terça-feira, 30 de junho de 2015

Pneu furado

Independe de grau de instrução, independe de raça, independe de credo, independe de profissão, independe de classe social, independe de altura, independe de peso, independe da dieta adotada, independe do temperamento, independe da fama, independe de estado civil; mas depende, isso sim, de gênero, e homem que é homem precisa saber trocar pneu furado de carro em beira de estrada. Por mais que as mulheres venham conquistando seu merecido espaço na sociedade, combatendo o machismo e provando serem cidadãs tão (de minha parte, afirmo que mais) competentes e plenas quanto os homens, existe uma tarefa que ainda cabe a nós, homens, como se fosse uma espécie de reserva de mercado: pneu furou, acende o farol, sim, mas você, amigo leitor, vai ter de trocar. Ah, vai.
Saber empunhar uma chave de rodas com segurança e determinação é o mínimo que se espera de qualquer indivíduo do sexo masculino portador de carteira de motorista, que se ponha a dirigir seu veículo pelas generosamente esburacadas estradas de nosso país rodoviário. É nessa hora, meu amigo, que sua namorada, sua esposa, sua mãe, sua sogra, sua irmã, sua cunhada, sua amiga, sua colega, sua noiva, vai avaliar silenciosa e profundamente suas características e concluir o melhor ou o pior a respeito de sua pessoa. Vai por mim. O pneu estoura, o carro se desequilibra, você para no acostamento (rezando para que haja acostamento onde o contratempo surgir), salta do carro, dá aquela arrodeada e sentencia para a(s) mulher(es) que estiver(em) junto: “furou o pneu, não se preocupem, vou trocar”.
E cabe a você ir lá, pegar o macaco, a chave de rodas, macaquear o carro, soltar os parafusos, arrancar fora o pneu furado, encaixar o estepe (que deverá estar em condições razoáveis de rodagem), encaixar de volta os parafusos e retornar a trafegar, as mãos repletas de graxa e sujeira, sim, mas a sua alma de motorista confiável totalmente imaculada frente à esposa, à noiva, à namorada, à sogra, enfim, a elas. Porque era só o que faltava esperar que uma delas tenha de saltar e efetuar a troca do pneu. Se isso ocorrer, meu amigo, não será apenas o pneu que será trocado, vai por mim... Já volto, vou lavar as mãos.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de junho de 2015)

segunda-feira, 29 de junho de 2015

História de pescador

O primeiro (e único) peixe que pesquei na vida foi uma traíra, não muito grande que me permitisse portar na bagagem da memória há décadas a minha primeira (e única) mentira de pescador, nem tão pequeno que sequer servisse para uma inocente lorota. Era uma traíra mediana, que não chegou a oferecer grande resistência ao manejo da linha e da vara – sim, pois que foi içado das águas do açude com vara de pescar e minhoca encravada no anzol – devendo pesar não mais do que dois quilos, a julgar pelo tamanho registrado em fotografia batida na época, quase quatro décadas atrás.
A foto costuma repousar discretamente em meio aos maços de fotografias antigas guardadas dentro de uma caixa de sapato e ganha renovado sopro de vida sempre que recebe um novo olhar a cada nova incursão nostálgica que empreendo ao baú de guardados, sazonalmente, quando sou acossado pelos ventos da saudade do passado. Estou eu ali, na altura de meus então dez anos, magricela e branquela, cabelo loiro (loiro e farto, ah, os dez anos), sustentando ao alto no braço direito a linha em cuja extremidade balança a presa aquática que posa inerte para a foto, ainda agarrada à isca. A julgar pelo cenário às minhas costas, o feito se deu na fazenda que meu pai tinha em sociedade com meus dois avós, no interior de São Borja.
Não fosse a foto, que eterniza o fato com parcela da verdade, haveria o risco de a tal pescaria ter se esvaído de minha biografia pessoal. Sim, porque, da memória real, ela já se esvaiu há muitos anos, e não sobra registro algum. Sei que pesquei a traíra, pois que tenho a foto para provar a quem quer que duvide de minhas antigas habilidades pescatórias. Mas nada recordo do episódio por conta própria: nem da ocasião, nem da emoção de sentir a linha sendo fisgada, tampouco da crueza da batalha para extirpar do rio ou do açude a presa.

Pesquei, é verdade, mas o sabor do evento não me transformou em pescador, o que me impede de celebrar com autoridade este 29 de junho, Dia do Pescador. Fosse o Dia da Mentira, poderia eu aqui inventar alguma e passava. Mas em se tratando de pescadores, só posso narrar uma verdade singela, uma vez que me transformei em um mero pescador de histórias.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de junho de 2015)

domingo, 28 de junho de 2015

Agora é tarde

Agora é tarde, mas eu deveria ter sido cientista. Que jornalista o que, que cronista o que! Cientista, isso sim, que eu deveria ter sido. Ganha-se mais como cientista em relação ao jornalismo e ao cronismo mundano como esse que pratico, sem sombra de dúvidas, mas a questão não é essa. A questão é que só agora tenho me dado por conta de quão divertida deve ser a carreira de cientista, especialmente a dos cientistas que se dedicam a estudar fósseis e as formas de vida estranhas e esdrúxulas que habitavam esse nosso estranho e esdrúxulo planeta há dezenas de milhões de anos, centenas de milhões de anos, até.
Porque, vejam bem, olhem só essa maravilha de questão que li dia desses, percorrendo os sites noticiosos da internet em busca de assunto para crônicas, eu, que cronista sou e preciso, por dever de ofício, cronicar diariamente, diferentemente dos cientistas que, desobrigados dessa operosa tarefa, apenas se debruçam sobre o esqueletinho de um bichinho que viveu há trocentos anos e se botam a tecer teorias sobre eles. Que delícia! Lá no Reino Unido, que é um habitat natural e criadouro de cientistas, anda rolando uma discussão interessantíssima a respeito do fóssil daquilo que descobriu-se tratar de uma minhoca de 500 milhões de anos.
Mas não é uma minhoca qualquer, e, sim, uma surpreendente minhoca dotada de sete pares de patas, longos espinhos cravados nas costas e uma fileira de dentes sorridentes na boca. Minhoca com dentes! Isso explica a extinção de algumas espécies de peixes nos rios pré-históricos, pois basta imaginar o que acontecia quando a minhoca enfiada no anzol por Urgh, o primeiro pescador, era mergulhada no rio atraindo a atenção de peixossauros... O peixossauro guloso aparecia e era imediatamente abocanhado pela minhoca dentuça. Incrível.

Mas a discussão entre os cientistas é mais profunda do que essa bobagem de cronista que escrevi ali. Eles não chegam a um consenso sobre se os espinhos são de fato espinhos ou patas, ou se as pretensas patas seriam apenas longos pelos nas costas. Bom, curioso como o jornalista que sou, fui à internet procurar a foto do tal fóssil. E é do alto de minha ciência jornalística e cronística que afirmo: que minhoca com dentes e patas o que! Aquilo não passa de um graveto. Só serve mesmo é para inspirar uma crônica mundana.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de junho de 2015)

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Antes só do que com o Braga

Segunda-feira à tarde tenho consulta médica, está marcado na agenda. Se está marcado na agenda, acredito. Acredito e cumpro. Afinal, sou bom soldado, não ouso me insubordinar contra os ditames apontados em minha agenda, até porque conheço muito bem a identidade de quem ali os lança: eu mesmo. Acredito em mim. É o mínimo que posso esperar de mim mesmo em relação a mim mesmo porque, se eu não acreditar em mim, quem o fará?
Segunda à tarde, portanto, consulta médica. É preciso me preparar. Não sou daqueles que chegam a uma consulta médica como quem vai passear no parque. São coisas bem diferentes entre si, uma consulta médica e um passeio no parque. Até porque, às vezes, a possibilidade de seguir exercitando a segunda depende do bom andamento da primeira. Não é o meu caso, a consulta é simples, prosaica até, de caráter preventivo. Mesmo assim, segue sendo uma consulta médica, e requer alguns preparativos.
Entre eles, um muito importante, decorrente do fato de que terei de aguardar longos minutos na sala de espera, que justamente possui esse nome porque ali espera-se. Às vezes, espera-se pacientemente muito, nós, os pacientes, que precisamos saber exercitar a paciência. Sabedor que sei de que esperarei, preciso decidir qual dos dois livros que estou lendo concomitantemente deverei levar junto, a fim de ler algumas páginas ao longo da espera na dita sala: o romance de autoria do escritor português José Saramago ou a coletânea de crônicas do brasileiro Rubem Braga? Dúvida cruel, ambos me fascinam e, tenho certeza, seriam ótima companhia no asséptico ambiente da sala de espera que por mim espera.

Decido ler algumas páginas de cada um deles, a fim de facilitar a escolha. Pego as crônicas do Braga e ponho-me a ler no sofá da sala. Três páginas, apenas, o texto. Porém, já no segundo parágrafo, não consigo segurar e ponho-me a rir desbragadamente, que é como se ri assim solto e feliz quando se lê uma crônica bem-humorada do Rubem Braga. Termino a leitura enxugando lágrimas de riso. É, está decidido: quem vai comigo ao médico é o Saramago. Não posso correr o risco de, em levando o Braga, sair dali amarrado em camisa-de-força. Tem escritor que só dá para ler escondido.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de junho de 2015)

quinta-feira, 25 de junho de 2015

É preciso coragem

É preciso ter coragem. É preciso ter sido moldado em boa cepa, evocar as próprias raízes, recordar dos antepassados, seus feitos, sua glórias, e inspirar-se nelas. É preciso ter determinação, garra, vontade de vencer. É preciso pensar no sabor da vitória quando alcançada, na satisfação de um dever cumprido, na honra de transpor a muralha da adversidade para romper com orgulho a faixa da chegada. É preciso reunir todas as energias de que somos capazes de aglomerar em nosso íntimo mais profundo. É preciso fazer um gesto rápido para jogar a pilha de cobertores para o alto, saltar da cama, calçar as pantufas e correr para o banho antes que a dimensão do imenso frio se apodere de todo o nosso ser e nos faça voltar correndo para o leito quentinho e decididamente não sair mais de lá até que chegue de novo a hora de vestir os maiôs e irmos para a praia no bom do verão e seja lá o que Deus quiser.
Mas é preciso ter força. O veraneio ainda está longe. Aliás, nesses dias de zero grau ao alvorecer, estão mais longe do que nunca aquelas coisas de sunga à beira-mar tomando água-de-coco e torrando os costados enquanto se decide por um mergulho no mar ou por uma caipirinha geladinha embaixo do guarda-sol. Miragens, miragens, tudo isso não passa de miragens, nada disso existe nem nunca existiu, são frutos de nossa fértil imaginação, congelada em uma realidade apenas tecida em nossos mais profundos sonhos e aspirações. Congeladíssima ali, por sinal. Muito, muito, mas muuuito congelada ali.
A verdade é que não existe verão, não existe praia, não existe areia escaldante. O que existe é esse pote de manteiga que deixei fora da geladeira ontem à noite e agora no café da manhã se apresenta tão dura quanto se tivesse passado a madrugada dentro do freezer. Nem ouso ir conferir a temperatura das duas latinhas de cerveja que comprei ontem no mercado e deixei guardadas no armário da despensa. Vai que estejam congeladas e eu tenha de jogá-las fora.

Observo o forno de micro-ondas com uma sensação estranha percorrendo meus pensamentos e me parece que uma ideia estúpida se vai ali formando. Parece que estou dimensionando com o olhar a largura e profundidade do interior do aparelho, para ver se dentro cabem meus pés. Devo parar enquanto é tempo. Conduzo-me, determinado, rumo ao chuveiro. Coragem.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de junho de 2015)

quarta-feira, 24 de junho de 2015

Espelho meu

Acho que tudo tem a ver com a forma como você enxerga a si mesmo, sei lá, pois que não sou psicólogo, apenas sinto algumas coisas, percebo outras, imagino inúmeras, cometendo muitos erros e celebrando os poucos acertos. “Aprenda em silêncio com os erros para poder exibir os acertos”, já dizia não sei quem, e nem sei se de fato alguém o disse, sendo essa talvez outra das minhas imaginadas, mas deixa isso prá lá, afinal, “nem tudo que seduz é couro”, como dizia minha avó.
Mas eu pensava sobre essa questão da forma como você enxerga a si próprio, especialmente as formas como você não vê a si mesmo, aquilo em que você acredita que seu perfil não se encaixa. “Senhor Marcos”, por exemplo, é uma forma de tratamento que me desconcerta, me causa desconforto, me traz estranhamento e não sei dizer o motivo. “Senhor, eu?”, exclamo a mim mesmo, quando recebo essa forma respeitosa de tratamento, especialmente advinda da galera mais jovem, e a cada ano que passa, a cada novo chumaço de cãs que se assenta sobre minha cada vez mais calva cabeça, aumenta a proporção de “mais jovens” ao meu redor, e vou assim me estabelecendo como “senhor Marcos”, logo eu, que sempre fui Marcos, apenas Marcos, Marcos somente.
Para meu avô materno, sempre fui e sigo sendo o “Maco”. Para os colegas de escola, eu era o “Kirst”, já que havia na turma meia dúzia de Marcos e o sobrenome nos individualizava. Para meus pais, eu era o “Marcos Fernando” quando fazia arte e era chamado às contas. Na verdade, nessas ocasiões, eu era o “Mar-cos Fer-nan-do!”, se é que percebem a nuance da diferença de tratamento. Eu me arrepiava quando me transformava em “Mar-cos Fer-nan-do”. Para minha esposa eu sou o... Epa, calma, uma coisa é fazer crônica partindo do pessoal para atingir o universal; outra, é revelar que minha esposa me chama de... Nananina, leitor, vá ver se o Maco está na esquina!

Certa vez, ainda estudante universitário em Santa Maria, no frescor dos meus vinte e ralos anos, um menino de rua pedindo esmolas me abordou dizendo “ô, tio, tem um troquinho aí?”. Troquinho eu tinha e dei-o, mas, “tio”, eu? Pô, e o respeito? Só que era exatamente isso: uma questão de respeito. Sim, senhor, Marcos, é tudo uma questão de respeito. Ou então, sem a vírgula: Sim, senhor Marcos, é tudo uma questão de respeito.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de junho de 2015)

terça-feira, 23 de junho de 2015

Na China não, cão

Guri, Balú, Ufo, Chiquinho, Bolinha, Sherlock e Dibolinha são seres que têm muito em comum, talvez mais em comum do que possa cada um deles imaginar, em suas vãs filosofias caninas. Caninas, sim, porque tratam-se de cachorros, cães, cuscos, guaipecas, como se dizia em relação a alguns deles lá em Ijuí, anos atrás, quando eu era criança e cultivava a estimação de amigos caninos em nossa casa na Rua dos Viajantes. Plantada em meio a um pátio gigante, nossa residência era alegrada diariamente pela presença de animais de estimação de várias espécies, nunca tendo faltado cachorro.
Essa turma citada ali em cima perfaz o grupo dos amigos cães que viveram conosco ao longo de cerca de um quarto de século, alguns sucedendo outros, um que outro convivendo, tendo Balú sido o mais longevo, o ancião, o sábio da aldeia, que repassava aos neófitos as dicas sobre como viver e se dar bem ali naquela casa. Ser cão e dar-se bem em nossa casa era tarefa muito fácil, bastava ser simpático, latir e abanar a cauda, uma vez que éramos todos naturalmente afeiçoados a cachorros, gatos, peixes de aquário, tartaruguinhas, passarinhos, boizinhos e até galinhas (houve uma que viveu em estimação lá em casa, o Soiza, assim batizado por ter eu imaginado-o galo enquanto pinto e ter-se revelado ruiva galinha semanas depois, e a manutenção do nome eternizava meu erro de avaliação de gênero aviário). Nunca tivemos papagaio nem caturrita, talvez por falta de tempo, muito menos calopsita e iguana, que são bichos cuja estimação teve início mais recentemente, mas chegamos a namorar a ideia de adotar porquinhos-da-índia e hamsters.

Havia também bichos que nos adotavam de surpresa, como a macaquinha-prego Chica, que surgiu sabe-se lá de onde e foi se instalar nas árvores do matinho vizinho ao nosso pátio, vindo dar bom-dia e receber frutas e pão de presente lá em casa todos os dias, para alvoroço de Balú, Ufo, Soiza e o resto da galera. Recordo isso tudo no momento em que leio a aterradora notícia de que há na China um festival anual para celebrar o solstício em que mais de dez mil cães são abatidos e servidos de almoço. Que horror. E que sorte a de Guri, Balú, Ufo, Chiquinho, Bolinha, Sherlock e Dibolinha a de não terem ido ser cachorros na China. Nem sempre a gente tem consciência das sortes que carrega.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de junho de 2015)

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Negociação climática

Eis que então, no final de semana, chegou o inverno. Lá em casa, no entanto, ele já havia aparecido alguns dias antes da data oficial em que todos o esperavam. Não sei se minha esposa deu cópia da chave para ele ou se entrou sorrateiro pela porta entreaberta na tarde em que a faxineira veio fazer a limpeza do apartamento, já nas despedidas do outono. O fato é que, quando nos demos por conta, ele estava instalado, sem aviso ou cerimônias, como se fosse da casa, e foi ficando.
Quando uma visita inesperada chega assim, de supetão, é preciso você se adaptar a ela, para não ser indelicado. Com o passar do tempo, aprendi que não vale a pena assumir uma postura belicosa ou mesmo de amargor e confronto para com as facetas do clima, apareça ele em sua casa travestido de inverno, de verão, de primavera ou outono, e o melhor mesmo é aceitá-lo na forma como ele vem e encontrar meios de fazer com que a estada – normalmente longa, de três meses ao ano – seja o mais harmoniosa possível. Dos quatro visitantes sazonais, o mais difícil de lidar é justamente o inverno, que nos exige doses maiores de paciência, compreensão e adaptabilidade. Já estamos até meio que acostumados.
Só que dessa vez ele chegou em hora imprópria, ao antecipar em alguns dias inesperados a sua aparição lá por casa. Os cobertores tiveram de ser desencaixotados às pressas, as luvas e os chinelos de pano idem, as estufas para aquecer o banheiro na hora do banho foram resgatadas e a lareira da sala foi arrancada de sua hibernação e meio que teve de pegar no tranco. A cafeteira passou a trabalhar em turno dobrado e aquele vinho que há tempos rolava intocado levou um susto ao ser transformado de súbito em panela de quentão, pois que minha esposa fez aparecer, por mágica, acredito, alguns cravinhos-da-índia de dentro da despensa.

Como ele chegou este ano alguns dias mais cedo, já estou em negociações para que, a título de contrapartida, encurte sua estada e deixe lugar para a vinda da primavera alguns dias antes do oficial 23 de setembro. Primavera já enviou e-mail dizendo que topa. Quanto ao inverno, vamos ver, mas está meio difícil de quebrar o gelo e arrancar promessas de sua postura glacial...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de junho de 2015)

sábado, 20 de junho de 2015

Cuidado com a dama

“É preciso cuidar da dama”. Com essa frase, repetida sempre que nos preparávamos para a nossa semanal partida de xadrez, nas noites de terça-feira, lá em Ijuí, meu avô paterno ressaltava uma das mais importantes dicas estratégicas do milenar jogo que encanta gerações. Muito mais do que o rei, limitado em seus movimentos sobre os quadrados do tabuleiro, tão grande e portentoso quanto frágil, restrito a atos de fuga e exigindo proteção constante, a rainha é a peça mais poderosa entre todas e, portanto, a prioritária a ser protegida. Assim, o lógico era “cuidar da dama”.
Jogávamos no gabinete que meu avô tinha no segundo andar de sua ampla casa de arquitetura típica alemã, adornada na parte externa com lambrequins, o enxaimel ainda presente em determinadas estruturas, os telhados em formato de “V” proporcionando uma viagem no tempo a antigas aldeias europeias. O ambiente ficava a meia-luz, um enorme abajur posicionado a um dos lados do tabuleiro, focando a essência da luz sobre as peças que iam sendo movidas de quando em vez, obedecendo ao ritmo compassado do raciocínio de cada contendor. E tanto um quanto o outro, cuidando suas respectivas damas.
Dependendo do seu humor na noite – que invariavelmente variava entre o bem humorado e o muito bem humorado –, meu avô exercitava variações sobre o próprio tema, invertendo o foco do mantra e aconselhando a ficar atento e prestar atenção aos movimentos do adversário (no caso, ele próprio). “É preciso ter cuidado com a dama”, advertia, ensinando assim que, além de ser necessário jogar de forma a evitar que minha rainha ficasse fragilizada, era também imperioso que eu me prevenisse contra os ataques que a rainha inimiga poderia estar tramando com o movimentar de sua saia pelo lado de lá das fileiras adversárias. Ahá!

Era, então, preciso cuidar da dama (da minha) e tomar cuidado com a dama (a dele). Claro que a regra não valia só em relação à rainha: também era preciso cuidar dos meus cavalos e atentar aos cavalos dele; cuidar dos meus bispos e atentar aos dele; deitar um olho nas minhas torres e o outro olho nas dele. Mas as damas, meu caro, ah, as damas valiam ouro. E hoje dou de presente a metáfora, deixando-a livre para que o leitor a interprete de acordo com suas próprias estratégias.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de junho de 2015)

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Lembranças turbindas

Hoje a lembrança do acontecido é difusa, vem borrada devido à ação predatória do tempo, obrigando ao exercício da liberdade criativa para preencher as lacunas do fato e permitir que, assim, completado à força, se transforme em história a ser contada. A data eu lembro bem: novembro de 1979. Fica fácil lembrar não porque esteja lançada em algum diário preservado junto à caixa de guardados (na época, ainda era comum as pessoas cultivarem diários, apesar de a prática já estar em franca extinção), mas porque está impressa na capa do gibi (“Heróis da TV” edição número 5), que eu lembro ter adquirido na ocasião (a referência para os principais episódios de minha vida se ampara na recordação nítida daquilo que eu estava a ler na época).
Eu tinha 13 anos, ainda morava em Ijuí, na Rua dos Viajantes, e seria a primeira vez na vida que iria voar de avião. Meu pai tinha negócios a fazer em Porto Alegre, distante cerca de 400 quilômetros, e, dessa vez, iria a bordo de um Bandeirante que sairia do aeroporto municipal rumo ao Salgado Filho. Os Bandeirantes eram pequenos aviões de passageiros (com capacidade para levar 12 passageiros), produzidos pela Embraer entre 1973 e 1991 e, creio, devia fazer linha entre a região Noroeste do Estado com a Capital. Isso, claro, estou supondo. O fato é que o avião estava lá e meu pai decidiu me levar junto, talvez como prêmio por ter concluído o ano letivo na terceira série do primário sem pegar recuperação (aí também já estou supondo).
Não recordo de detalhes do voo, nem quanto tempo durou (a julgar pela lógica, provavelmente não mais do que uma hora), mas tenho ainda claríssima em mim a ansiedade frente à nova e excitante experiência, tamanha que resultou no enjoo a oito mil metros de altura e na necessidade de utilizar o saquinho plástico providencialmente disponível ali caso o almoço decidisse retornar por onde havia entrado, como de fato decidiu. Fiquei no quarto do hotel enquanto meu pai despachava suas reuniões de negócios na cidade. Li os gibis que havíamos comprado na banca da Praça da Alfândega, circulei pelos incríveis cinco canais disponíveis na televisão e, o melhor de tudo, pedi à recepção, pelo telefone do quarto, torradas e suco de laranja.

No dia seguinte, voltamos os dois a Ijuí em um carro alugado, eu acumulando lembranças e aprendendo a usar a imaginação para preencher histórias.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de junho de 2015)

quinta-feira, 18 de junho de 2015

A um poeta

O mundo seria pequeno demais, tosco demais, árido demais, rústico demais, absurdo demais, selvagem demais, angustiante e opressor demais, infeliz demais, triste demais, pesado demais, impraticável e sem sentido se não fosse a Poesia. A Poesia é o sopro que areja a existência de tudo, é o bálsamo que lubrifica o atrito entre as engrenagens que compõem o mundo, é a panaceia vital capaz de permitir o fluir da seiva intangível que confere, se não sentido, pelo menos o conforto e o aconchego necessários para que o peso do existir tenha leveza e possa alçar do solo duro os pés que, então, ganham como que asas. A Poesia permite voar e transcender as limitações do corpo, tocando sutilmente os intransponíveis limites da eternidade.
A Poesia redime a Vida e domestica a Morte, já que esta não pode ser vencida. Domestica e ludibria, porque, a partir de seus frutos, que são as Artes, consegue manter viva a chama do Poeta por meio da permanência de suas Obras na Memória coletiva. Enquanto houver quem cante o canto do Poeta, enquanto houver quem leia suas linhas, quem contemple suas telas e esculturas, quem escute a sua música e a sua voz, quem assista às suas encenações e produções visuais, quem viaje em suas fotos, quem reflita sobre suas propostas, a finitude seguirá sendo protelada e o pulsar da Vida continuará achando caminhos para fluir como sangue vital por veias infinitas.
A Poesia não se extingue junto com o último suspiro do Poeta. Justamente por ter sido Poeta é que ele consegue erigir em vida um castelo sólido de tijolos de brisa, amalgamado na argamassa da criatividade e da inspiração, fundeado nas entranhas da alma e, por isso mesmo, inabalável, irredutível e indestrutível. O Castelo da Obra do Poeta permanece e permanecerá, porque foi construído em Poesia, a mais perene e sólida matéria já concebida pelos deuses, pelos anjos e pelos homens. O Poeta se vai e dele sentiremos imorredouras saudades. Mas amaciaremos essas saudades contemplando a existência que fica, amparados pela Poesia que o generoso Poeta nos deixa de legado. A ele, portanto, teremos sempre graças a dar. Temos de ser gratos aos Poetas, de todas as Artes.

Entre eles todos, gratidão especial ao escritor florense Flávio Luis Ferrarini, que desde a última terça-feira transformou a si mesmo em eterna metáfora de Vida.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de junho de 2015)

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Camelo na sala

É engraçado, mas comigo é assim: eu sempre chego com o bonde já andando. Entro e a sessão já começou há pelo menos alguns minutos. Não tem jeito de esperarem por mim para darem início à cena, e isso que, via de regra, o protagonista, o artista principal, sou eu. Deveria haver mais respeito nesse quesito, mas vai reclamar para quem? Quem é o responsável pelo gerenciamento do andar dos sonhos? Quem é o diretor, o roteirista? Quem responde pela sala de projeção?
Apagam-se as luzes do quarto, deito na cama, entrego o ingresso não sei para quem e zzzzzzz, logo estou de olhos fechados, mergulhando no primeiro sono da noite, sem perder tempo, sem atrasos, mas não tem jeito, jamais consigo pegar o início da projeção, onde suponho que deva aparecer pelo menos o título do curta-metragem (sim, porque os sonhos, ao menos os meus, são curta-metragens, duram segundos ou poucos minutos, não sei os da senhora). Nada disso. Quando engato o primeiro ronco, a ação já está em andamento, sem que eu tenha conseguido me situar sobre nada, nem sobre o enredo, sobre a época da história, o ambiente, o contexto, coisa alguma.
Por isso, suponho, essa sensação de estranhamento com aquele camelo no meio da sala assim, de repente, vindo sei eu de onde, pois que, como disse, não me foi dado pegar a história desde o início. Deve haver algum motivo razoável para ele estar lá, naturalmente, mas, como não sei de nada, fico apavorado com o camelo no meio da sala, ainda mais no décimo-primeiro andar do prédio, e isso gera uma angústia indescritível porque daqui a pouco vão chegar os convidados e o que é que eles vão pensar, é preciso tirar aquele bicho dali, mas por onde, não posso arremessá-lo pela sacada porque poderia machucar alguém lá em baixo e daí até provar que o camelo não é meu, bom, que seja então pela porta de entrada mesmo, ela que de repente assume o formato de um imenso buraco de agulha e despacho o camelo por ali, sem me dar por conta da metáfora bíblica que se estabelece e então acordo, suando, o coração aos pulos.

Ah, sei lá, não imagino o que a senhora ache, mas isso não pode continuar assim. Exijo que passem a esperar por mim antes de darem início a essas histórias e não me deixem acordar antes de ver todos os créditos finais. Ao menos, para saber a quem responsabilizar pelo consumo excessivo de pesadelos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de junho de 2015)

terça-feira, 16 de junho de 2015

Profissões na mira

Ponho-me a passear por um site de notícias na internet e não resisto à tentação de ler uma que traz projeções futurísticas a respeito de profissões que podem estar com os dias contados devido ao avanço irrefreável da tecnologia. Tem muita bobagem nesse tipo de pseudomatéria, basta ver as previsões feitas no início desse século, dando conta de que em apenas dez anos os livros desapareceriam do mundo por causa dos e-books, e olha só o que (não) aconteceu: os livros seguem aí, felizes e garbosos atulhando as prateleiras das livrarias, tão pouco lidos quanto antes, mas, ainda assim, presentes.
Mas abro a tal matéria e lá vou eu espiar a lista de cinco profissões que, dizem, vão desaparecer em breve, quem viver, verá (verá a tremenda bobagem ou, quem sabe, a confirmação da profecia, vai saber). A primeira da lista é a profissão de carteiro, que pode sumir devido ao processo de automação dos registros de correspondência. Aham. Como vai ser? Robôs vão apertar o interfone de meu apartamento para entregar a carta registrada e vão conferir na carteira de identidade se eu sou eu mesmo? Certo, certo. Carteiros, durmam tranquilos, ok? Depois vêm os caixas de banco. Nisso eu acredito, pois de fato os caixas automáticos e o atendimento por internet estão cada vez mais eficazes. Mas daí vem a atividade de juiz de futebol, que poderia desaparecer devido ao uso da tecnologia. Ah, me poupem. Não é uma máquina que vai ser capaz de decidir se foi ou não foi falta. As mães dos árbitros podem dormir tranquilas, que seus filhos têm emprego garantido por muito tempo ainda.
Em quarto lugar, vêm os operadores de telemarketing, que serão substituídos, esses sim, por robôs, o que, na prática, não faz diferença nenhuma, já que isso eles sempre foram. Não muda nada. Caixas de supermercado também correm o risco de desaparecer, devido ao processo de automatização dos processos de compra e pagamento. Certo, nisso eu acredito. Mas o que ninguém fala é sobre as profissões que já faz tempo deixaram de ser exercidas por profissionais da área habilitados, como políticos (cadê os de verdade, que atuam em nome do bem comum?), jogadores de futebol (os pernas-de-pau tomando o espaço dos talentosos), atores (modelos, cantores, subcelebridades e afins poluindo as telas) e assim por diante. Farei uma lista...

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de junho de 2015)

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Filosofia de segunda-feira

Vivemos uma só vida, essa que a gente constrói por conta própria desde o nascimento até o ponto final. As cores que vão ornamentar nossas biografias decorrem das escolhas que vamos fazendo ao longo dessa trajetória e, como somos únicos, vamos fazendo escolhas personificadas e, assim, nos diferenciando uns dos outros, cada qual construindo uma história única. Impossível, pois, viver outras vidas senão a nossa, e a forma de subverter  essa verdade fundamental se dá por meio do mergulho nas artes narrativas, em especial a leitura (a base de todas as outras), quando podemos entrar na pele de outros personagens e viver experiências que, de outra forma, não caberiam dentro dos departamentos que regem a nossa própria existência.
Se tivéssemos dito “sim” aquela vez, décadas atrás, estaríamos seguramente vivendo uma vida diferente hoje. Se tivéssemos optado por um curso diferente, ou por insistir em um relacionamento, ou por acelerar menos naquela curva, ou por ter dito aquele “não” na hora certa, ou por não termos saído de casa naquele domingo, tudo teria sido diferente, e teria, mesmo. As transformações que ocorrem em nossas trajetórias às vezes decorrem de atitudes simples, prosaicas, cotidianas, aparentemente desprovidas de maiores significados. O voo de uma borboleta ao redor de seu nariz, que impulsiona aquele tapa ou aquela parada para observar a magia da natureza, são atos capazes de impedir você de atravessar a rua defronte ao ônibus desgovernado... Ou não. O voo de uma borboleta pode transformar sua vida, sim senhor. Bem como uma xícara suja deixada para lavar amanhã, só amanhã de manhã.

Da mesma forma se dá com a História com “h” maiúsculo. Que mundo teríamos caso certas ações não tivessem sido tomadas pelos grandes vultos, ou se eles tivessem decidido agir diferente? Que país teríamos se os holandeses houvessem conseguido sobrepujar os portugueses pela posse de nosso território? E se jamais tivesse havido golpe militar em 1964? E se o nazismo tivesse vencido a Segunda Guerra Mundial, em que mundo viveríamos? Teria eu nascido? Meu pai teria conhecido minha mãe? E se Dom Pedro I tivesse decidido não ficar no Brasil? E se eu tivesse dito ‘não” ontem? E “sim” antes de ontem? E quem pediu crônica filosófica numa segunda-feira? Melhor se nem a tivesse escrito...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de junho de 2015)

sábado, 13 de junho de 2015

Refri de maionese

“A vida é como um refrigerante de maionese/ E a vida é como espaço sem sala/ E a vida é como bacon com sorvete/ Assim se parece a vida sem você”. Esses versos aí configuram a abertura de uma canção do roqueiro nova-iorquino Lou Reed (1942 – 2013), intitulada “What´s good” (“O que é bom”, em tradução livre), abertura do álbum “Magic and Loss”, lançado em 1992. Verborrágica e repleta de teses e conceitos poéticos, como toda a excelente obra de Lou Reed, a letra fala sobre o sentido da vida que, em última análise, é boa, porém, às vezes, injusta.
Ao elencar uma pequena série de conjunções estranhas como refrigerante de maionese, que causam rejeição só de pensar, o músico está querendo intensificar, a partir do contraste, como a vida dele (ou a do personagem da canção) seria sem sentido sem a presença da outra pessoa, provavelmente a namorada ou esposa ou amante. A vida sem ela seria sem sentido igual a um refrigerante de maionese, ou igual a espaço sem salas ou ainda igual a bacon com sorvete. Se bem que eu, fissurado por maionese como sou, encararia um copo de refrigerante produzido a partir desse condimento, só por curiosidade. Descendente de germânicos, creio que também arriscaria dar uma garfada e provar um bocado composto por uma bela tira de bacon frito acompanhado por uma bolotona de sorvete, misturando doce com salgado. E espaço sem salas, bem, vivam os parques, não é mesmo?
Mas a ideia não é desautorizar a poesia do Lou Reed, pelo contrário. Concordo com a qualidade das metáforas que ele criou para compartilhar a sensação de estranhamento que seria a vida sem a pessoa amada ao lado. O que fico pensando é que qualquer pessoa que escute a letra poderia completá-la, agregando mais elementos de uma lista pessoal de coisas sem sentido, sem sabor, que funcionariam como sinônimos de estranhamentos. Entra aí a observação feita dia desses por um amigo meu escritor aqui de Caxias: “crônica sem título é igual a namoro sem beijo”.
Taí, uma frase bem ao estilo Lou Reed, que diz tudo. Mas nada contra quem opta por namorar sem beijar, como aquele casal de Macatuba (SP), a Géssica e o Rafael, que casou após dois anos de namoro sem beijos nem toques, e foi notícia nacional. Havemos de respeitar as opções de cada um, pois a cor da vida depende dos olhos de quem a vive. E me passa prá cá esse copo de refri de maionese, que me deu sede.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de junho de 2015)

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Goleada contra a censura

Eu pergunto: quem não gosta de ver uma goleada? Eu respondo: somente aqueles que sofrem a goleada. Mas independentemente do lado em que você se posiciona (no do goleador ou no do goleado), a goleada em si sempre é revestida de beleza. A beleza da goleada. Poderíamos cunhar uma nova figura de linguagem: “belo como uma goleada”.
Aquela dos sete a um metidos pela seleção da Alemanha contra as redes da seleção brasileira na última Copa do Mundo, por exemplo, não foi linda de se ver? Triste e humilhante para nós, brasileiros, mas que foi bonita de se ver, ah, isso foi, porque, depois do terceiro, do quarto, do quinto gols, todos passamos a nos identificar mesmo era com os goleadores, no papel de quem desejaríamos estar. Porque é bom meter uma goleada. Lava a alma, exorciza o íntimo, alivia os pesos. Goleada tem papel purgativo.
Quem protagonizou um linda goleada histórica no Brasil esta semana foram os nove ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que meteram nove a zero sem dó nem piedade, derrubando por unanimidade a pretensa necessidade de autorização prévia para a publicação de biografias não-autorizadas em formato de livro ou de audiovisual. Ou seja, tinha gente querendo (e até então estavam conseguindo) que vigorasse no país a censura prévia à publicação de biografias de pessoas famosas, o que é um claro atentado antidemocrático à liberdade de expressão, direito, aliás, já garantido pela Constituição Federal. Mas agora, em uma atitude exemplar e que nos enche de orgulho (ao menos a nós, cidadãos brasileiros que defendemos a liberdade e somos contra qualquer tipo de censura), o STF consolida, na expressão de uma das ministras, o fato de que, no Brasil, ditadura é coisa do passado e o “cala a boca já morreu”, mesmo.

Censura prévia existe é na China, no Irã e em Cuba, países onde “democracia” e “liberdade” são expressões proibidas e passíveis de levar cidadãos à cadeia e até à pena de morte. Aqui, não, jacaré. Se os senhores Roberto Carlos, Caetano Veloso e Chico Buarque (propositores e defensores da censura prévia às biografias) se sentirem atingidos pelo que for escrito e publicado, que procurem seus direitos junto à Justiça, que está aí justamente para isso. Mas não venham me dizer o que eu posso ou não posso dizer e escrever. O STF afastou da gente o cálice da censura, felizmente.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de junho de 2015)

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Dilema astronômico

Daí, em meio à crise econômica que é uma das piores da história recente; em meio ao aumento da violência urbana que oferece um cardápio de renovados horrores a cada dia que passa; em meio ao esfacelamento das regras básicas de convívio em sociedade; em meio ao moedor de carne que se transformou o trânsito de veículos nas ruas e nas estradas do país; em meio à porteira escancarada para a corrupção em todas as esferas possíveis e imagináveis, em meio a tudo isso, o olho bate naquelas notícias que tendem ao inusitado, claro, porque, convenhamos, é preciso um refresco para amenizar a temperatura interna que sobe frente a tanto descalabro.
Daí que então fica-se sabendo que a má notícia agora vem lá da Nasa, a Agência Espacial norte-americana, cujas preocupações não se voltam às misérias enfrentadas por um país de periferia como o Brasil, mas que volta os olhos e os esforços para questões mais estratosféricas, digamos assim, para não perder a mão na tendência de tentar encontrar trocadilhos e metáforas afins. A Nasa, pelo jeito, também não anda passando lá por uma de suas melhores fases, a julgar pelo que nos mostra a imprensa internacional. Agora, dia desses, andou falhando pela segunda vez o teste que a cientistada fez para botar em ação um pára-quedas gigante que permitiria, caso funcionasse direito, que se alcançasse a suavidade necessária de pouso para futuras naves que deverão rumar a Marte nas próximas décadas (provavelmente repletas de brasileiros fugindo da terra de ninguém em que isso aqui está se transformando).

Dessa vez, o tal pára-quedas tamanho família parece que não abriu direito e o protótipo de nave espatifou-se em algum deserto escolhido para testes nos Estados Unidos. Na tentativa anterior, parece que houve um rasgo que resultou também em espatifanças. Eles que acertem esse negócio, porque, antes disso, eu é que não entro em nave alguma rumo a Marte assim tão cedo. Mas bem que gostaria. Ah, gostaria. Porque a coisa aqui em baixo está ficando danada, e os marcianos que se preparem porque vamos invadir a praia deles logo, logo. Assim que organizarem esses pára-quedas aí, eu entro na fila com toda a obra do Balzac em baixo do braço (não cabe sob apenas um braço, terei de levar em um carrinho ou daunloudada no ipad), me estabeleço dentro de uma cratera marciana que será só minha e tchau e gracias. Mas, enquanto isso...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de junho de 2015)

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Bom dia, boa tarde, boa noite

Ah, estudar, estudar, ampliar as fronteiras do seu próprio universo a partir da apreensão do conhecimento. Que delícia, que prazer, que aventura, que sucessão de emoções! Meu avô já me dizia, na minha infância: “estuda, Maco – pois que ele me chamava e chama até hoje de “Maco” –, estuda e aprende, já que essa é a única coisa que parece que tu sabes fazer direito”. E lá ia eu arrolhar as fuças nos livros e lia aventuras de Sherlock Holmes e traquinagens da boneca Emília pelo Sítio do Picapau Amarelo, sem me dar por conta de que lendo o que gostava estava de fato estudando e aprendendo da melhor forma possível.
O que meu avô não disse pro Maco aqui (hoje já um verdadeiro “Maco véio”, como agora me chama meu afilhado) era que, nessa coisa de ler e estudar, reside um fenômeno surreal e inexplicável, que consiste em uma sensação de que quanto mais se lê e se estuda, menos se sabe das coisas e mais é preciso ler e ler e estudar e estudar, em um ato vicioso contínuo e interminável ao longo de toda a existência de um Maco leitor. E ainda bem que não disse, pois isso é coisa que se descobre sozinho, da mesma forma como a maioria dos prazeres da vida. Mas tergiverso antes de entrar na essência da crônica de hoje, pra variar.

Eu já revelei aqui, a leitora atenta haverá de lembrar, que nada sei da língua francesa além de “bonjour”. Mas esse pouco-quase-nada que sei, estudioso que sou, me permite abrir um vasto universo de reflexões. Sim, porque, conforme andei aprendendo, os franceses utilizam apenas dois tipos de cumprimentos ao longo do dia: esse “bonjour” aí, que é usado tanto pela manhã quanto à tarde, ou seja, sempre que houver sol no céu, mesmo que nublado esteja; e “bon soire”, usado à noite (“boa noite”). Simples assim. Bem mais fácil que nosso português, que precisa do “bom dia” de manhã, do “boa tarde” à tarde e do “boa noite” à noite. E mais fácil ainda que o inglês, que usa “good morning” de manhã (”boa manhã”), “good afternoon” à tarde (“bom pós-meio-dia”?!), “good evening” à noite quando está chegando e “good night” à noite quando está partindo. Eita!
Interessante que nenhum povo parece se cumprimentar de madrugada, quando todos os gatos são pardos (até mesmo na França). Mas lerei a respeito e voltarei ao assunto, aguardem notícias do Maco véio. Good by.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de junho de 2015)

terça-feira, 9 de junho de 2015

Mordida na lua crescente

Nunca é muito tarde para aprender e nunca se é velho demais para absorver uma nova informação que possa vir a colorir um pouco mais a vida, trazer um pingo novo de poesia aos pequenos atos do cotidiano. E por mais obtuso que se possa ser, sempre haverá a possibilidade de, em um súbito lampejo, as pesadas comportas de aço da inteligência se abrirem em seu cérebro para deixar esgueirar-se uma réstia de luz que lhe iluminará uma compreensão reveladora. Uso a mim mesmo como exemplo para comprovar todas essas teses, uma vez que já sou bem vivido em anos e cultivo lá as minhas diversas obtusices (existe “obtusices”, no sentido de conjunto de ideias obtusas, será?).
Vamos ao exemplo. Um exemplo prosaico, sutil, decorrente dessas tais pequenas insignificâncias do cotidiano que tão bem servem às demandas de um cronista diário, como não poderia deixar de ser, já que usarei a mim próprio de exemplo, conforme acertado com o leitor em linhas anteriores (eu queria me pavonear um pouco e escrever “em supracitadas linhas”, mas como não sei se, na paginação do texto na folha impressa do jornal, as tais linhas ficarão realmente acima destas ou na colunagem ao lado, evitei de fazê-lo e tasquei mesmo um singelo “linhas anteriores”, bem menos poético mas mais verossímil). Mas voltando a mim mesmo e deixando de lado as intercalações, quero tratar de croissants. No próximo parágrafo, a revelação, pois que este já se estende em demasia de linhas.
Eu, que não sei nada de francês além de “merci”, mesmo assim adoro saborear um delicioso croissant, e devoro-os de vez em quando sem saber exatamente o que estou comendo. “Ora, você está comendo um croissant”, me dirá a atilada leitora. Sim, é verdade, mas ontem descobri que o recheio é mais embaixo, e bem mais poético do que meramente isso. Descobri, depois de velho e sempre obtuso, que a palavra “croissant” significa “crescente” em francês, tendo assim batizado o acepipe devido a seu formatinho de lua crescente (a pista residia na vizinhança latino-americana, onde o mesmo acepipe se chama “media luna”, asno desatento que sou). Agora, folheado que estou de conhecimento, nunca mais saborearei um croissant da mesma forma que antes. Agora, faço-o com muito mais poesia a cada mordida, pleno daquela poesia sutil que emana da lua. O conhecimento, mesmo que tardio, sempre é transformador.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de junho de 2015)

segunda-feira, 8 de junho de 2015

A vaca chega lá

E quando vimos, sem que ninguém soubesse explicar como e vinda de onde – e muito menos o motivo -, a vaca estava lá. Quanto mais se vive, mais vamos nos conformando à verdade absoluta de que nem tudo na vida possui uma explicação lógica e racional. Daí o porquê de ser impossível eliminar de vez as esferas sobrenaturais da existência, uma vez que é a elas que precisamos recorrer quando a lógica e a razão se mostram insuficientes para clarificar aquilo que se apresenta obscuro.
E o surgimento de uma vaca gorda e ruminante, tranquila e serena como sói serem as vacas, parada ali no saguão do hotel refinado, defronte ao elevador, como que a esperar sua chegada para se dirigir calmamente a seu quarto, é fato que só pode obter alguma réstia de explicação se palmilharmos as tais esferas do inexplicado, que seja a parapsicologia, a metafísica, a astrologia bovina, os búzios, a cartomancia, enfim, o que quer que seja. Só o que sei é que a zootecnia e a veterinária jamais conseguirão me oferecer uma explicação plausível que elucide a motivação da vaca para adentrar os corredores laterais do hotel, normalmente utilizados pelos funcionários em serviço, até ir postar-se sobre o tapete vermelho defronte ao elevador principal utilizado pelos hóspedes.
Eis aí o primeiro dos mistérios. O segundo, e ainda mais boquiabertante (traduzo o neologismo: “fenômeno capaz de produzir o efeito de espanto conhecido pela metáfora de deixar cair o queixo”), é o fato de, ao longo do manso e determinado trajeto da vaca, ninguém tê-la percebido até que finalmente se posicionasse defronte ao elevador, como já dissemos. Há quanto tempo haveria de estar ali? Teria tentado entrar caso a metálica caixa semovente surgisse e abrisse-lhe as portas? Só o que se pode é conjecturar.

O fato da vaca que surgiu defronte ao elevador em um hotel de luxo aconteceu de verdade algumas décadas atrás na cidade de Santa Maria e fui uma das testemunhas do bizarro caso. Aquela estranheza me acompanha vida afora, e não são poucas as vezes em que me pego refletindo sobre ele. Afinal, não é estranho que as vacas às vezes cheguem lá sem que saibamos como o fizeram, nem quem as trouxe? Que é estranho, isso é. E que as vacas às vezes chegam lá, isso é uma verdade incontestável...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de junho de 2015)

sábado, 6 de junho de 2015

Desaconselho útil

Este cronista que vos escreve não é nenhum modelo de virtude inexpugnável passível de servir de exemplo de nada a ninguém, ele bem sabe disso, e é por isso que se exime de ficar aqui utilizando estas mal-digitadas linhas para tecer conselhos de conduta a quem quer que seja, a fim de evitar transformar-se em alvo de críticas do tipo “faça o que ele diz, mas não faça o que ele faz”, essas coisas. Ciente disso, prefere o cronista em questão dedicar-se à prática dos desaconselhamentos úteis, ou seja, ao invés de aconselhar, já que não possui habilitação para dar conselhos a ninguém, mesmo porque conselhos, se bons fossem, vendidos seriam, e não dados, como bem sabe o vulgo, melhor então oferecer ao leitor o outro lado da moeda, que talvez lhe possa vir a ser útil por vias inversas, se é que me faço entender nestas já citadas mal-digitadas e agora longas-de-morrer linhas.
Vamos então ao desaconselhamento do dia. Trata-se de um desaconselhamento específico, porque também não vamos aqui enfileirar desaconselhos porque daí a coisa descamba para o exagero e ninguém absorve nada. Desaconselho, então, o leitor a fazer o que fiz e, por experiência vivida e sofrida, é que digo: não faça em casa se você não estiver com mais tempo do que imagina; não faça em casa se você não se certificar de que está com toda a sua louça devidamente limpa e pronta para uso total e imediato (isso inclui panelas de todos os tipos, todos os talheres, caçarolas, coadores e até o saca-rolhas, porque nunca se sabe); não faça se você não tiver espaço para ir empilhando a louça suja; não faça se você não tiver ingredientes no dobro da quantidade pedida pela receita, porque o erro exigirá meter tudo fora e reiniciar o processo; não faça se você não contar com alguém que o ajude, porque serão necessárias pelo menos quatro mãos em ação; não faça se você estiver propenso ao mau humor nesse dia; não faça se estiver verdadeiramente com muita fome. Se depois disso tudo, mesmo assim optar por fazer, faça, mas depois não venha me dizer que não desaconselhei.

Terminada a crônica, com licença que preciso lavar a montanha de louça de ontem à noite, quando, desavisado, meti-me a fazer pela primeira vez na vida a clássica receita de ovos beneditinos. Malditinos, isso sim. Ninguém tinha me avisado antes...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de junho de 2015)

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Fórmula indigesta

Até pode ser que a receita escolhida para o formato dos programas gere uma audiência astronômica, deixando alegres os anunciantes e mais faceiras ainda as emissoras televisivas, porém, não adianta, eu não consigo engolir e agradeço, passo batido. Até já tentei assistir a alguns desses reality shows que giram em torno do universo da gastronomia, com equipes competindo pelo posto de melhor chef da temporada, porque aprecio a arte culinária, sou um cozinheiro amador que adora pilotar panelas e frigideiras no aconchego de minha cozinha, mas não dá, não consigo digerir o clima de terror que não sei por que cargas d´água é a tônica dessas atrações.
O que vejo nesses programas é uma turma de renomados chefs brasileiros e internacionais gritando impropérios contra pseudocozinheiros de fundo de quintal, que vão enterrando os barretes cabeça adentro, escondendo as orelhas e a vergonha quando recebem xingamentos estratosféricos porque o ovo passou demais, a carne não ficou ao ponto, o molho holandês ficou com cara de sueco, o caldo entornou e não adianta chorar sobre o leite derramado. O que vejo é um acúmulo de tensão que vai crescendo ao ritmo de deselegâncias, de grosserias, de berros. Lamento, mas gastronomia e cozinha não têm nada a ver com isso, não há jeito de eu encontrar um ponto de convergência pessoal que me faça permanecer mais do que 30 segundos em frente a um programa desses, por mais que possam vir a me interessar as receitas e os modos de fazê-las. Não dá.
Já participei de cursos de gastronomia, nos quais o clima reinante é de alegria, de confraternização, de compartilhamento de um prazer comum entre pessoas afins, que estão ali para desvendar juntas as maravilhas e os segredos prazerosos da alquimia da transformação dos alimentos em sabores, odores, texturas. Cozinhar é uma arte e, como arte, é uma via de expressar humanidades. Até pode ser que haja no mundo pessoas encarceradas em situações nas quais acabem cozinhando com raiva, mas isso é uma exceção. Quando o assunto é gastronomia, a trilha sonora é a paixão, o amor, a delicadeza que essa arte sutil e agregadora requer.

Competições gastronômicas regadas ao molho da grosseria só podem gerar banquetes indigestos. Tô fora. Aliás, ainda não pensei na janta...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de junho de 2015)

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Cadeado do amor

Mas que coisa mais triste essa história da retirada dos tais “cadeados do amor” lá daquela ponte em Paris, que a imprensa noticiou esses dias, vocês não acharam, hein? Eu achei! O quê? Como é, minha senhora? A senhora não está entendendo lhufas de que raios eu estou falando? Bom, então senta aí que eu explico, porque cronista que se preze não pode ficar escrevendo sem ter a certeza de que todos os seus leitores estão acompanhando. Então, façamos assim: quem sabe do que se trata vai dar uma voltinha no tempo de um parágrafo, que é o que eu preciso para explicar para a madama ali do que se trata, e depois retornem que a gente continua juntos, tá bom assim?
Ok, vamos lá. Então, senhora, é o seguinte. Existe lá em Paris, a Cidade Luz, capital da França, uma ponte chamada Pont des Arts. É uma ponte antiga, construída no século 19, que ficou famosa porque, de uns anos para cá, os enamorados vindos de todas as partes do mundo, ao chegarem em Paris, cidade encantadora, charmosa, na qual o amor está no ar, começaram a criar o hábito de, ali nas grades de proteção da ponte, engancharem cadeados com as iniciais de seus nomes gravadas, a fim de eternizarem suas paixões. Um ato simbólico em nome do mais lindo sentimento que duas pessoas podem nutrir uma pela outra, a senhora sabe como é, né?
Só que, senhora – e nos apressemos aqui que o parágrafo já terminou e o pessoal está voltando – a cadeadança começou a ser tanta, mas tanta, coisa assim dos milhares, sabe, que a estrutura da ponte estava ficando comprometida. Sim, a Pont des Arts corria o risco de desabar devido a tanto amor! Mas aí a prefeitura de Paris resolveu acabar com a festa e mandou arrancar fora os cadeados todos, sejam eles os recibos de amores vindos do Ceilão ou da Patagônia, de Itacurubi ou de Madagascar, não interessa. Tudo fora.

Sim, senhora, triste, comovente, mesmo. Fiquei pesaroso e preocupado não com o destino dos cadeados, mas sim quanto à manutenção das paixões que eles representam ao redor do mundo. A senhora tinha cadeado lá com as suas iniciais gravadas nele, senhora? Não? Ah, tem razão: amor que é amor resiste a qualquer baque, igual à estrutura da ponte. A metáfora, então, estava na ponte, e não nos cadeados. Puxa, é verdade! A senhora tem visão de cronista, minha senhora...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de junho de 2015)

quarta-feira, 3 de junho de 2015

A cachorrada brasileira

Você sabe quantos brasileiros nós somos? Na década de 1970, todos sabíamos na ponta da língua que éramos 90 milhões em ação, pra frente Brasil, porque esse era um verso do hino da Copa do Mundo que nos levou ao tricampeonato mundial de futebol na Copa do México, um dos eventos históricos mais significativos e importantes de nosso país, como bem se sabe. De lá para cá, ganhamos outras Copas, perdemos outras, o país cresceu e a população não parou mais de crescer junto, até chegar aos atuais 204 milhões, conforme dados atualizados do site do IBGE, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que tem entre suas principais funções ficar contando quantos brasileiros nós somos.
Eu, que gosto dessa coisa de estatísticas e rankings e listas e quetais, fico hipnotizado pelo placarzinho eletrônico que figura ali na abertura do site oficial do IBGE (http://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/), mostrando a evolução em tempo real da população brasileira. Conforme as projeções do Instituto, nasce um novo brasileirinho em algum lugar do país, entre o Oiapoque e o Chuí, a cada 19 segundos. E é batata: você crava o olho no placar e a cada 19 segundos o último número atualiza. Ontem pela manhã, quando de minha última olhadela para escrever esta que os amigos agora leem, éramos 204.333.851 brasileiros. Mas crescendo, crescendo, crescendo sem parar...
O legal é que agora o IBGE, que há décadas já é craque em contar as gentes em nosso país, resolveu ampliar o espectro de suas pesquisas e já tem até condições de revelar quantos cachorros e gatos brasileiros existem nesse nosso continental país. Sim, é verdade, a notícia veio a público ontem: somos 204 milhões de pessoas no Brasil, acompanhados por uma população de 52 milhões de cães e 22 milhões de gatos. Dados oficiais do IBGE! E tem mais: 44,3% dos lares brasileiros possuem pelo menos um cãozinho de estimação e os gatos são os bichinhos existentes em 17,7% dos lares. Ah, o Paraná é o estado com o maior percentual de residências com cães.

Muito interessante. Fico agora na expectativa das novas ampliações do leque de pesquisas do IBGE, ajudando a entendermos melhor a formação das populações brasileiras. Depois das gentes, dos cães e dos gatos, será que saberemos quantos gatunos existem do Oiapoque ao Chuí? Mãos à obra, IBGE!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de junho de 2015)

terça-feira, 2 de junho de 2015

Lá vem o Brasil

E lá vem o Brasil, de novo, fazendo feio quando se trata de estudos que medem o desempenho de diferentes países em vários quesitos. Dessa vez a má notícia (brasileiro, aliás, é um bicho acostumado a essa coisa de má notícia, será que não?) se apresenta na forma de um ranking que mede a relação entre a carga tributária e o retorno que o país oferece à sua população em termos de serviços públicos de qualidade. Entre os 30 países analisados, adivinhem: o Brasil, claro, ficou em último lugar. Surpresa, não?
O estudo foi desenvolvido pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT) entre os países que apresentam a maior carga tributária no planeta. A posição alcançada por cada nação depende de uma equação de fatores entre o peso da carga tributária exercida sobre o cidadão por todas as esferas (municipal, estadual e federal) versus o PIB (Produto Interno Bruto) do país e o seu índice de qualidade de vida medido pela ONU. Vale ressaltar que essa já é a quinta vez consecutiva que o Brasil fica na lanterninha do ranking, no estudo divulgado ontem. Ruim, hein?
E o que seriam os tais dos serviços públicos de qualidade que deveriam vir em troca dos pesados impostos que os brasileiros pagam? Ora, aquilo que todos os políticos prometem providenciar na época das campanhas eleitorais, como todos lembram (ou deveriam lembrar): educação, segurança, saúde de qualidade, rodovias em boas condições, essas coisas todas de que tanto precisamos e que tanto nos faltam. Ou seja, o estudo do IBPT não revela nada que nós, brasileiros, já não sintamos na pele, nos bolsos e no cotidiano de sermos brasileiros desde sempre.

Interessante dar uma olhada nas posições de dois de nossos países vizinhos que também figuram na tabela: Argentina e Uruguai. Apesar de figurarem nessa lista dos 30 países do mundo que mais arrecadam impostos, ambos superam o Brasil em termos de transformação desse montante em benefícios aos seus cidadãos. O Uruguai figura em 11º lugar no ranking e a Argentina em 19º. Os três primeiros melhor colocados são Austrália, Coréia do Sul e Estados Unidos. E aí fica a pergunta: se arrecadamos tanto, para onde é que vai essa grana toda hein? Será que alguém erraria a resposta?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de junho de 2015)

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Teoria do chinelo

É preciso encontrar assunto para compor uma crônica por dia, todos os dias, quando se é cronista diário de um veículo de comunicação diário como é o caso deste cronista neste veículo, o jornal Pioneiro. Há aqueles assuntos que saltam no colo do cronista porque estão na pauta do dia, porque “só se fala em outra coisa”, como diz um amigo meu lá de Nova Bréscia. Temas que não podem ser ignorados e que ficam martelando na cabeça. Esses são fáceis, surgem logo e basta encontrar um viés diferente a ser abordado e pimba: está pronta a crônica, basta levá-la ao forno por trinta minutos e servi-la aos leitores.
Mas o que fazer quando o dia amanhece como sendo um daqueles em que nenhum desses temas escaldantes pipoca e nada salta ao colo do desolado e solitário cronista? Ora, elementar, meu caro leitor: o cronista, que não nasceu ontem (cronistas que se prezem precisam ter nascido já há algum tempo, sob o risco de escreverem crônicas imberbes), sempre tem guardado em um saquinho (eis aí uma revelação) um punhado de papeizinhos contendo anotações que podem vir a servir de tema para crônicas quando a inspiração estiver falhando. É assim que funciona.
Dia desses, por exemplo, tive de lançar mão ao tal do saquinho, guardado no fundo de uma das gavetas da escrivaninha (“percebi desde o princípio”, devem estar pensando os leitores mais atilados, desde o início da leitura destas mal-digitadas linhas de hoje). E aí fui abrindo os papeizinhos um a um, na busca de algum tema que me inspirasse algo, até me deparar com um que dizia assim: “passamos a vida inteira empenhados em mover os objetos de um lado para o outro em nossas casas, já que objetos são imóveis”. “Ahá, eis um tema para tecer uma típica crônica de cotidiano! Vamos lá”, pensei eu, e lá fui eu!
Bastava calçar os chinelos e... Epa, cadê o pé direito de meu chinelo de lã? Sumiu! Não teve jeito, desapareceu por completo durante a calada da noite, deixando só, ao lado da cama, o pé esquerdo, que me conduziu, mancando, até o computador, de onde pus-me a digitar esta que agora leem. Já o pé direito do chinelo apareceu mais tarde dentro da máquina de lavar roupas, para onde havia se dirigido ninguém sabe como, deitando por terra minha teoria de que objetos não se movem e eliminando uma possibilidade de boa crônica. Assim fica difícil...


 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de junho de 2015)