sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Revogaremos a lei

Vamos lá, vamos lá, vamos nos mexer e descruzar esses braços. Basta um punhadinho dumas trocentas mil assinaturas para encaminhar, via iniciativa popular, um projeto de lei a ser apreciado pelo Congresso Nacional. Feito isso, com mais um pouquinho de pressão, a gente altera as leis que não nos são satisfatórias.
Eu já estou me mexendo e dei inicio a um abaixo-assinado recolhendo adesões à minha proposta de revogar a lei que mais ando detestando ultimamente: a da gravidade. A gota d´água que transbordou meu copo de paciência pingou anteontem de manhã, quando eu me transtorcia para reinstalar um forno elétrico enquanto ao mesmo tempo encaminhava a instalação do forno de microondas (como todo bom cidadão desse estimulante século 21, preciso de todos os tipos de forno existentes no mercado, como pode-se bem perceber). Escorava o elétrico com a cintura enquanto dava-lhe as costas para pegar o de microondas que estava sobre a mesa quando, nesse contorcionismo de vai-vem corporal, o elétrico esquivou-se não sei como da longa e avantajada superfície de minha barriga e veio estatelar-se com estrondo e determinação contra o chão que dele distava não mais que um metrinho.
Mas o suficiente para fazê-lo em pedaços e injuriar meu pé que ainda hoje, ao narrar o feito, lateja ali embaixo. Culpa de quem? Da lei da gravidade, essa bandida puxadora de tapetes metafóricos e concretos. Culpa dela, também (foi o que me pus a refletir enquanto juntava cacos, peças e partes), o processo irreversível de queda da barriga de certos mamíferos bípedes portadores de sedentarismo crônico... da queda de cabelo em mamíferos similares em idades que se botam a superar o tempo... da desfiguração e queda do formato altivo e principesco dos seios das fêmeas da espécie com o andar do mesmo tempo... enfim, sem mais delongas, revoguemos a lei e experimentemos um novo e estimulante período de existência no qual haveremos de flutuar mais levemente as nuances de nossas existências.

Feito isso, podemos vir a pensar sobre o que fazer com a tal da passagem do tempo, citada por tabela na descrição anterior dos malefícios dessa já cansativa lei da gravidade, que nada mais fez senão lançar à fama o Issac Newton com aquela maçã que lhe melou a cabeça. Mas já estou a cair em devaneios. A gravidade, outra vez...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de outubro de 2013)

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Forte Apache e Zorro

Não preciso de convocação e nem de intimação com dedo em riste. Nada disso. Quando a ordem do dia consiste em rumar para uma loja infantil escolher brinquedo para dar de presente ao afilhado, dispenso ultimatos e já estou no carro, motor ligado, cinto colocado, mãos no volante.
Vamos, vamos, que sou fissurado por loja de brinquedos. Sinto-me como que mergulhando em um país das maravilhas toda vez que entro em algum desses estabelecimentos, distanciando-me da crueza do mundo adulto que parece ser represado do lado de fora daqueles domínios ao custo de nossas infâncias hoje perdidas. Perdidas em termos etários, mas não necessariamente sufocadas devido às responsabilidades inerentes à vida adulta. A criança que fui segue habitando em mim ao longo de minha existência, e ela exulta nesses deliciosos momentos que antecedem datas comemorativas em que o afilhado merece presentes.
Para mim, o presente é justamente poder passear pelas gôndolas me encantando com as infinitas possibilidades de abertura de mundos mágicos e lúdicos geradas pelos inúmeros brinquedos que nelas repousam, cada um fazendo silenciosamente o seu apelo para ser levado junto. Nos meus tempos de criança, lá em Ijuí, essa magia se materializava sempre que meus pais me levavam para lojas como a Ki-Presentes, A Boa Compra ou a Livraria Cultural, para escolher algum brinquedo. Tive uma infância repleta deles, dos quais lembro com especial carinho do Forte Apache; dos bonequinhos dos personagens de Walt Disney e da Turma da Mônica; da fantasia do Zorro com máscara, capa e espada; do revólver de espoleta com o qual caçava índios imaginários (hoje corretamente relegado à condição de brinquedo politicamente incorreto); do Estrelão, campinho de madeira compensada sobre o qual jogava futebol de botão; do teatrinho de fantoches com o qual aprendia a inventar histórias (mania que grudou em mim para sempre e que hoje pratico sob outras roupagens) e tantos outros.
Nada melhor para a construção de uma vida positiva do que uma infância feliz permeada de brinquedos. Sorte minha. Sorte a de meu afilhado. Pena que essa sorte ainda não seja a realidade de todos. Mas sorte é algo que a sociedade consegue mudar sempre que deixa de brincar com coisa séria, e a infância dos cidadãos é uma delas. Ah, o Dia das Crianças está aí!
 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de outubro de 2013)

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

O belo nas chaleiras

O que os norte-americanos não conseguem compreender nos nossos jogos de futebol é a plasticidade estética que resulta da movimentação dos dois times, ao se alternarem nas funções de ataque e defesa. É bonito assistir a uma partida de futebol, especialmente quando bem jogada e de boa qualidade técnica, justamente pelo encanto visual que provoca o movimento rítmico dos jogadores dos dois times pelas dimensões do gramado, movimento esse pautado a partir dos deslocamentos da bola, esse objeto que todos sempre queremos ver balançando as redes da equipe adversária.
Por não compreenderem esse aspecto sutil e quase subjetivo do esporte, é que os norte-americanos, via de regra, bocejam e sofrem de tédio frente às partidas de futebol e não entendem como podemos vibrar e sairmos satisfeitos até mesmo de um confronto que, após 90 longos minutos, resulte em um empate de zero a zero. O americano quer resultado, resultado imediato e, de preferência, resultado abundante. Daí seu fascínio por esportes como o basquete, que em apenas uma partida o seu time do coração é capaz de fazer um escore superior a 100 pontos. “Isso sim, é emoção”, dizem eles.
Para espanto de alguns, eu consigo detectar essa plasticidade bela de movimentos técnicos até mesmo no boxe, esporte, aliás, de minha predileção (na condição de mero espectador, óbvio). Nada de UFC ou MMA, mas sim o velho, bom, técnico e leal boxe, com suas luvas, golpes somente com os punhos e acima da linha da cintura. Futuramente, no divã do analista, assim que decidir que devo procurar um, descobrirei que esse meu fascínio deriva de alguma necessidade de compensação mental das agruras do cotidiano por meio do voyeurismo à violência consentida e regrada desenrolada sobre um ringue. Vá lá, que seja. Enquanto isso, levanta a guarda, cara de calção amarelo!
Ultimamente, por culpa dos canais de tevê a cabo que trazem o mundo todo para dentro da sala da minha casa, dei de ficar viciado em assistir a partidas de curling, aquele bizarro jogo praticado por suecos, noruegueses e outros povos nevados, no qual utilizam chaleiras deslizantes como se jogassem bocha. Adoro! Sei todas as regras e torço que me vergo no sofá por finlandeses ou ucranianos de nomes esquisitos. Plasticidade, meu amigo. Tudo não passa de uma simples questão estética.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de outubro de 2013)