segunda-feira, 24 de julho de 2017

Cada um com seu tempero

Tenho aqui comigo a ingênua convicção de que fazer comida é um ato de amor. Sei lá por qual razão. Alguma coisa me diz que botar-se às panelas para cozinhar evoca sentimentos ancestrais protagonizados por mães, por avós e mães de avós, em eras remotas nas quais manusear panelas, conchas e mêscolas representava a habilidade de levar à mesa, para os entes queridos, os sabores dos alimentos preparados com a pureza do coração. Para mim, permanece viva até hoje a percepção de que cozinhar é uma atividade feliz. Porém...
Porém, pois é. Antes do “porém”, mais alguns “senões”. Lembro de minha avó materna, a dona Ilse, que cozinhava para toda a família como quem ama. Leitora contumaz e dona de casa aplicada, dona Ilse reinava na cozinha com a propriedade que as avós adquirem frente ao tempo de atividade junto aos fogões criados para alimentar proles ao redor do planeta. Ela fazia guisados de moranga como ninguém, galinhadas como só ela, feijão e bifes únicos. Vendia o peixe com frases marqueteiras como “não é porque eu fiz, mas está delicioso” e “nunca fiz tão bom”, com as quais concordávamos em silencioso uníssono, metendo bocas adentro os nacos de sua competência gastronômica.
O mesmo se dava com minha avó paterna, a dona Hermine. Delicada e elegante, dona Hermine produzia saladas de batata inimitáveis, que faziam sucesso nos churrascos de domingo pilotados por meu avô. Ela também moldava sonhos na Páscoa e esculpia tortas alemãs como a apfelstrudel, encravando marcas indeléveis em nossas lembranças gustativas. Ofertavam elas a nós, familiares, os frutos de seus atos amorosos. E saboreávamos aquilo tudo, digerindo lembranças. Minha mãe e minha sogra também cozinham com o mesmo amor herdado.

Porém... É embalado por esse tipo de elo afetivo que passeio pelos atuais programas de competição gastronômica, prolíficos nas grades dos canais de tevê, e me decepciono. O que vejo ali é desaforo, agressividade e humilhação pautando relações de gastronomia, onde o fazer de um prato deveria ser temperado somente por emoções como prazer, compartilhamento, alegria e estética. Mas, não. O chef, que tudo sabe, precisa escrachar o neófito, a serviço da audiência. Que tipo de audiência? A de quem vibra ao ver alguém ser espezinhado pelo outro, que sabe mais? O ideal não seria esperar que o detentor do saber ensinasse ao aprendiz com generosidade e acolhimento? Ah, não; eu, fora. Não assisto. É azedume demais. Desligo a tevê e vou para as panelas, orientado apenas por doces lembranças ancestrais. Para mim, esse ainda é o melhor tempero.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 24 de julho de 2017)

Naquelas datas queridas

Naqueles remotos tempos de antanho, quando éramos crianças e fazíamos aniversário, não existiam empresas especializadas na produção e organização de festas infantis. Os palcos das reuniões dos amiguinhos, dos pais dos amiguinhos e dos parentes (tios, avós, primos) eram as casas das famílias mesmo, que em geral possuíam pátios e gramados pelos quais podíamos, depois de cantado o “Parabéns” e engolidos alguns litros de refrigerante, sair correndo desenfreados a brincar de esconde-esconde, pega-pega, chutação de bola, pula-corda e assemelhados, cujo resultado podia-se verificar à noite na hora de dormir, quando os joelhos esfolados eram apaziguados com a ardência do Merthiolate e os assopros consoladores das mães.
Se chovia, a bagunça era dentro de casa mesmo e arredavam-se cadeiras na sala para dar espaço à montagem do Forte Apache e das pistas para corrida de carrinhos de ferro (Matchbox, não Hot Wheels), ou para o esconde-esconde que resultava nas cortinas da casa emporcalhadas por mãozinhas e bocas lambuzadas de brigadeiro e glacê. Corria-se muito. Gritava-se muito. Ria-se aos borbotões. Caía-se às pencas. Levantava-se e voltava-se a correr. E a gritar. E a dar mais uma acelerada rumo à mesa dos doces, ultrapassar a barreira das pernas de algum tio esfomeado que atacava os croquetes e capturar uma mãozada de docinhos produzidos pelas próprias mãe, tias e avós do aniversariante. E de volta ao agito. Doce de confeitaria? Nem pensar! As já citadas mães, avós e tias é que formavam o batalhão que rumava às cozinhas às vésperas da data, para produzir as guloseimas que seriam fartamente consumidas no dia aniversarial. A única telentrega de que se tinha notícia era a de amor e afeto.
Ah, os bolos de aniversário configuravam um capítulo à parte. Minha mãe e avós eram verdadeiras artistas e produziam esculturas comestíveis tão belas quanto saborosas com massa de bolo, cremes doces, chantilly, merengues, gelatinas e assemelhados. Certa feita, meu bolo de aniversário era uma oca indígena, com índios de plástico do Forte-Apache dançando em volta (que, felizmente, sobreviveram ao ataque voraz dos mocinhos e mocinhas esfomeados). Em outra ocasião, o bolo era um tambor; depois, um relógio; um saloon de bangue-bangue com a diligência puxada a cavalo; a cara de um palhacinho e assim por diante.
Mas eram outros tempos. Hoje há quem faça e entregue. E ainda bem, afinal, não há mais horas de sobra nos dias de ninguém. Só espero não chegar a ver o tempo em que terceirizaremos também os convidados.

 (Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 17 de julho de 2017)

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Um centauro na manga

Fica difícil escrever sobre centauros em plena vigência do século 21, uma vez que nós, cidadãos de nosso tempo, não acreditamos em centauros. Seria mais fácil (e plausível) fazê-lo se ainda estivéssemos mergulhados nas trevas supersticiosas da Idade Média, quando a maioria da população era iletrada e as fronteiras do mundo conhecido raramente se expandiam para além do perímetro das aldeias em que cada um carregava sua dura vida, monótona e descolorida. Naqueles tempos pesados, era crível haver terras rudes, além do horizonte, habitadas por gente exótica, falante de línguas indecifráveis, em meio a criaturas maravilhosas como os centauros, a fênix, o unicórnio, as sereias, os cíclopes, as salamandras, os silfos, dragões, harpias e sátiros. Entre outras.
Não era necessário avistar um centauro para ter certeza de sua existência a partir de relatos oriundos dos viajantes ou dos versos cantados por menestréis errantes. Isso, naqueles tempos remotos. Hoje, precisamos ver para crer e, assim, os centauros já não encontram mais lugar para se assentar entre as coisas em cujo existir cremos e que moldam o cenário de nosso mundo aceitável. Mesmo assim, falaremos sobre centauros, nos quais não acreditamos. Os centauros são seres híbridos, formados pela metade de um homem e a metade de um cavalo. O torso, a cabeça, o tronco até o ventre compõem a parte humana da criatura, que se encaixa sobre o corpo de um cavalo, formando uma figura bizzara. Um ser com rosto, peito e braços humanos sobre quatro patas equinas é como resumiríamos, sem elegância, a morfologia de um centauro.
Os centauros habitavam as páginas dos bestiários, compilações que na antiguidade se dedicavam a elencar os seres extraordinários que povoavam terras distantes, a excitar a imaginação, alimentar os pesadelos e cultivar o terror entre as gentes. O escritor argentino Jorge Luis Borges (1899- 1986) dedica atenção a ele em seu “O Livro dos Seres Imaginários”, obra em que procura listar alguns dos “estranhos entes que a fantasia dos homens engendrou ao longo do tempo e do espaço”. Borges apreciava atentar a questões como essa, apesar de também confessar sua falta de crença no centauro.

Por que, então, dispensar energia nos debruçando sobre uma criatura em cuja existência descremos e que, para nós, não faz o menor sentido? Ora, porque anda difícil para os cidadãos deste também sombrio século 21 acreditar em alguma coisa. Por via das dúvidas, talvez seja prudente guardar na manga algum centauro no qual se possa voltar urgentemente a crer, pois não?
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 10 de julho de 2017) 

segunda-feira, 3 de julho de 2017

Ontem, o tecer do amanhã

Estudar o passado é a melhor ferramenta que existe (quiçá a única) para compreender o presente e construir o futuro. Foi sobre os erros e os acertos do passado que o presente moldou-se, e o futuro que queremos só poderá ser erigido se conseguirmos evitar os antigos erros cometidos e repetirmos (ou aprimorarmos) os acertos. Muitas vezes, o passado, que parece ilusoriamente mais remoto a cada ano que dele nos afastamos, vê seus reflexos e consequências se entranharem profundamente nos aspectos do cotidiano, tecendo e comandando o presente de maneira vital, aproveitando-se de nossa miopia. É um perigo.
A Segunda Guerra Mundial, por exemplo, conflito que terminou há 72 anos, exerce influência determinante no perfil do mundo que vivemos hoje, não só nos aspectos geopolíticos, econômicos, humanísticos e ideológicos, mas essencialmente nas questões éticas e morais. A portentosidade do episódio histórico conhecido como Segunda Guerra Mundial, a extensão de suas consequências e transformações, é tão imensa que segue gerando estudos, despertando atenções, estimulando teorias. E deve ser assim mesmo, porque é dessa tentativa de compreensão que resultará a possibilidade de se construir um mundo melhor, especialmente se a humanidade conseguir, na prática, varrer para o lixo todos os aspectos que pautavam a proposta de mundo conduzida pelo nazismo e pelo fascismo.
Os escritores franceses Louis Pauwels e Jacques Bergier defendem que o nazismo representava uma civilização completamente diferente daquilo que conhecemos como civilização, sem pontos de convergência e de comunicação intelectual, moral e espiritual com a nossa. Por isso que precisou ser combatido até a derrocada absoluta. A visão nazista de mundo é excludente, opressora, racista, intolerante, criminosa, violenta, sexista, assassina, corrupta, psicopata e movida pelo ódio. Seus mentores e acólitos foram derrotados militarmente e suas ideias execradas. Mas é preciso permanecer alerta.

Temos de estar constantemente atentos ao florescer de visões de mundo que não conversam com aquilo que aceitamos, conhecemos e adotamos como civilização, sob pena de implosão dos pilares sobre os quais se sustentam a vida em sociedade. A corrupção que carcome a sociedade brasileira não conversa com aquilo que se entende por civilização, e precisa ser combatida onde quer que ela se expresse, desde o roubo milionário dos cofres públicos nas altas esferas até o motorista que se diz cidadão mas foge do local após colidir o carro. A História é construída a partir do cotidiano dos anônimos.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst, publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 3 de julho de 2017)