sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Tá, e o Saci?

Chegamos ao final de outubro e faltam agora somente dois meses para 2014 tomar assento no passado, ao lado de tantos outros anos que vão ali se acotovelando à medida em que o tempo, esse corredor incansável, vai comendo milhas. Hoje é Halloween, Dia das Bruxas, data pertencente às tradições norte-americanas que evoca o assassinato de três inocentes jovens em Salem no século 17, acusadas injustamente de bruxaria. Por aqui, nada sabemos dessas motivações históricas, o importante mesmo é imitarmos os americanos e celebrarmos também nosso Halloween brazuca.
Sim, porque daqui a pouco é Natal, data em que também imitamos os norte-americanos e recheamos as calçadas com papais noéis, aquelas figuras balofas enfiadas em trajes térmicos ideais para transitar em meio a pinguins, iglus e ursos polares, com botas, luvas e pompons, o que se justifica no hemisfério norte, onde faz frio e neva em dezembro, mas não aqui, nos trópicos, onde Papai Noel deveria distribuir presentes e doces usando bermuda, chinelo-de-dedo, boné e camiseta regata. Mas adoramos importar e macaquear americanices e dê-lhe Halloween e Papai Noel e hambúrguer de cadeia internacional de fast-food. Até tornados começamos a ter por essas plagas que, até então, em termos de ventanias, só conheciam pacatos tufões e vendavais movidos a vento norte e Minuano.
Mas vamos lá, vamos celebrar o Halloween, afinal, que é que tem importar mais um pouquinho de aculturação da nação dominante? Eu mesmo adoro rock and roll e, apesar de curtir Titãs e Pitty e Nenhum De Nós, sigo preferindo rock cantado em inglês mesmo. Claro que ninguém bate um samba de raiz tipicamente brasileiro e MPB, bom, MPB só em português mesmo, né, Caetano, Gil e Chico?

Mas aí é que está. Temos Caetano, Gil, Chico, Cartola, Noel para fazer frente com nossa competente música nacional ao competente estilo musical estrangeiro. Por que não fazermos o mesmo com outras manifestações culturais de nossa tradição? Afinal, hoje, 31 de outubro, é Halloween, certo. Mas também é o Dia do Saci. Sabiam? Ah, pois é... That´s the question!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 31 de outubro de 2014)

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Água sanitária pro espaço

A necessidade é a mãe da invenção, já dizia Ugh, ao pé de um vulcão, espreitando dinossauros ao criar o arco-e-flecha, artefato que lhe permitiria abater à distância suas presas sem o perigo do contato físico de caçar à unha. Ao longo da  evolução, viemos empilhando milhares de exemplos de que o avanço tecnológico das parafernálias que nos cercam, concebidas para tornar nossa existência mais fácil, se dá não tanto devido a lampejos súbitos de gênios mas, sim, por causa de necessidades que se fazem imperiosas.
Foi assim que ocorreu o desenvolvimento, por exemplo, das comidas desidratadas. Se hoje trazemos do mercado para as prateleiras de casa aqueles pacotinhos de macarrão instantâneo e saquinhos com pozinhos que se transformam em sopa bastando verter água quente sobre eles, é porque, décadas atrás, o homem inventou de querer caminhar pela Lua. Sim, foi durante a aventura espacial das décadas de 1960 e 1970 que os cientistas desenvolveram essas maravilhas gastronômicas em pacotinhos repletos de pozinhos, porque, afinal, não constava nos pré-requisitos dos candidatos a astronautas serem bons de avental e colher (e também ninguém pensou em colocar um renomado chef em órbita junto com eles, na época).
Antes disso, surgiu o leite condensado. Foi durante a Segunda Guerra Mundial que alguém teve a brilhante sacada de criar um leite açucaradíssimo que se mantivesse conservado durante meses na frente de batalha, garantindo aos soldados um acesso fácil a uma fonte vital de calorias. Ainda bem que, junto, inventaram o abridor de latas, claro, porque, caso contrário, as latinhas acabariam mesmo era sendo arremessadas na cabeça dos inimigos na hora do pega.

O que fico aqui pensando, depois que a embalagem de água sanitária adquirida no mercado vaza quase toda no porta-malas do carro, pela enésima vez, é o quanto esse produto já teria evoluído caso fosse vital dentro de uma cabine de foguete espacial ou em uma frente de batalha. Não, definitivamente, soldados e astronautas não usam água sanitária, esse produto que permanecerá fadado sempre ao fim da lista de evolução tecnológica...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de outubro de 2014)

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Ao livro, em seu dia

Agora, sim, as centenas de exemplares de livros que habitam as prateleiras de minha casa estão em festa desde manhã cedinho. Hoje, 29 de outubro, é o Dia Nacional do Livro, a data tendo sido escolhida para homenagear a fundação da Biblioteca Nacional, ocorrida em 1810.
O Brasil passou a contar com uma Biblioteca Nacional por iniciativa do rei D. João VI, que instalara a Corte Portuguesa em solo brasileiro em 1808, fugindo da perseguição de Napoleão Bonaparte, o francês que derrubava monarquias pela Europa. Depois de dois anos por aqui, D. João sentiu saudades de seus livros e mandou vir de Portugal a Real Biblioteca Portuguesa, que chegou de navio em 29 de outubro de 1810 e com cujo acervo fundou-se, então, a Biblioteca Nacional. D. João VI, aliás, que gostava de ler, foi também responsável pela criação no Brasil da Imprensa Régia, logo em sua chegada, em 1808, quando então o Brasil finalmente começou a publicar livros. Nos primeiros três séculos desde o descobrimento, livro só aparecia por aqui se fosse importado, vindo de navio, mareado e salgado.
O primeiro livro publicado no Brasil pela Imprensa Régia foi o longo poema intitulado “Marília de Dirceu”, de autoria do escritor lusitano Tomás Antônio Gonzaga (1744 – 1810). Nele, o autor canta sua paixão pela jovem camponesa brasileira Marília, de quem fora noivo, e, desde então, o livro consta na lista dos mais reeditados de todos os tempos no Brasil. Por sinal, é em homenagem à obra e à sua musa inspiradora que a famosa cidade paulista recebeu o seu nome.

Assim que, dessa forma, temos o dia de hoje como data especial para rendermos homenagens aos livros, aqui no Brasil, esse país enorme que sabe realizar eleições democráticas, que gosta de futebol, que é bonito por natureza, que beleza, mas que ainda tem pela frente todo um universo da leitura e da literatura a desbravar. Que a data de hoje possa ajudar a aproximar um milímetro a mais os livros do cotidiano dos brasileiros, para assim ir diminuindo a goleada que andamos levando em termos de educação frente ao restante do mundo, desde sempre.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de outubro de 2014)

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Mãos à obra

Refletir. Sempre é importante refletir sobre as coisas. Observar, pensar, analisar e, quando possível, concluir. Se não for possível chegar a alguma conclusão no momento, então é preciso refletir mais, escutar mais, estudar mais. A paciência e a prudência são amigas da reflexão que origina conclusões lúcidas, serenas e construtivas.
Pois andei refletindo um pouco depois de encerradas as eleições, no domingo que passou, e cheguei a algumas conclusões que, então, compartilho. A principal delas é de que estou orgulhoso da maturidade cívica atingida pelo povo brasileiro nesse portentoso processo logístico que é concretizar uma eleição em um país tão grande como o nosso. Independentemente dos ânimos acirrados e de um que outro episódio sem maiores consequências aqui e acolá, o saldo final foi uma eleição tranquila, pacífica, ordeira em todos os sentidos. E isso não é pouco.
Os maiores vencedores dessas eleições são o povo brasileiro e o sistema democrático exemplar que vem se consolidando urna a urna após 21 anos de uma ilegítima ditadura militar, que acabou execrada por uma população que almejava exatamente isso que vimos agora: normalidade democrática, respeito constitucional ao resultado das urnas, candidatos derrotados aceitando a derrota e cumprimentando os eleitos. Desde a retomada do processo democrático livre e direto de escolha de nossos governantes, viemos gestando uma estabilidade institucional que se consolida como a verdadeira essência de nossa visão de sociedade. Ditadura, golpismo, casuísmo, são termos que vão sendo varridos para a lata de lixo de nossa história. Amém.

Estamos mostrando ao mundo que somos capazes de construir uma democracia madura, calcada na paridade do peso do voto de todos os cidadãos, que atendem ao dever cívico de maneira consciente, pacífica, cidadã. A cada eleição que realizamos, protagonizamos goleadas de mais do que seis a zero na intolerância, na injustiça, no autoritarismo. Somos bons nisso. E sabemos que, passadas as eleições, repleto que está o país de questões a serem resolvidas, temos, todos e cada um, muito, muitíssimo a fazer. Mãos à obra.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de outubro de 2014)

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Gente diferente

Fiquei sabendo com uma semana de atraso do falecimento de meu médico, o coloproctologista Edson José Baron. Li a notícia neste domingo, dia 26, quando então descobri que ele havia morrido no sábado anterior, dia 18, tendo sido cremado no domingo, 19.
Edson Baron estava com 59 anos de idade e perdeu a batalha contra o câncer. Era casado há 32 anos com Eva Marisa Baron, com quem tinha os filhos Eduardo e Erica. A notícia me deixou entristecido no domingo em que tinha de votar no segundo turno das eleições. Triste pela perda de um profissional competente em quem eu aprendera a confiar plenamente; triste pela perda humana derivada de sua morte e triste pela perda de um interlocutor que, com o passar dos anos e com o aprofundar dos contatos, se transformaria em amigo. Triste também por não ter podido estar presente na ocasião de prestar minha despedida a ele.
Conheci o doutor Baron há pouco mais de um ano, quando, em setembro do ano passado, ele me diagnosticou portador de uma doença crônica dentro de sua área de especialização médica. “Fui inventar de ser cronista e desenvolvi doença crônica”, brincava eu com ele, ao longo das baterias de consultas e exames. Brincava com ele porque ele escutava. Edson Baron pertencia a essa categoria humana de profissionais da saúde que realmente se importam com a individualidade de seus pacientes. Ele, em si, era paciente, pois tinha paciência. Sabia ouvir, sabia se interessar. Olhava seus pacientes nos olhos, conversava com eles, perscrutava seus corações sem ser cardiologista. O coração que ele auscultava era aquele outro, não físico, que faz de cada um de nós um ser especial.

Baron sabia disso e tinha paixão pela profissão e encantamento por gente. Tenho convicção disso a partir do pouco contato que tive com ele, sempre em função de minha doença. Era um médico que se destacava entre seus pares e um cidadão que se destacava entre a humanidade em geral. Descubro agora que também estava doente e que partiu prematuramente. A vida é assim, cheia de surpresas. A melhor delas é quando conhecemos gente que faz a diferença.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de outubro de 2014)

sábado, 25 de outubro de 2014

Vida nova

Ontem desisti de uma leitura. Pela primeira vez em minha longa vida de leitor (quatro décadas lendo), abandonei o projeto de ler determinado livro após ter dado início ao fruir de suas páginas. Tomei a decisão de fechar o volume e devolvê-lo à prateleira ao chegar, penosamente, à página 50 e detectar ter pela frente ainda outras 400 a serem enfrentadas no mesmo ritmo, no mesmo tom, com as mesmas dificuldades, com o mesmo sofrimento e desprazer.
“Vamos parar por aqui”, disse eu ao livro, e paramos. Recoloquei-o na estante do corredor e retornei à sala me sentindo leve, levíssimo. Sentei-me na poltrona em que costumo me sentar à noite quando me ponho a ler livros e fiquei tentando identificar que espécie de sensação se apossava de mim após ter tomado essa decisão histórica em relação a meus hábitos de leitura, eu, que jamais abandonara a leitura de um livro. “Livro começado é livro terminado”, sempre fora meu lema, até ontem.
Temi ser invadido por uma profunda e inevitável sensação de frustração e de derrota. Mas não foi o que aconteceu. Senti-me liberto não apenas da obrigatoriedade autoimposta frente a uma leitura penosa, mas também em relação à necessidade de manter atitudes pessoais que julgava serem determinantes da persona que eu havia criado em mim. Descobri que eu não preciso mais provar para mim mesmo que sou um leitor, característica pessoal de que tanto me ufano. Ao menos, não preciso mais provar dessa forma, me obrigando a dar sequência a uma leitura que não me agrada. Dessa forma, rompi grilhões, quebrei correntes, entreabri uma porta que sempre estivera trancada, deixei entrar uma luz nova e promissora em meu caminho.

Em outras palavras, com esse simples gesto de fechar o livro e abandonar sua leitura, desatei um paradigma pessoal e permiti em mim uma renovação de postura. Não houve desamparo, mas, sim, paz e segurança para seguir em frente com uma postura nova e libertadora. Tudo isso a partir de um pequeno e prosaico gesto efetuado sem testemunhas, no interior de meu aquário. A renovação interna às vezes se revela a partir de pequeníssimas grandes coisas.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de outubro de 2014)

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Borges e a lasanha

Jorge Luis Borges, o escritor argentino (1899 – 1986), afirmou certa vez que, em sua velhice, ele se dava ao luxo de não se esforçar mais em estabelecer novas amizades porque não tinha mais ânimo para, com elas, ter de encontrar os elos de identificação que lhes seriam comuns. Traduzindo do borgeanês para o português, significa que ele se via sem paciência para entrar em debates a respeito de temas que, para ele, já estavam solucionados.
 Dizia Borges, por exemplo, que não se interessava em debater religião com quem não acreditasse em Deus, uma vez que, para ele, a existência de Deus estava estabelecida. Voltar a debater isso, para ele, era perda de tempo e de energia. Preferia então o argentino seguir cultivando, na maturidade, as amizades já longamente amadurecidas, com aquelas pessoas com as quais já havia fincado os pilares de conceitos para ele fundamentais. Cansava-lhe ter de repetir argumentos, redefinir o já definido em suas idiossincrasias.
Com essa postura tipicamente borgeana, Borges abria mão, deliberadamente, de ter contato com o estímulo do novo. Fazia a opção por apegar-se ao tradicional, ao arraigado em si mesmo, e se fazia passar por irredutível, carrancudo, inacessível. Coisas que, sabemos, ele não era. Quem era assim era o Borges personagem de Borges, que servia à construção da obra literária que ele criava usando a si próprio como ator principal.
Mas não consigo deixar de pensar nele quando vou à pizzaria e, dentre o quase infinito cardápio de sabores, acabo sempre escolhendo a portuguesa. E vou além. Quando se trata de lasanha, para mim, que venha, sempre, a tradicionalíssima de presunto e queijo. Nada de quatro queijos, brócolis, o escambau. Opto pelo de sempre, que me proporciona satisfação garantida. O mesmo se dá na hora do espaguete. Quero à bolonhesa. Todas as vezes. Ah, tem filé? Tá, traz à parmegiana. Sim, de novo.

Sou velho e tradicional, igual ao Borges (não tão velho, ok). O tempo é curto e não tenho mais ânimo para grandes experimentalismos. Afinal, sei lá eu se amanhã terei oportunidade de pedir espaguete de novo. Então, que seja à bolonhesa.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de outubro de 2014)

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Um poema, um vinho, um som

O que faz de um poema um bom poema? Quais elementos precisam estar presentes nos versos para que ele seja classificado como poema “bom”? E quais as ausências que o condenam à queda para a categoria de “mau” poema, ou de “poemeto de terceira”? Se o poema se pretende “lírico” ou “romântico”, exigiremos nele interjeições como “oh”, “ah”, e palavras como “lua”, “amada”, “alvura”? E se concretista, vamos querer que seja cinzento e comporte construções cacofônicas e substantivos concretos como “tijolo” e “cimento”?
É simples assim ou o furo será mais embaixo? Façamos alguns paralelos, porque, às vezes, é mais fácil compreender as coisas lançando luzes a situações similares. Tentemos. Música, por exemplo. Como diferenciar música “boa” de música “ruim”? Ora, não podemos incorrer na ingenuidade de defender estilos, uma vez que gênero musical é questão de gosto pessoal. Mozart, se inquirido sobre isso, diria que, para ele, música boa é a dos Beatles, assim como Lennon e McCartney jamais se esquivariam de afirmar a qualidade da música de Beethoven e de Chopin.
Você poderia dizer que música boa, cara, é a do Coldplay e pronto. Mas, mesmo assim, você admite que, dentro da listagem das músicas deles, existem aquelas que você adora, acha geniais, mas há também as medianas e, até, duas ou três bem ruinzinhas. Definições que outro fã do Coldplay refutaria, classificando como “ótimas” até mesmo as que você julga “ruinzinhas”. E aí, como é que fica?
Se quiséssemos ser mais elegantes, abordaríamos essa sinuca filosófica irrespondível evocando um tema mais complexo. Organolepticamente complexo, para sermos mais exatos (e mais complexos). O vinho. O que é vinho bom? O que é vinho ruim? Meus amigos lá de Uvanova, apoiados por meu avô, defendem que vinho bom é o de garrafão, colonial, “feito de uva e sem química”. Já eu, aqui, gosto de desarrolhar uma garrafa com 600 mililitros de química malbec argentina, ou de química carmenére chilena.

Daí, pergunto: cadê a boa poesia? Cadê a boa música e o bom vinho? Bem, uma vez que não há decretos, ouçamos, degustemos e leiamos o que nos faz felizes.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de outubro de 2014)

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Malbec de paraquedas na praça

Olha só: hoje, 22 de outubro, é dia do paraquedista, dia do enólogo e dia da praça. Hein? Como eu sei disso? Se sou paraquedista? Não, senhora, tenho medo de altura, sofro de vertigem crônica. Evito até mesmo olhar para a ponta dos meus pés quando estou caminhando, a fim de não tontear na esquina. Se sou enólogo? Tampouco, madame. Aprecio meus vinhotes lá de vez em quando, acompanhando a leitura de um bom livro no sofá da sala, mas mal diferencio branco de tinto. Como? Não, não, muito menos isso: ainda não tenho praça com meu nome, pois eis que, pelo que me consta, sigo ainda vivo e não sou merecedor de tal deferência.
Como, então, sei dessas datas comemorativas? Ah pois, a internet, senhora, a tal da internet. A gente dá uma espiadinha lá no site certo e fica sabendo dessas coisas, muito úteis para despertar inspirações. Claro que, se eu fosse um enólogo paraquedista, aproveitaria o dia de hoje para saltar sobre a praça Dante degustando um cálice de malbec ao longo da descida, sem derramar sequer uma gota sobre as cabeças dos extasiados transeuntes lá embaixo. Mas não sou nem uma coisa nem outra e tenho mais o que fazer do que ficar sentado o dia inteiro hoje lá na praça na expectativa de que algum paraquedista venha a saltar bebericando vinho ou algum enólogo destemido ouse fazer uma degustação descendo de paraquedas. Acho difícil isso vir a acontecer.
Melhor, então, aproveitar o mote para fazer o que julgo saber desempenhar relativamente bem: escrever uma crônica. Não uma crônica sobre saltos de paraquedas e nem sobre a arte de degustar vinhos, mas, sim, sobre praças, que, entre os três elementos, me parece ser o de maior potencial romântico para se transformar em literatura. Falemos então sobre praças aqui, hoje, nesse dia em que elas deveriam ser lembradas.

Pena que o espaço está acabando e não vai mais dar para desenvolver grandes reflexões a respeito desses agradáveis logradouros públicos que servem de cenário para o desenrolar da vida. Mas fica, ao menos, a sugestão: hoje, dê uma passadinha em uma praça, note a presença dela, saboreie-a. Garanto que fará um enorme bem a si mesmo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de outubro de 2014)

terça-feira, 21 de outubro de 2014

A cada qual, sua maçã

Havia uma macieira no pomar existente nas terras de meu avô, em São Borja. Ela ficava em cima de um pequeno morrinho e proporcionava uma sombra muito convidativa para, recostado em seu tronco, aproveitar as horas pós-almoço, enquanto os adultos faziam a sesta digestiva, ficar ali sentado à sua sombra, sozinho e lendo livros do Monteiro Lobato.
Certo dia passou, vindo do nada, um desses fugazes e etéreos redemoinhos de vento, levantando do solo folhas secas e assustando as galinhas. O ventinho veio chacoalhando árvores e passou pelo meio da minha macieira, fazendo se despender dos galhos um de seus frutos que, antes de vir dar em terra, deu foi certeiro bem no meio da minha cabeça. Eu, que não me chamava (e sigo não me chamando) Isaac Newton, apenas exclamei “ui”, larguei o livro e cocei a cabeça enquanto observava a maçã rolar morrinho abaixo, indo parar aos pés de uma galinha, que se pôs a bicar o presente que lhe caíra dos céus.
Perdi a chance de, com o ocorrido, desvendar os segredos da lei da gravidade, o que era desnecessário que eu fizesse, pois Newton já o fizera séculos antes e, convenhamos, eu na época não era (e sigo não sendo) nenhum gênio. Maçã, para mim, era (e continua sendo) apenas maçã, feita para saborear, e não um fruto portador da semente da descoberta de uma lei da ciência. O máximo de abstração que já consegui (e sigo conseguindo) obter a partir da observação de uma maçã antes de devorá-la é imaginar o fruto, na época em que ainda era proibido, lá no Jardim do Éden, nas mãos de Eva a ofertá-la a um (ainda) inocente Adão, antes de acontecer tudo aquilo que sabemos que aconteceu e que acabou por nos condenar a esse mar de lágrimas aqui hoje.  E isso que, dizem alguns entendidos, nem era uma maçã o tal do fruto, mas na verdade ninguém pode afirmar nada, não houve testemunhas além da serpente e, essa, sabemos, não tem língua confiável.

Lembro disso nesse 21 de outubro, Dia da Maçã. Quem diria, um dia para celebrar a maçã. Minha avó, já falecida, não me fará seu delicioso e saudoso apfelstrudel. A mim, só me resta mesmo é tentar fazer uma crônica.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de outubro de 2014)

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Para os poetas em seu dia

Quisera ter tido a capacidade de tecer a crônica de hoje em versos, para homenagear o Dia do Poeta. Mas, sem talento, meus esforços são dispersos, não posso fazê-lo, minha arte não é completa. Mesmo sem ter dom para exercitar a arte suprema da poesia competente, quero ao menos aqui poder ressaltar meu apreço por essa arte maior, à qual me vergo, humildemente.
Um dia para erguer ao bom poeta as loas e os brindes é algo a ser bem sublinhado. Em especial por quem, como eu, reserva melindres em palmilhar um terreno tão bem representado. É dia para recordar com terna doçura de versos brilhantes por gênios escritos. E também para evocar uma ou outra figura de hoje e de antes que fez ditos bem ditos. Do outro lado dos mares e também em nossas terras vão surgindo nomes aos pares de versejadores cujas obras derrotam as eras. Façamos jus então a essa data boa evocando alguns deles à luz, em uma ou outra loa.
Lembremos então de Drummond, Quintana e Pessoa; nenhum deles de alma pequena, nenhum deles a versejar à toa. Vinícius também evocaremos, e ainda Neruda e Quintana. Nomes que sempre lembraremos, por tornarem nossa vida bacana. Sem esquecer dos mestres desses mestres todos, evocaremos Keats, Shelley, Byron e mesmo o Poe. Com suas penas não faziam engodos, diziam o que eram para que eu saiba quem sou. E agora, em fileira dispersa, se mostram a Safo, a Hilda, a Ana Cristina. Poetisas que tantos gostam por tecerem a poesia mais fina.
Tantos mais haveria a evocar aqui nessas linhas de uma crônica à toa. Porém, para terminar, falemos dos que entre nós fazem poesia da boa. É daí vão saltando nomes de tantos amigos, entre vivos e já partidos. Dal´Alba, o Eduardo; Bertholdo, o Oscar. E agora, tão recente, também Petry, o Odegar.

E junto a todos esses, temos aqui o Pozenato, o Paviani, o Angonese, o Dhynarte, o de Menezes. Autores que em um ou outro ato já nos brindam com Poesia sem aparte, e da mais alta, todas as vezes. Parabéns, poetas, senhores da Poesia. Celebrem com suas musas e com merecida alegria. Eu, se fosse poeta, também sem escusas o faria.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de outubro de 2014)

domingo, 19 de outubro de 2014

Está na hora

Não sei você, mas eu sou da turma dos que gostam. Fico contando os dias, ansioso, na expectativa pela chegada do momento de reajustar os ponteiros dos relógios para me sintonizar com mais um período de horário de verão, como o que começa neste final de semana. Você sabe, né: no cruzamento do sábado para o domingo, agora, teremos de adiantar os relógios em uma hora. Ou seja, pularemos da meia-noite de sábado direto para a uma da madruga de domingo. Ô beleza!
Organizado como imagino que sou, já fiz uma lista dos relógios que me cercam, a fim de não esquecer de adiantar nenhum deles e depois me dar mal. Vamos ver: dois notebooks e um netbook. Mais o Ipad e dois telefones celulares (o meu e o da esposa, que sou eu quem terei de ajustar). Só aí já são seis. Boa parte deles, eletrônicos e smart-espertos que são, farão o ajuste por conta própria, me poupando serviço, mas nunca se sabe, melhor mantê-los na lista para, pelo menos, checar. Bom, adiante. Tem o relógio da cozinha, mais o pequeninho digital recebido de brinde não sei de quem, ali na estante da sala (esse dá um baile, porque tem de apertar o botãozinho de reset sincronizado com o mode e sempre acabo esculhambando tudo; quando vejo, fui parar na hora certa mas no futuro distante, ou vice-versa).
Que mais? Ah, o rádio-relógio da cabeceira da cama. Importante, esse daí. E o do carro, não esquecer do relógio do carro, para poder xingar os demais motoristas com propriedade, porque seria ridículo estar com pressa quando na verdade estou adiantado. Ah, sim, e os dois relógios de pulso. O meu e o da já citada esposa. Não, três, então, porque ela tem dois. Quer dizer, ela tem três. Então, quatro relógios de pulso a serem acertados. Somando tudo, noves fora, vezes dois, sobe um, resta quatro... Vejamos... Isso dá um total de 13 relógios a serem colocados em sintonia com o horário de verão, que vem aí no final de semana, a partir da meia-noite de sábado para domingo.

É muito trabalho. Acho melhor dar início ao processo duas horas antes, para conseguir dar conta. Aqui em casa, o horário de verão chega antes, pessoal. Isso, sim, que eu chamo de entusiasmo!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de outubro de 2014)

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Cores volantes

A minha memória jura de pés juntos e uma antiga fotografia não a deixa mentir: sim, de fato, meu avô possuía um garboso e elegante Galaxie verde. Mas não um verde qualquer: um verde-pérola, um verde diferente, único. O verde daquele Galaxie dele era o verde do Galaxie de meu avô, nenhum verde outro se comparava àquele. Assim também se dava com o azulaço que revestia o Maverick de meu pai. Que azul, aquele!
Depois veio o Opala, que apresentava uma cor assim meio amarelada, mas um amarelo fraquinho, aguado, quase creme, tipo essa cor que adquire o chantilly do cappuccino quando a gente mergulha a colher e mistura tudo, gerando na xícara uma sopa de chantilly e café. Isso, bem isso, esse amarelo aí que surgiu na sua mente. Era assim o amarelo do Opala. Uma família de amigos possuía um fusca alaranjado, um laranja-abóbora. Tão abóbora que um cavalo cravou-lhe certa vez os dentes, faminto que estava e iludido pela maravilha daquela abóbora redonda e gigante estacionada ali, do ladinho do potreiro dele. Nhac e pléim! Foi-se o capô do fusca junto com a dentadura do cavalo. Verdade! Minha memória afirma. Não, dessa vez, sem fotos; terão de acreditar em mim.
Bons tempos aqueles, em que o arco-íris gostava de passear pelas ruas das cidades e pelas estradas do interior derramando sua paleta de cores sobre os automóveis, trazendo alegria visual ao trânsito. Diferente dessa pobreza cromática que desfila hoje pelas avenidas, cruzamentos e esburacadas rodovias. Carro vai, carro vem, e o que vemos? Branco, preto, cinza, vermelho. Vermelho, branco, preto, preto, cinza, cinza, cinza, branco, preto. E só. Ali, de vez em quando, um verdinho desgarrado. E depois, branco, preto, vermelho, cinza. Isso sem falar que branco e preto, convenhamos, chamamos de cores por delicadeza, né! Que pobreza!

Por que será que o arco-íris fugiu das estradas? Será que as cores voltam no dia em que o trânsito amansar? Só pode ser isso: a violência do trânsito deve ter amarelado as cores. Ou, quem sabe, os carros brancos são os coloridos que branquearam de susto com a imprudência dos motoristas. Só pode, só pode...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de outubro de 2014)

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Leitura adolescente

A matéria de capa do caderno “Comportamento” , do Pioneiro de segunda-feira, trazia um dado interessante relativo ao movimento registrado nas barraquinhas da Feira do Livro, cuja 30ª edição segue na Praça Dante Alighieri até domingo, dia 18. A equipe do caderno circulou entre os livreiros inquirindo a respeito dos títulos mais procurados pelos leitores até o momento, e o resultado proporciona, no mínimo, algumas reflexões curiosas.
Dos três livros mais vendidos na maioria dos estandes, eu não conhecia nenhum. Os títulos das obras não me diziam nada e seus autores não me evocavam referências. Isso, em si, não quer dizer nada. Do alto de minha soberba, poderia eu pensar que tratam-se de obras insignificantes, já que eu, leitor calejado, não as conhecia. Mas descendo do pedestal, poderia ser que eu não as conhecesse por simplesmente ser impossível hoje em dia saber de tudo e conhecer tudo. Dito e feito, era isso.
Que fiz? Fui para a internet. E foi assim que descobri que os livros “Se Eu Ficar” (de Gayle Forman), “A Culpa é das Estrelas” (de John Green) e “O Sangue do Olimpo” (de Rick Riordan) são os grandes hits literários que fazem sucesso hoje entre o público adolescente. Ou seja, os três livros mais vendidos da Feira estão sendo adquiridos pelos adolescentes, quebrando o mito de que criança lê, adulto lê, mas adolescente não lê. Adolescente lê, sim senhores. Lê, vai à Feira e compra livro. Que boa notícia que nos trouxe segunda passada o Pioneiro, em sua matéria de capa do caderno de cultura e variedades!

Não se trata aqui de fazer juízo de valor a respeito da qualidade literária existente ou não (não sei, não li, podem ser obras excelentes) nessas obras. O que é significativo é que a gurizada, por meio delas, está enraizando dentro deles mesmos o hábito da leitura, que significa domesticar o próprio ser para dar a si mesmo esses momentos de introspecção, de silêncio, de ensimesmamento que o ato da leitura requer. E é só assim que se forma o cidadão que reflete, que absorve arte e cultura e a traduz na forma de cidadania. Que boa notícia!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de outubro de 2014)

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Feijão filosófico

Até uns dias atrás, eu tinha a convicção de que o melhor momento para refletir sobre a vida, sobre o mundo, sobre as questões filosóficas primordiais da existência humana, era a hora do banho. Isso porque é comum eu me colocar a filosofar em silêncio enquanto a água do chuveiro vai lavando de meu corpo as impurezas do dia, como numa espécie de convite metafórico para que eu faça o mesmo com a impurezas psíquicas que poluem a parte intangível de meu ser.
Há tempos eu já havia desbancado o travesseiro na hora de dormir como o melhor interlocutor para essas elucubrações internas pessoais profundas e altamente transformadoras, em especial porque, nos últimos anos, com o avanço da idade, minha relação com a cama tem se dado no esquema pá-pum: deito e durmo. Não reflito nada. Não penso em nada. Sequer fico me revirando de um lado para o outro. Se me conduzo para a cama, é porque o sono já se apoderou de mim todo, tanto da parte corpórea quanto da etérea, e às vezes desconfio até de que já estou ferrado em sono profundo alguns passos antes de chegar na cama, o que é uma temeridade.
Só que, agora, descobri o poder de indução à reflexão existente no ato de escolher feijão. Muitíssimo melhor do que a hora do banho ou a do sono. O segredo para conseguir obter reflexões mais profundas e complexas reside em alguns fatores importantes, passando pela quantidade de feijão a ser escolhida (punhados maiores do grão espalhadas sobre a mesa proporcionam reflexões mais prolixas) e pela espécie de feijão a ser manipulada (o feijão azuki, menorzinho e mais entremeado de impurezas, permite permanecer por períodos mais longos refletindo, o que, por si só, deveria originar pensamentos melhor elaborados, no entanto, sempre é arriscado fornecer garantias nesse terreno movediço das reflexões íntimas).

Semana passada, escolhendo feijão azuki, obtive três reflexões seguidas (um recorde pessoal), sendo uma delas bastante profunda. Fiquei muito satisfeito comigo mesmo. É a prova de que feijão faz bem para o cérebro. Essa, aliás, foi uma das minhas brilhantes reflexões. Às vezes, me surpreendo comigo mesmo...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de outubro de 2014)

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Piada proibida

Nesta data de 14 de outubro, porém 108 anos atrás (em 1906, portanto, para facilitar a vida do leitor, que não precisa ver-se obrigado a de repente ter de fazer cálculos justamente quando abre o jornal para relaxar um pouquinho lendo uma croniqueta que se propõe leve e despretensiosa, por favor). Botei um ponto ali depois do fechamento do parênteses, para que possamos ambos (leitor e eu) recuperar o fôlego e o fio da meada após uma intercalação tão longa, deixando deliberadamente a frase inicial desprovida de qualquer sentido em termos gramaticais, humanos e literários. Teremos de recomeçar.
No ano de 1906, em 14 de outubro, ou seja, exatamente 108 anos atrás (agora, sim), acontecia em Portugal a primeira prova de natação que teve lugar na Baía do Alfeite. A competição entrou para a história dos esportes aquáticos daquele país, sendo conhecida como “As 500 Milhas do Alfeite”, e foi vencida naquela sua primeira edição por um inglês chamado Rumsey, morador da cidade do Porto.
Nada mais natural que uma prova medida em milhas ser vencida em sua primeira edição por um inglês, penso eu aqui, distanciado mais de um século do certame. Pena, no entanto, que não tenha sido vencida em quilômetros por um português, que pudesse orgulhar seus patrícios com o feito. Meu avô costumava se referir a essa famosa competição contando uma piada, que envolvia dois dos nadadores, ambos portugueses. Eles lideravam a prova, cumpridas 400 milhas e, faltando somente 100 para a chegada, Manuel, uma braçada à frente, teria dito a Manoel, que nadava logo atrás: “Ó, pá, estou a cansaire demais”. Ao que o Manoel teria respondido a Manuel: “Pois também eu estou a cansaire. Acho melhor voltarmos”. Concordaram e deram meia-volta rumo ao ponto de partida, distante 400 milhas, deixando a vitória ao tal inglês Rumsey, que nadou tranquilo as 100 que restavam até a chegada.

Pena que não possa contar a piada aqui, nesses tempos de policiamento politicamente correto. Eu seria massacrado pela comunidade portuguesa. Abstenho-me, pois, e, tal qual os nadadores que ficaram sem prêmio, fico eu sem crônica.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de outubro de 2014)

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Reserva para Rosemar

Tudo bem, tudo bem, errar é romano, já diziam a meia boca os povos subjugados pelo poder do conquistador Júlio César. Ou ainda, “herrar é umano”, na brincadeirinha gráfica que se tornou meme impresso antes mesmo do advento da internet. Erros são erros, convivemos com eles e o desafio que nos cabe é sabermos aprender com os deslizes que cometemos e, especialmente, exercitarmos a tolerância com os equívocos praticados pelos nossos semelhantes.
Só que existem algumas mancadas que conseguem nos tirar do sério ou, no mínimo, nos deixar boquiabertos durante alguns segundos de pasmo. Assim se sucedeu noite dessas, por exemplo, quando telefonei a um restaurante a fim de fazer a reserva de uma mesa para o jantar, dali a alguns dias. “Alô, por favor, eu gostaria de fazer a reserva de uma mesa para sábado à noite”, disse eu, do lado de cá do aparelho. “O que foi que o senhor disse?”, perguntou a moça, do lado de lá da linha, já de cara entendendo lhufas do que eu tentava comunicar.
Repeti a frase, com as mesmas palavras e, dessa vez, fui rapidamente compreendido. “Sim, pois não, certamente que podemos lhe reservar uma mesa para o sábado à noite. Como é o seu nome?”, prosseguiu ela, com gentileza. “Marcos”, respondi eu, com firmeza e certeza. “Rosemar??”, tascou ela, para minha grande surpresa. “Rosemar??”, pensei eu, na exata fração de segundo em que ela pronunciou aquele nome que não era, nem de longe, nem de rima, o meu. “Mas como pode alguém confundir Marcos com Rosemar?”, fiquei a refletir, na fração seguinte ainda do mesmo interminável segundo de perplexidade.

Sim, porque seria perfeitamente compreensível que a dita moça confundisse, por exemplo, “Juliana” com “Sebastiana”, ou “Adriano” com “Fabiano”, ou “Rosemar” com “Valdemar”, ou até “Saionara” com “Sinara”, ou ainda “Rosana” com “Silvana”, ou quem sabe até “Milton” com “Nilton”. Mas tomar meu “Marcos” por “Rosemar” foi mar, quer dizer, foi mal. Resultado? Cancelei a reserva. Vai que eu chegasse lá com meus convidados e não houvesse mesa alguma reservada em meu nome. E não conheço nenhum Rosemar para levar comigo, por via das dúvidas...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de outubro de 2014)

domingo, 12 de outubro de 2014

Correrias de outrora

Eu, aos cinco anos de idade, já vendo o mundo por meio de outros prismas

Naqueles dias, todo o dia era dia da criança. Gostávamos de brincar de esconde-esconde, que em Ijuí, naqueles idos, conhecíamos como “siscondê”, uma corruptela de “se esconder”. “Vamos brincar de siscondê”, dizíamos os mais velhos, e sempre dávamos um jeito de, na contagem, forçar para que um dos menores já saísse “fechando”, ou seja, cabia a ele debruçar-se sobre o tronco da timbaúva cravada no centro do quintal de casa, fechar os olhos e contar pausadamente em voz alta até 50, que era o tempo que tínhamos para sair em disparada a nos camuflarmos pelo pátio, a fim de sermos procurados pelo garoto que “fechava”.
Eita correria que, via de regra, rendia alguns joelhos esfolados a serem tratados com Mertiolate ao final do dia. Correria que só se equiparava a quando mudávamos a brincadeira para “lets”. “Vamos brincar de lets”, sentenciávamos, e lá ia um dos menores, encarregado de ter o “lets”, a correr atrás dos outros. Quando encostava a mão em alguém, gritava “lets”, e transferia automaticamente a ele a incumbência de correr atrás dos outros, portando o “lets”. Que diabos significava “lets”? Perdi de descobrir nos tempos da infância, agora passou, morrerei com a dúvida.
Com cinco anos de idade eu já tinha um par de óculos enfiados na cara, mas isso não me impedia de correr muito na hora do “lets” e do “siscondê”. No jardim de infância, brincávamos de lobos (os meninos) e ovelhas (as meninas). Os lobos deviam capturar as ovelhas, que iam sendo “presas” na cancha de areia. Certa vez eu, lobo, trombei feio com uma ovelha, cuja cabeça era mais dura do que a minha. Um galo na testa amansou o lobo que havia em mim.

Aos dois anos de idade, meus pais pediram para eu reunir todos os meus brinquedos na porta da frente de casa, para uma foto. Observo eu ali e me vejo cercado pelo caminhão de madeira, a girafa de plástico, o patinho também de plástico que eu alimentava com comida de verdade por um furo que lhe fiz no bico, uma cadeirinha azul em que eu sentava para comer mingau. E tudo isso olhando apenas duas fotos do álbum. Como a gente esquece quanta criança já coube dentro de nós um dia...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de outubro de 2014)

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Saudades de ruas

Sou um cidadão urbano, nascido na cidade e na cidade sempre vivido. Sendo essa a minha condição, compreendo as motivações que embasam as iniciativas de vereadores quando apresentam projetos de lei que batizam ruas, avenidas, praças e demais logradouros públicos com os nomes de pessoas ou de datas significativas. No caso das gentes, trata-se de justa homenagem àquelas pessoas que, por razões as mais diversas, revestiram suas biografias de valor a tal ponto que merecem ser lembradas pelos cidadãos do presente e do futuro. No caso das datas, para que a memória referente aos fatos históricos não ceda às tentações do esquecimento.
Vá lá, vá lá, compreendo isso tudo. As cidades vão envelhecendo, vão acumulando história, deixam de ser crianças, amadurecem e precisam ir prestando homenagens aos seus próceres, aos próceres do Estado, do país, do mundo. Entendo, mas também lamento. Acho uma pena que, assim, o romantismo vá desaparecendo do meio-fio das ruas de nossas cidades, dos balanços das pracinhas, dos canteiros das avenidas, dos chafarizes, dos escorregadores das crianças, dos banquinhos dos aposentados.
Gostava mais de vivenciar minha vida urbana em cidades cujas ruas fossem nominadas como antigamente, a partir de características próprias e peculiares de seus entornos. Há mais valor poético, humano e vital ao caminhar por lugares chamados Rua do Arvoredo, da Praia, das Camélias, da Ladeira. Em Caxias havia a Rua Grande. Em Ijuí ainda existe a Rua do Comércio. Gostaria de passear algum dia por alguma Rua do Perfume das Amoreiras, ou por uma Avenida do Passaredo Matinal, ou pela Viela da Figueira Velha. Uma Travessa do Cachorro Bravo, por exemplo, que mantivesse o nome mesmo depois de morto o cachorro e de ninguém mais na vizinhança se lembrar dos donos.

Em Caxias, as crianças de outrora brincavam no Parque dos Macaquinhos e, apesar de oficialmente não se chamar mais assim, ao menos insistimos em manter viva no cotidiano da cidade a denominação. Até eu sinto saudades daqueles macaquinhos do parque, que nunca conheci. Também, o que esperar de alguém que foi aprendendo a ser gente em uma Rua dos Viajantes?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de outubro de 2014) 

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

O Batman na missa

Fiquei sabendo que, lá pelo início dos anos 1980, o Batman costumava frequentar a missa das 10 da manhã na Catedral Diocesana aqui em Caxias, com a devida anuência do padre e também da mãe do destemido vigilante mascarado. Como tudo na vida funciona à base da negociação, a dita mãe (leitora minha, que me contou o fato) só conseguia arrastar o filhote à missa se permitisse que fosse fantasiado de Batman.
Pelo que posso depreender, creio que a negociação se dava nos seguintes termos: nada de máscara e indumentária completa, apenas a capa. Afinal, um Batman de oito anos de idade trajando uniforme completo poderia causar mal estar no padre e nos coroinhas e apenas uma singela capa talvez não fosse assim tão dissonante do contexto todo. E vai que a moda pegasse e na semana seguinte os bancos da missa das dez da manhã na Catedral passassem a ser ocupados por pequenos Super-Homenzinhos, Hominhos-Aranha, Mulherezinhas-Maravilha, Homenzinhos-de-Ferro, Hulkinhos, a Liga da Justiça e os Vingadores completos? Ficaria estranho. E se um deles inventasse de ir de Pinguim ou de Coringa, haveria lutinha nos fundos da sacristia? Não iria dar certo.
O fato é que, apesar da capa (ou justamente devido à capa), o garoto foi à missa com a mãe e hoje, passadas três décadas, enche-a de orgulho sendo um profissional de destaque em sua área, morando, inclusive, no estrangeiro. Viva a capa, viva a missa, viva a complacência do padre e, especialmente, a sensibilidade e o tino da mãe. Afinal, não poderia ser uma mera capa de morcego a impedir a aproximação de Batman dos bancos da igreja.

Eu, nos meus tempos em Ijuí, me vestia de Zorro. A máscara era tosca, dura, feita de plástico. Havia a capa preta e, especialmente, a espadinha de borracha, com a qual eu me botava a cutucar todo o adulto que a meus olhos se assemelhasse ao Sargento Garcia. Levei alguns petelecos por isso e horrorizei a família ao esculpir um “Z” no batente da porta da cozinha, deixando uma marca eterna de minhas artes na casa da Rua dos Viajantes. Mesmo que por linhas tortuosas, começava a gostar de causar sensação com as letras...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de outubro de 2014)

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

É pura bucha

O que você faz quando sua esposa chega perto com aquele jeitinho que ela costuma empregar quando deseja alguma coisa de você, e que você bem sabe que, por mais que a princípio rosne e esperneie, acabará fazendo exatamente aquilo que ela queria, do jeito como ela imaginava, no momento em que ela determinou?  O que você faz? Ora, você faz o que ela quer, óbvio, sabemos disso muito bem vocês e eu, maridos, namoridos, namorados, noivos, homens, enfim.
Se ela, por exemplo, inventa de querer pendurar um quadro na parede, como ontem, então, não tem jeito. Por mais que você esteja ali, acoplado ao sofá da sala, os carpins pretos enluvando aconchegadamente os pés que repousam sobre o pufe, os olhos passeando pelos títulos do jornal do dia, a respiração sincronizando ao ritmo do acalanto do universo e quase entrando em nível alfa, não terá jeito: em questão de minutos, você irremediavelmente estará lá perto dela, as fuças roçando a parede lisinha e imaculada que ela teima em querer que você fure, suas mãos portando a furadeira que tão tranquilamente dormitava há meses dentro da caixa de ferramentas debaixo da cama, o cérebro tentando adivinhar onde diabos você meteu a broca número seis, que é a que casa com o parafuso, mas que solução encontrar se todas as buchas que lhe restam são as de número oito? O que você faz?
Ora, você faz o que ela quer. Você dá um jeito. Não interessa se é cedo demais, se é tarde demais, se você preferiria deixar essa função toda para o final de semana. Não. Ela quer um furo ali, e não um furo qualquer, isso você também sabe muito bem. Precisa ser um furo daqueles que ela diz que só você saber fazer, porque isso é uma das armas milenares e secretas das mulheres para obterem de você o que elas desejam: elogiar em você habilidades inimagináveis que só elas veem, para convencê-lo a quê? A fazer o que elas querem que você faça!

E o que você faz? Bom, você faz. Você apenas faz. Está lá, então, o furo na parede, só que ninguém o vê. Ela tacou-lhe um quadro em cima dele. O quadro, claro, não fui eu quem pintou. Mas aquele furinho ali atrás, gente... Ah, aquilo é obra minha, né, amor?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de outubro de 2014)

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Convite mágico

Entreouvidos em um salão de beleza, onde quem presenciou a cena pintava as unhas (não, não era eu, ainda não aderi à onda capitaneada pelo escritor Fabrício Carpinejar, de homens de unhas pintadas, por pura preguiça ou, talvez, por falta de coragem). Mas eu dizia...? Ah, sim, sobre uma cena ocorrida nos domínios infinitos de um salão de beleza, enquanto minha fonte secreta deixava que lhe pintassem as unhas de que mesmo...? Vermelho amor-perfeito? Vermelho Gabriela? Vermelho deixa beijar? Bom, algum vermelho desses de nome criativo, mas era vermelho, né, amor? Adiante.
A minha fonte essa lá, mãozinha estendida, o esmalte lhe sendo pincelado delicada e concentradamente pela manicure (que quando lhe faz os pés se transforma em pedicure e suponho que, ao cortar-lhe os cabelos, vire cabelocure) e o filhote dela, da manipedicabelocure, de oito anos, circulando pelo salão, interagindo com as freguesas. Ele gosta de fazer mágicas, o garoto. Estaciona defronte às clientes que folheiam revistas enquanto aguardam a vez e se bota a encantá-las com seus truques ainda não bem treinados, o que tem o poder de encantar ainda mais e enternecer o coração de mãe que bate dentro de qualquer cliente de salão de beleza, seja ela já mãe ou não, seja ele já pai ou não. Sim, porque dentro de homem também pode bater coração de mãe, acredite. Já vi. Existe e não é mágica.
Pois o garoto ali, magicando para a cliente e falando com ela, até que lhe faz a pergunta sobre se ela iria sábado ao aniversário da Júlia. “Não, não vou”, respondeu a cliente, surpresa. “Eu não conheço essa Júlia”, emendou ela. “Ué, mas se você for, você vai conhecê-la”, respondeu o mágico garoto, imerso em sua irretrucável lógica de oito anos de idade. Na visão dele, o fato de a cliente não conhecer Júlia não é argumento válido para ela se fazer ausente da festa de Júlia no sábado. Pelo contrário, trata-se mesmo é de um bom motivo para ir à festa, a fim de lá, então, conhecer Júlia. Mágica, pura mágica. Eu, fosse ela, iria, e a Júlia que perdoasse o penetra.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de outubro de 2014)

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Coligação de sabores

Minha mãe gosta de cozinhar e cozinha como hobby para desestressar da correria que suas demandas profissionais lhe impõem. Herdou a habilidade de minha avó, que cozinhava não como passatempo, mas como uma das atribuições da dona de casa que era. Outros tempos, outros ingredientes de vida e de panelas, mas em ambas a mesma competência em administrar sabores, o mesmo amor pela arte da gastronomia, seja ela a simples do dia-a-dia ou a requintada dos chefs.
Minha mãe cultiva há décadas um caderno no qual vai lançando as receitas que experimenta e julga terem tido tal sucesso a ponto de querer perenizar ali os ingredientes e o modo de fazer, a fim de repetir a experiência da transformação alquímica de ingredientes solitários em compostos deliciosos. Como o acúmulo de prática e experiência gera conhecimento e segurança, ela usa a imaginação na criação de pratos novos ou mesmo no incremento, com seu toque pessoal, daqueles cardápios batidos que se renovam ao mexer de suas colheres.
Está enjoado de estrogonofe? Isso porque nunca experimentou o estrogonofe feito por minha mãe. Boeuf bourgignon, sabe o que é? Buenas, nunca comeu lá em Ijuí, azar o seu. E uma torta salgada de cebola, o que acha? Uma mousse de pepino? Uma galinha a escabeche? Um ratatouille? Pimentões verdes recheados, que acha? E goulash com páprica picante, já comeu? E guisado com mandioca? Ah, isso você conhece? Sim, mas já experimentou o feito pela minha mãe? Não, né? Ah pois...
Ontem, em homenagem ao dia das eleições, baixou nela o santo do cozinheiro inventão e ela se foi para as panelas, inventar moda culinária. Telefonou para mim lá de Ijuí, só para me encher de água a boca, ao narrar a nova estripulia, batizada de Coligação de Sabores. Não sei como é nem que gosto tem, mas a julgar pelo relato dos ingredientes, logo terei de ir a Ijuí experimentar. É à base de PV (pimentão vermelho), PAF (pimentão amarelo da feira), PCCF (punhado de cubos de carne fritos), PAR (porção de abobrinha refogada), PS e PP (pouco sal e pitadas de pimenta). Eis uma coligação que não vai revoltar o estômago de ninguém!

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de outubro de 2014)

sábado, 4 de outubro de 2014

O sonho do voto

O dia 5 de outubro de 1984, 30 anos atrás, caiu em uma sexta-feira. Não posso afirmar em detalhes o que eu estava fazendo naquela data exata, mas, como ainda administro minhas lembranças, consigo ter uma ideia devido ao contexto em que estava inserido. Junto com essas recordações nubladas, é possível resgatar algumas certezas.
Uma dessas certezas é de que eu era, na época, um jovem estudante universitário cursando o segundo semestre de Jornalismo na Universidade Federal de Santa Maria. Sim, aquele jovem ali era eu, apesar da magreza dos 62 quilos, da hirsuta barba e cabeleira típicas do então militante trotskista, da pastinha preta da Comunicação exibida com orgulho pelas ventosas ruas da cidade e dos bolsos repletos de certezas absolutas e verdades prontas a mudarem o mundo para melhor. Nesses bolsos havia também muita disposição para participar de um movimento estudantil que se unia de ponta a ponta no país com diversos outros movimentos sociais que exigiam a recuperação de um direito básico dos cidadãos: o de votar diretamente para presidente da República.
Trinta anos atrás, circulando naquela sexta-feira de 5 de outubro pelas ruas de Santa Maria a caminho de alguma aula de Introdução ao Jornalismo ou a algum debate do Diretório Acadêmico ou a alguma assembleia estudantil para produzir algum panfleto combativo ou a algum encontro da comissão organizadora da Feira do Livro (eram os estudantes da Comunicação que organizavam a Feira do Livro de Santa Maria na época), eu sonhava com o dia em que os brasileiros pudessem ir às urnas escolher pelo voto direto o presidente da Nação. Mas ainda havia muitas pedras no caminho a serem removidas, a começar por uma ditadura militar que aniversariava duas décadas de desmandos no Poder.

E, de fato, não foi nada fácil. Neste domingo, 5 de outubro, 30 anos depois, ir às urnas já se consolidou como ato corriqueiro em uma democracia estabelecida, na qual os desafios são outros e cruciais para a construção de uma nação em que haja cidadania plena para todos. Cabe a cada um de nós saber usar com consciência esse direito conquistado a tão duras penas. Vote bem!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de outubro de 2014)

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O autor analfabeto

Às vezes me questionam, em entrevistas, sobre desde quando eu escrevo. Minha resposta à pergunta sempre é cambiante, uma vez que faz décadas que prefiro ser uma “metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. Mas ultimamente, já que a pergunta induz a pensar em retrospecto, venho respondendo que escrevo desde antes de ser alfabetizado. Ah, pois!
Sim, explico. Isso é verdade porque, muito antes de ingressar na escola e começar a aprender que bê com a faz ba e bê com e faz be, eu já elaborava historinhas em quadrinhos criadas em minha própria imaginação e as desenhava em cadernões repletos de folhas em branco, que minha mãe comprava para mim na Livraria Cultural, em Ijuí. Depois, quando ela chegava em casa do serviço à noitinha, eu ia lá atazanar e pedir para que inserisse os diálogos que havia criado para os personagens, já que eu ainda era um analfabeto. Ou seja: tecnicamente, quem exercitava o ato mecânico de colocar o texto nas páginas era minha mãe, mas quem os criava era eu. Eu, o autor. Eu, o escritor analfabeto, que escrevo desde antes de aprender a juntar letrinhas.
Por tabela, volta e meia surge também a questão sobre desde quando sou leitor, e a resposta é a mesma: desde antes de aprender a ler. Sim, porque minha mãe (de novo ela) lia livros do Monteiro Lobato para mim, na cama, antes de eu dormir à noite, e não tinha jeito de eu pregar o olho porque, antes de dormir, ficava era ligadão querendo saber o resto da história. Ao invés de adormecer, despertou em mim o leitor.

E Feira do Livro, desde quando participo? Também, desde sempre. Lá em Ijuí, meus pais me levavam toda a sexta-feira de tardinha até a Livraria Progresso e me deixavam pegar dois gibis à minha escolha. Desde os sete anos que eu faço minhas feiras de livros. Podem imaginar, então, como me sinto hoje, dia da abertura de mais uma edição da Feira do Livro de Caxias do Sul. Nos próximos 18 dias, a Praça Dante vai estar repleta de gente faceira por livro igual a mim. Vai lá dar uma olhada, é divertido, é lúdico, é criativo, é humano, é vida pura! Bem-vinda, 30ª edição!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de outubro de 2014)

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Na órbita de Plutão

Olha, gente, eu, por mim, Plutão é planeta e ponto. Eu sei que, na condição de “cronista mundano” (que era como o mestre Sérgio Porto classificava esses que escrevemos sobre o tudo o que há no nada e o nada que há em tudo), eu não deveria ficar dando pitaco nas áreas dos outros, mas tem vezes que a gente não resiste, como no caso do coitado do Plutão.
Como todos que vivemos no mundo da lua bem lembramos, Plutão foi rebaixado de sua condição de planeta para a categoria de “planeta anão” em 2006, em uma decisão tomada por algumas centenas de cientistas reunidos em um congresso internacional de astronomia. Plutão estava lá, quietinho, cumprindo sua milenar trajetória orbital ao redor do Sol, último da fila dos planetas, bem depois de Urano e Netuno, quando foi surpreendido com a notícia de que estava expulso do seleto grupo dos planetas do sistema solar. Assim, sem mais, sem direito a defesa, sem vez a voto e nem a voz.
E o que Plutão fez em relação a isso? Ora, nada! Continuou quietinho lá, nos confins do sistema, dando de ombros metaforicamente, refletindo que “esses astrônomos são de lua mesmo, eles que pensem o que quiserem a meu respeito”. E dê-lhe mais uma volta ao redor do Sol, surfando na poeira estelar. Quem se indignou mesmo foram as pessoas nascidas sob o signo de escorpião, que passaram a ser regidas por um rebaixado planeta anão. Puro desaforo e discriminação astrológicas! Ficou parecendo coisa de político populista querendo fazer moral com o eleitorado, apresentando plano de redução e enxugamento tão astronômico que corta até o número oficial de planetas.

Pois agora, às vésperas de novo congresso internacional de astronomia, noticia-se que já existe um forte grupo de cientistas (escorpianos, imagino) se movimentando para restabelecer a honra perdida e o título surripiado de Plutão, reconduzindo-o ao status de planeta. Eu aqui, mesmo canceriano e regido pela inconstante lua, sou a favor. Até porque, tudo não passa de soberba humana, essa espécie que acredita ter poder de influenciar o que existe tanto no céu quanto na Terra. Melhor fazer que nem Plutão: dar de ombros e seguir rodando.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de outubro de 2014)

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Os javalis bandoleiros

Tenho ficado grilado com essas notícias sobre os javalis haverem se tornado uma praga descontrolada pelo interior do Estado. Por serem exóticos ao ecossistema e não terem predadores naturais, eles viraram uma ameaça ao ambiente nativo, a ponto de o próprio Ibama liberar o abate da bicharada que anda à solta e aos bandos pelas matas e fazendas gaúchas. Que coisa isso!
Na minha imaginação semeada pelas décadas de leituras, caçar javalis sempre foi uma atividade prosaica relacionada ao preparo de lautos banquetes em uma certa aldeia localizada na região da Normandia francesa, por volta de 50 antes de Cristo, a fim de encerrar com foice de ouro mais uma aventura dos gauleses mais famosos das histórias em quadrinhos. Asterix, Obelix, Ideiafix, Panoramix e Abracurcix não precisavam mais do que os próprios punhos para penetrar na mata e saírem de lá com alguns pares de javalis que refestelariam o jantar da tribo.
Só vim a conhecer o sabor da carne dos javalis que meus heróis da ficção consumiam anos mais tarde, já morando em Caxias do Sul, em meados da década de 1990. Foi por essa época que alguns criadores passaram a introduzir o javali em suas fazendas, imaginando estarem a abrir um novo filão de mercado. E de fato, instalou-se certa febre pela carne de javali pelo Estado. Restaurantes que serviam a iguaria exótica eram disputados e comíamos deliciosos javalis assados puros ou cozidos ao molho.
Mas depois aquela cisma foi passando, sabe como é: nós, a gauchada, até que não somos de muita frescura alimentar, a gente experimenta uns nacos de carne exótica e comemos, vá lá, um pedaço de javali, um veado campeiro, uma capivara, um coelho, essas coisas. Mesmo nas churrascarias, beliscamos o salsichão, o franguinho, tá, vai. Mas carne, índio veio, carne assim carne, mesmo, para lambuzar os bigodes e arrebentar a guaiaca, para nós, é e sempre será a de boi.
E foi assim que o javali foi saindo de fininho do cardápio, até se transformar nesse bandoleiro indômito que toca o terror pelo Estado. Diferentemente dos quadrinhos, na vida real não há poção mágica de druida gaulês a gerar solução fácil para o problema.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de outubro de 2014)