma passadinha lá e passeie os olhos pela ótima produção literária que também viceja nessa fértil terra.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de outubro de 2015)

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Regar a horta

Vou contar uma história sobre mim mesmo. Mas, depois, vou usar esse exemplo pessoal como um gancho para propor uma reflexão de âmbito geral, que encontre eco no íntimo dos leitores, alcançando assim um cunho universal e conferindo ao texto o tom de crônica, e não de mero diário íntimo. Pronto, acabo de entregar o jogo todo e revelar o processo básico de fazer crônica. Agora, com a farinha e o fermento na mão, só falta meter a massa no forno e de lá retirar os pães ou as pizzas você mesmo. Não precisa mais depender do cronista aqui. Dei um tiro no pé, mas agora já está feito. Adiante.
A história sobre mim mesmo nos conduz à cidade de Santa Maria, no início dos anos 1990, quando eu dava meus primeiros passos no mundo do jornalista profissional. Carteira assinada e a promessa de salário pingando na conta todo o mês, dei um peitaço e aluguei uma casa para morar, abandonando a república de estudantes. A casa tinha um quintal e eu, inebriado em sonhos juvenis, já me imaginava ali nos fundos, aos finais de semana, cultivando uma hortinha na qual plantaria alface, tomate, chuchu, cebola, cenoura, a título de adoção de um passatempo saudável e sadio.
Mas tudo não passou de sonho e o projeto morreu na casca, pelo simples fato de que eu sabia que jamais me dedicaria de verdade ao cultivo da horta no quintal. Eu não sou dado a essas lides, não faz parte de minha essência, apesar de muito admirar quem o faça. Cada macaco no seu galho, sabe como é. Uma vez que desejava ser jornalista e escritor, passei a vida cultivando o quintal da leitura (para obter informação e substrato) e da escrita (para treinar a técnica e moldar o talento). Isso porque eu sempre soube que, para florescer e vingar, quintais e hortas precisam ser cultivados, sejam eles quais forem.

Foi mais ou menos isso o que o escritor José Clemente Pozenato quis dizer ao declarar ao Pioneiro, na edição de segunda passada, que “precisamos cultivar a nossa horta”, ao endossar a importância da iniciativa da Academia Caxiense de Letras, de reunir escritores locais para compor as rodadas de debates da 8ª Semana do Escritor, incluída na programação da Feira do Livro deste ano. Sementes importantes estão sendo plantadas na horta da literatura local há décadas e é preciso cultivá-las. O convite está feito: dê uma passadinha na Feira e ajude a regar a horta.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de outubro de 2015)

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Sob o Sol, à sombra

Nesses líricos e românticos dias primaveris, sempre que não chove fica convidativo flanar ao ar livre pelas ruas, parques, praças e esquinas de nossas cidades toda a vez que surge um tempinho, a fim de exercitar o culto a uma das estações mais queridas do ano. O frio já não corta mais nossas espinhas, apesar de às vezes ainda dar o arzinho da graça mesmo que de forma tímida, e o calor não torra perigosamente nossas cabeças, apesar de o morninho do sol ser disputado até por gatos e lagartos e flores.
É primavera, o inverno é coisa do passado e a perspectiva pela frente é a melhor possível, com o verão já de passagem comprada e pronto para aparecer em poucos meses, o final de ano a duas folhinhas do calendário e o litoral, pelo que a gente lembre, tem praia, areia e caipirinha. Tudo parece lindo e resolvível em um amanhecer de segunda-feira ensolarado e primaveril como foi o de ontem aqui em Caxias do Sul e até os cronistas diários mundanos se vergam à influência do clima e aliviam o peso das batidas no computador, cujas letrinhas se embaralham com o reflexo intenso dos raios do sol e – raios! – é preciso baixar um pouco a persiana da janela a fim de puxar um pouco de sombra que possibilite visualizar melhor o teclado e seguir escrevendo. Mas, afinal, o que queremos: sol ou sombra?
Caminhar na rua acompanhado, nesta época do ano, atitude tão mansa, pode engendrar um pequeno dilema: ir pelo sol ou pela sombra? O sol não está tão quente, mas o sol é sempre o sol; a sombra não está tão fria, mas sombra sempre fica na sombra. Por onde deve trilhar aquela dupla ali, ele temeroso dos efeitos dos raios ultraviolentos que não dão trégua nem em dias nublados; ela, fissurada pelo processo de ativação da melanina que lhe dourará a pele de forma fácil e rápida? Ele, um vampiro das sombras; ela, uma gata desejosa de refestelar-se em zinco quente. O que fazer? Um grande drama acinzentará o horizonte primaveril do casal? É a ponta de um novelo de discordâncias?

Ora, nada disso, amigo leitor, estimadíssima leitora. Nesta época do ano, as soluções saltam das sombras e reluzem ao sol. Foi para isso que a natureza esticou o comprimento dos braços. Dão-se as mãos os dois então, espicham os braços e cada um caminha em seu lugar preferido da calçada: ele à sombra das marquises, ela ao sol da beira da calçada. Afinal, é primavera.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de outubro de 2015)

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Síndrome da criança grande

Alguma coisa acontece quando a gente vai ficando velho, e eu não sei explicar exatamente o que é. Sim, eu sei que o senhor e a senhora vão dizer que eu não descobri a América com essa afirmativa inicial da crônica, que realmente muitíssima coisa acontece com qualquer um que vai vendo os galhos de sua existência vergarem sob o peso dos anos acumulados e que isso não é privilégio meu coisíssima nenhuma. Esse “coisíssima nenhuma” ali nem o senhor, tampouco a senhora, irão empregar na admoestação dirigida a mim, eu sei, porque nenhum de vocês é deselegante a esse ponto, isso foi coisa do estilo claudicante desse que vos escreve mesmo, pelo que peço desculpas. Coisas de velho, mesmo.
Mas acontece que essa coisa que me acontece, sobre a qual quero comentar aqui, eu não sei se acontece da mesma maneira com todos aqueles que vão envelhecendo, daí meu espanto e a decisão unilateral (como sempre, por sinal) de transformar a questão em tema da crônica de hoje. Aí é que o senhor e a senhora entram na jogada, nesse momento em que se abre a possibilidade de saírem da condição de leitores passivos e transformarem-se em agentes ativos na construção conjunta (hoje estou generoso e democrático, reconheçam) desta crônica, quando são instados (“instados”, viram?) a elucidar ao mundano (e agora provecto) cronista a dúvida que tanto o atormenta.
Cabe aos senhores, portanto, me responderem: por que razão, em ficando eu cada vez mais velho, percebo que preciso passar longe da sessão das barraquinhas de livros infantis na Feira do Livro que rola na Praça desde a última sexta-feira? O que faz com que eu tenha despertado em mim o desejo de comprar quase todos os livros que ali se exibem aos olhos dos passantes, especialmente os chamados livros-brinquedos, esses que você abre e pula de dentro um castelo encantado armado em papel como se fosse um origami gigante e colorido? Ou aquele outro que traz junto bonequinhos de super-heróis, ou da aldeia dos Smurfs, ou das Tartarugas Ninja? Ou ainda aquele que explica tudo sobre dinossauros, permitindo que você simule uma escavação encontrando dentes e tíbias ao pé de vulcões fumegantes? Quero-os todos! E quero-os já, agora!

Ainda bem que minha esposa tem força na mão e me puxa... Para longe dali, rumo aos saldos das barracas adultas! E o mais desconcertante é que, sim, eu tive infância... Vai entender...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de outubro de 2015)

sábado, 3 de outubro de 2015

É gente quem faz

Comecemos esta croniqueta enfileirando paralelos demonstrativos. Hein? Como é? A senhora acha que hoje estou pegando pesado na complicação já desde a saída? Desculpe, vou tentar tirar o pé e aliviar um pouco. Mas não prometo muito, a senhora sabe como é: um cronista do tipo mundano, quando acorda meio que com a pá virada, é difícil de desentortar. Porém, vamos ao trabalho. O enfileiramento demonstrativo, então, já abrindo o segundo parágrafo.
O que faz um livro são as ideias contidas nele; o que faz uma música é a melodia e o arranjo; o que faz uma sobremesa são os ingredientes escolhidos e a quantidade adequada de cada um deles inserida na mistura; o que faz um passeio são os pontos visitados; o que faz uma floresta são as árvores que a adensam; o que faz um formigueiro é o aglomerado de formigas; o que faz o céu são as estrelas; o que faz a noite é a escuridão; o que faz o dia é o sol que nasce, apesar das nuvens; o que faz a poesia é a sensibilidade; o que faz a guerra é o desamor; o que faz a paz é alma. Cada coisa, como a senhora pode ver, cada coisa, a essência de cada coisa, depende de seus pontos constitutivos primordiais. Falando difícil assim fica complicado de entender, mas lendo os exemplos enfileirados, dá para sacar o que eu estou querendo dizer, pois não? Agora, vamos ao arremate da crônica, para que a entrelinha venha à tona e ela possa ser comentada pelos leitores: o que faz a história humana são as pessoas. Ahá!

E são as pessoas, minha senhora, sempre as pessoas, que fazem toda a diferença em tudo. Não interessa, por exemplo, se o restaurante tem regras e procedimentos. A boa cozinha e o bom atendimento do restaurante vão depender única e exclusivamente das pessoas que trabalham nele. O que faz o clube são seus sócios. O que faz o time são os jogadores de hoje que nele atuam. O que faz a empresa são seus funcionários. O que faz a feira são os feirantes. O que faz a festa são os festeiros. O que faz a entidade são seus integrantes. O que faz o bairro é a vizinhança. O que faz um país é o seu povo. A cidade, seus cidadãos. A rua, os moradores. Tudo sempre depende de gente. A diferença está nas gentes que compõem cada situação em cada momento. E o que a gente aprende com a vida é que há gentes e gentes. E gentes e gentes e gentes, nesse mundo de gente.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de outubro de 2015)

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Livre-se na praça

Começa hoje em Caxias do Sul, na Praça Dante Alighieri, uma programação na qual pretendo me livrar. Não, madame, a senhora não leu errado, tampouco eu cometi deslize de concordância, muito menos o revisor deixou passar bobagem, até porque a figura do revisor há muitos anos extinguiu-se das redações dos jornais, o que é, sim, aí concordamos, uma lástima das mais tristes. O que eu escrevi era o que eu queria escrever mesmo: pretendo me livrar na (e não “da”) programação que tem início hoje na praça e se estende até o dia 18 de outubro.
Afinal, o que uma criatura como eu e como tantas milhares de outras como eu, leitores e amantes dos livros, poderia fazer ao longo de 17 saborosos dias de Feira do Livro se não livrar-se por inteiro nela, mergulhando fundo no planeta dos livros, locupletando-se de livros, livros e mais livros? Afinal, esta é a festa anual de quem sofre alegremente da doença da paixão pela literatura! São as bacanais de outubro para os leitores, livreiros, leitores, escritores, leitores, professores, leitores, agentes de leitura, leitores, produtores culturais e leitores. Tudo sob o olhar benévolo e atento de Dante Alighieri (1265 - 1321), o poeta italiano que dá nome ao logradouro e cujo busto adorna a praça há mais de um século, ali bem do ladinho. Poeta, aliás, que em breve deixará de estar sozinho na sua contemplação diuturna da cidade, mas isso é outra história, para outra ocasião. Falemos de Feira do Livro.
Nossa Feira chega este ano à sua 31ª edição, tendo como Patrono o escritor Uili Bergamin e como Homenageada a escritora Maria Helena Binelli Catan, ambos integrantes da Academia Caxiense de Letras. A “Entrelinhas”, programação cultural especial da Feira que este ano está em sua segunda edição, homenageia desta vez o artista, músico e cantor Samuel Sodré. Um trio afinado que irá acolher e apadrinhar todas as pessoas que aparecerem na praça ao longo desses dias, trazendo a alegria de transitar entre a literatura e as gentes que a fazem ser uma realidade transformadora ao longo de todo o ano.

Vá à Praça, leve a ela o melhor de si e comungue com quem estiver lá essa capacidade que temos de, em meio à cultura e à literatura, provarmos que a humanidade avança, sim, rumo à civilização, por meio de pequenos atos cotidianos de confraternização pública, como uma Feira do Livro. A abertura oficial acontece hoje na própria Praça Dante, a partir das 18h30min. Todos convidados e boas leituras!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de outubro de 2015)

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

No frigir dos ovos

A arte de relacionar-se requer que se lance mão a um misto de predicados a serem conjugados direta e transitivamente, como tolerância, jogo de cintura, empatia, capacidade de adequação, respeito, bom humor, criatividade, compreensão, desapego, entre outros. Fácil, não? Não! Não é nada fácil mesmo, a madame está certa aí, e é por isso que as relações sociais, sejam elas quais forem, andam sempre aos trancos, como se tropicássemos em tijolos dispostos sorrateiramente pelo caminho que, a princípio, parecia fluir tão fácil. E os tijolos, madame, os tijolos, eu sei que é isso que a senhora está pensando aí, sacudindo a cabeça, os tijolos, é verdade, os tijolos somos nós mesmos. A senhora tem razão.
E isso vale para qualquer tipo de relação humana. Entre casais, entre colegas de trabalho, em família, entre os amigos, entre confrades, entre sócios, entre grupos perenes e fortuitos como a junção de gentes em um elevador, enfim, tudo, né, madame? A senhora segue concordando comigo. Que bom, hoje estamos afinados, a coisa corre livre, fluindo. Adiante! Agora chegou a parte em que inserimos o exemplo ilustrativo da tese, pescado da experiência pessoal e universalizado em sua essência, que é o segredo da confecção da crônica, porque senão, do contrário, isso se transformaria em uma espécie de “meu querido diário”, e não é nada disso que esperamos de um cronista, por mais mundano que ele seja, não é assim, madame? A senhora concorda de novo? Ótimo!
Pensava nessas coisas dia desses aqui em casa, quando fui fazer ovos para o almoço. Eu gosto de ovo frito; minha senhora prefere ovos cozidos. Sem problemas, eu julguei-me apto a produzir os dois tipos de ovos ao mesmo tempo, junto ao fogão. Meu ovo frito, gosto dele mal passado, a gema escorrendo dourada sobre o arroz no prato. O ovo cozido, ela prefere ao ponto, durinho, compacto. Muito bem! Fui-me saracoteando o avental rumo ao fogão e voltei de lá à mesa minutos depois com meu ovo frito duro e passado demais e o ovo cozido dela cru, a gema escorrendo. Bem do jeito que ambos não gostamos. Que fazer?

Ora, madame, nada! Cada um comeu seu ovo, pois só faltava agora ovo frito e ovo cozido serem motivo de briga em família! No frigir dos ovos, tudo é questão de saber relevar os pequenos deslizes, conforme prevíamos lá no início. Hein? Poxa, mas a senhora estava concordando até aqui...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de outubro de 2015)