segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Hola, que tal?

Pelé ou Maradona? Rio de Janeiro ou Buenos Aires? Samba ou Tango? Vargas ou Perón? Mônica ou Mafalda? Chorizo ou picanha? Cacetinho ou media-luna? Sorvete ou helado? Cartola ou Gardel? Jorge Amado ou Jorge Luis Borges? Real ou peso? Arrigo Barnabé ou Astor Piazzolla? Gaúcho ou gaucho? Blau Nunes ou Martín Fierro? Nando Reis ou Fito Paez? Suco de laranja ou de pomelo? Rio Amazonas ou Rio da Prata? Futebol ou fútbol? Palácio do Planalto ou Casa Rosada? Obrigado ou gracias? Bom dia ou buenos dias? Vamos ao litoral ou a la playa?
Dizem que entre os fatores cruciais que concorrem para uma ótima qualidade de vida figura a manutenção de boas relações com os vizinhos, especialmente quando se tem o privilégio de possuir bons vizinhos. É o caso do Brasil, que, em suas fronteiras sulistas, cultiva a regalia de vizinhar com países agradáveis, culturalmente ricos e acolhedores, como Argentina e Uruguai. Passadas as tensões artificiais e interesseiras insufladas ao longo das décadas de 1960 e 1970 pelos governos militares que oprimiram concomitantemente os povos de Brasil e Argentina, hoje as populações dos dois países vivenciam uma vizinhança de alta qualidade, proporcionando trocas de vivências e experiências enriquecedoras para ambos os lados.
As rivalidades realmente sérias não ultrapassam mais os campos das paixões futebolísticas, seara na qual a disputa da primazia do reinado futebolístico entre Pelé e Maradona jamais será solucionada, claro que por pura teimosia injustificável dos nossos hermanos, mas deixemos isso prá lá. O fato é que, neste 30 de novembro, celebra-se o Dia da Amizade Brasil/Argentina, data que, a meu ver, é plenamente justificável para consolidar as boas relações entre dois povos que se apreciam e convivem pacificamente há tanto tempo.

De minha parte, a partir das várias experiências que venho tendo ao visitar diversos pontos da Argentina ao longo dos anos, só acumulo boas experiências junto aos hermanos. Taxistas honestos, garçons solícitos, camareiras simpáticas, pessoas sempre agradáveis e acolhedoras. E como leem os argentinos! Um país em que a imagem de uma pessoa lendo um livro em público não passa a sensação de um E.T. a passeio, como o que ocorre aqui pelas plagas brasileiras! E agora bateu aquela saudade de um desayuno ao ar livre na calle, regado a media-luna, dulce de leche e alfajores. Como será que anda o tempo em Buenos Aires...?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de novembro de 2015)

sábado, 28 de novembro de 2015

Gentileza reumanizante

Vivemos em um mundo complexo, em que o ritmo acelerado do cotidiano procura acompanhar a velocidade das transformações sociais e tecnológicas, gerando estresse, correria, atropelos (metafóricos e reais). Ansiedade, afobamento, angústia acabam se impondo e gerando cansaço, prostração, frustração. Agenda lotada não é mais privilégio de altos executivos, mas, sim, um aspecto comum à vida de todos, desde crianças até idosos e aposentados. Quem foi que disse que 24 horas são suficientes para vencer as tarefas de um dia? Precisamos de clones, urgente!
É devido a esse cenário de exigências e superações diárias que procuramos criar e encontrar tábuas de salvação, rituais que nos possibilitem gerar pequenos oásis particulares nos quais reencontramos nossas essências, recarregamos as baterias físicas e psíquicas para reafirmarmos nossa condição humana (e não robótica) frente a nós mesmos. Procedimento vital e crucial para a manutenção ou recuperação da sanidade a fim de, claro, darmos sequência às demandas que já vão se acumulando de novo. É quando entram em cena os chamados “pequenos prazeres”. Em uma sociedade superlativa, em que o excesso vira sinônimo de prosperidade, pujança e felicidade questionável, vamos redescobrindo aos poucos o potencial de prazeres existentes nas chamadas pequenas coisas da vida, percebendo que atos singelos como dormir até mais tarde no final de semana ou servir o café da manhã na cama à cara-metade, surpreendendo-a, possuem um valor inestimável.

E estamos certos nisso. Só falta agora avançarmos um pouquinho, darmos o passo além, que também se faz necessário. Ao lado da (re)descoberta dos pequenos prazeres, que nos reumanizam individualmente, está na hora de nos dedicarmos um pouquinho também à prática das pequenas gentilezas cotidianas, atitudes que provocarão nossa reumanização coletiva, nos aproximando da essência do conceito de “sociedade civilizada”. O cumprimento ao vizinho no elevador, segurar a porta do estabelecimento para quem vem chegando, dar a vez ao outro no trânsito, parar frente à faixa de segurança, elogiar alguém pelo simples fato de apreciar esta pessoa, dar um presente por nada, reconhecer um erro, sorrir, agradecer, essas pequenas coisinhas que, quando executadas, nos tornam não grandes e nem maiores, mas nos colocam dentro da justa medida daquilo que somos, ou que deveríamos ser: humanos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de novembro de 2015)

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Fé na sorte

Daí a gente fica sabendo que um sujeito em São Paulo, com muita vontade de ficar rico, desembolsou 95 mil reais (isso mesmo, a senhora não leu errado: foram quase 100 mil) em apostas na Mega-Sena, essa que ficou acumulada ao longo de um mês inteirinho (essas coisas estranhinhas da sorte) até chegar aos R$ 205 milhões. Confrontando as leis das probabilidades (sim, porque, no Brasil, quanto mais acumula a Mega-Sena, mais apostas são feitas e, quanto mais apostas são feitas – sempre no final do ano, por sinal –, mais difícil é alguém acertar, subvertendo a lógica), nem o paulista afoito (e rico, pelo visto, já que tinha uma fortuninha para apostar na fortunona) e nem ninguém levou o tentador prêmio, exceto um apostador (um único, umzinho só) de onde? Ora, do Distrito Federal!!!! Ah, essas coisas da sorte... A sorte, no Brasil, realmente é uma coisa que dá pano prá manga... Mas não vamos falar sobre isso.
Não vamos falar sobre isso porque fica parecendo papo de perdedor. Aquela coisa: “O Marcos Kirst não jogou na Mega-Sena, nunca joga na Mega-Sena nem em nenhuma outra loteria e, por isso, fica aí com dor-de-cotovelo, escrevendo essas coisas”. Para que não digam isso de mim, vou ficando por aqui mesmo. Mas é verdade, não jogo mesmo. Motivo? Não vou dizer. Mas dou uma pista. O motivo segue a mesma linha das decepções que fui tendo ao longo da vida, primeiro, em relação ao Coelhinho da Páscoa, quando descobri que quem escondia os ninhos eram meus pais. Depois (mais traumática ainda) veio a decepção em relação ao Papai Noel, um sujeito escondido sob uma máscara de plástico cujas orelhas pareciam demais com as de um tio que, estranhamente, naquele momento se ausentava da celebração.

Daí veio a questão do Bicho-Papão. Ok, nesse caso, foi mais um alívio do que uma decepção, mas a partir daquilo tive de redirecionar para outras fontes a origem de meus temores. Bem mais reais. Daí a decepção com os pilotos brasileiros de Fórmula-1 pós-Ayrton Senna e com os jogadores (???) de futebol convocados para a Seleção Brasileira. E com os partidos políticos. E com a Hello Kitty, que negou ser uma gatinha. Pois é, minha relação com as loterias caminha nessa trilha, especialmente depois que aposentaram a zebrinha do Fantástico. “Iiii, olha eu aí: deu zebra”!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de novembro de 2015)

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

O passarinho do poeta

Rubem Braga (1913 – 1990), o escritor, era fissurado por sabiá, o passarinho. Em sua longa carreira como cronista, discorreu dezenas de vezes sobre essa ave que, pelo visto, o encantava pelo canto, pela forma, pelas atitudes. E o melhor de tudo: rendia-lhe temas para seu constante cronicar. Sua admiração pela avezinha era tamanha que batizou de Sabiá uma editora de livros que fundou em 1966 tendo como sócio outro mestre da escrita nacional, Fernando Sabino (1923 – 2004). A editora durou pouco, não mais do que seis anos, mas a paixão do cronista pelo pássaro perdurou ao longo de toda a sua existência.
Na verdade, analisando mais a fundo, poeta da alma como era, Rubem Braga nutria um encantamento amplo e democrático pelas aves em geral, em especial por passarinhos. O título de uma de suas mais afamadas coletâneas de crônicas é justamente “O Conde e o Passarinho” e é possível detectar uma diversidade enorme de vezes em que pássaros em geral – não somente sabiás – dão o tom de suas narrativas. Por saber detectar toda a poesia e o potencial lírico existentes nessas pequenas, delicadas e voadoras criaturas, Rubem Braga dispunha diante de si de um arsenal enorme de possibilidades temáticas para solucionar seu desafio perene de exercitar a arte da crônica mundana. Sorte dele, atraída pelo extremo e inigualável talento.
Já eu, aqui, separado do mestre pelo tempo e por quilômetros de doses de talento, preciso me virar nos trinta em busca de tema para desdobrar o mundanismo de meu compromisso cronical, sendo ele – o compromisso – o único elo existente entre Braga e eu. Deveria, para facilitar minha vida, adotar também eu um passarinho de minhas preferências, para ver se assim o jorro das ideias passa a fluir com mais limpidez pelas minhas searas. Quem sabe o canário? Não, não, canário não. Evocaria sempre a “Seleção Canarinho” e se tem coisa plena de falta de inspiração hoje em dia é o futebol da Seleção Brasileira. Então, o tico-tico? Não, também não, o nome do bichinho não ajuda para a evocação poética. A gralha? Não, nada poético. O bem-te-vi? Soaria falso, nunca mais os vi. A avestruz? O ganso? Opa, calma, são aves, mas não passarinhos.

Talvez o beija-flor! Tá aí, o beija-flor, que também atende pela delicada alcunha de colibri. Pronto, está eleito. Só falta agora descobrir como é que se tira poesia  disso. Acho melhor reler Rubem Braga.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de novembro de 2015)

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Tá todo mundo nu

Se a moda pega – e, pelo jeito, já está pegando –, está decretada a derrocada de toda a indústria fabril e têxtil do país, bem como a falência das lojas de roupas. Sim, porque, ao que tudo indica, em seguindo o andar da carroça pela trilha que vai, ninguém mais anda muito interessado em se vestir e a ordem do dia parece ser “tá todo mundo nu”. Não sei se é só aqui no Brasil que acontece o fenômeno, mas a onda do “peladismo” está batendo forte e o que mais se vê é gente disposta a cruzar os limites das praias de nudismo para desfilar seus modelitos “de-como-vim-ao-mundo” pela aí.
Senão, vejamos. Primeiro foi a atriz Maitê Proença, agora integrante de um divertido programa televisivo de debates esportivos (cujo nome não vou citar para não fazer propaganda e, até porque, todos sabem que se chama “Extraordinários”, na tevê paga), que jurou de tamancos juntos aparecer pelada caso seu time do coração, o Botafogo, conseguisse ser campeão este ano da Série B do Brasileirão e retornasse à elite do Campeonato Brasileiro. Pelo visto, vai ter de cumprir, já que os jogadores e a torcida do Botafogo fizeram a sua parte. Sou inclinado a crer que havia até mesmo marmanjo de times adversários torcendo pela boa campanha do Botafogo, botando lenha nessa fogueira, só para que a atriz tivesse de ser chamada às contas.
Mas isso foi uma coisa. A outra coisa rolou agorinha há pouco, quando o escritor de telenovelas Aguinaldo Silva prometeu aparecer pelado caso “Império”, sucesso televisivo de sua autoria, papasse o Emmy Internacional como melhor novela do ano. A cerimônia de premiação ocorreu segunda-feira em Nova York e pimba: “Império” venceu. Aguinaldo Silva terá de sair pela aí pelado. Onde irão cumprir suas promessas, Maitê e Aguinaldo? Quem mais vai aderir à onda? O que é que motiva essa gente a decidir celebrar feitos seus e externos tirando as vestes e exibindo suas pudicícias?

O fenômeno é bastante sintomático por coincidir em suas incidências (há de se recordar dos peladões e das peladonas a correrem pelas vias públicas recentemente em Porto Alegre e em outras localidades do país) com o anúncio da revista Playboy norte-americana, de que não vai mais publicar fotos de mulheres nuas em suas páginas, depois de décadas de tradição nesse quesito. Alguém entende? Alguém explica? Ah, mundo, mundo...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de novembro de 2015)

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Falta de sorte ou de mira?

Sempre que ficava impressionada com alguma coisa (e muitas eram as coisas que a impressionavam), minha avó materna colocava a delicada mão no queixo, balançava levemente a cabeça e exclamava, com seu quase imperceptível sotaque de descendente de imigrantes alemães: “nom, nom, nom: nom tem explicação”! Dizia isso especialmente quando assistia a notícias terríveis pelos noticiários da televisão ou quando escutava alguma história espantosa contada por algum familiar, alguma amiga, algum vizinho. As injustiças do mundo, a crueldade e as malvadezas cometidas pela espécie humana deixavam-na perplexa e, aí, repetia o mantra, enquanto refletia sobre as motivações da alma humana.
Mas também utilizava a exclamação, com menos frequência, quando era brindada com algum relato engraçado, surpreendente ou misterioso. Afinal, a dificuldade em encontrar explicações plausíveis para os fenômenos do mundo, humanos ou naturais, é infinita. Mas mais infinita ainda era a capacidade de minha avó de se espantar com tudo aquilo que fosse, digamos, espantoso. E convenhamos, eita espantoso mundinho este em que vivemos, não é, hein?
Pois eis que fico aqui a recordar de minha avó neste momento em que me quedo espantado com essa interessante coincidência da mega-sena acumulada aí pela décima vez em sequência agora no final deste ano. Que coisa engraçada isso, até parece ser sazonal. Basta chegar o final do ano que a mega-sena acumula, e acumula, e acumula e acumula de novo, gerando um prêmio astronômico, a brindar, lá adiante, um hiper-super-mega-sortudo que vai passar o rastel na granaiada toda. Aconteceu ano passado, também. E no anterior. Chega o final do ano e pá: acumula-se doidamente a mega-sena. Ninguém acerta os numerozinhos e o prêmio se bandeia para as estratosferas. Mas o que é que há? Os brasileiros perdem a capacidade de acertar os números da mega-sena nos meses de novembro e dezembro? Eis um bom motivo para uma pesquisa científica sobre comportamento, ou sobre a matemática das probabilidades, ou algum estudo sociológico, ou alguma investigação... Opa, investigação não, investigação não! Eu só falei em pesquisas e estudos...

Mas esquece, nada a ver, deixa assim. É que eu herdei da minha avó essa mania de me espantar com as coisas e de querer explicação... Durmamos sossegados...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de novembro de 2015)

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Chuteira no pé

Uma vez que você aprende a usar adequadamente as chuteiras, a vontade que dá é de que elas nunca mais saiam de seus pés. E tem sentido, afinal, você levou anos de treino e de suor para chegar a esse ponto, ao ponto em que chuteira no pé - no seu pé, especificamente - é sinônimo de gol, de vitória, de performance elogiável, de desempenho favorável. Você calça a chuteira e já sabe que terá, sim, condições de atender às expectativas dos que o cercam, dos que o conhecem e dos que ouvem falar de você, e que sabem das proezas memoráveis de seu pé sempre que enverga chuteiras. Que delícia! Você calça as chuteiras e sai chutando!
Como em todas as áreas de ação no mundo, há chutes e chutes. Há quem chute bem mas o faz apenas por esporte, por hobby. Há quem chute bem por profissão e se destaca entre os demais colegas e concorrentes. Há também quem chute tão bem, mas tão bem, que vira ídolo, estrela, fica famoso e milionário. São os agraciados pela sorte, cujas chuteiras reluzem a ouro. Calçar as chuteiras e chutar bem, com seriedade, foco, competência e zelo, é obrigação pessoal de todos os que se propõem a fazê-lo profissionalmente. Se vai calçar chuteira e sair chutando como meio de ganhar a vida, tem de chutar com sabedoria. Chute a esmo, atabalhoadamente, de forma descompromissada, só se admite aos diletantes do chute, para quem as chuteiras não representam parte fundamental de suas essências de vida.
Mas tem uma coisa muito importante nesse negócio de calçar as chuteiras e chutar, e é preciso estar atento a esse detalhe. Nossa capacidade de chutar vai arrefecendo com o passar do tempo, com a chegada inexorável da velhice. Frente a isso, é sábio saber detectar a hora de pendurar as chuteiras, a fim de não colocar por água abaixo toda uma longa carreira brilhante e vitoriosa, repleta de gols, por simplesmente não ter a noção de que chegou a hora de parar. Insistir em seguir chutando quando nosso pé não possui mais a mesma força de antanho e nossa visão não consegue mais focar corretamente a direção do gol é o mesmo que implodir a própria biografia, porque corre-se o risco de, na posteridade, passarmos a ser lembrados somente pelos equívocos cometidos na reta final de nossas carreiras, quando as chuteiras já deveriam ter dado lugar ao conforto e ao merecido descanso das pantufas.

Saber chutar com as chuteiras é vital. Saber a hora de pendurá-las é longevo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de novembro de 2015)

sábado, 21 de novembro de 2015

Você vê o que você quer

Ela sofre preconceito praticamente desde o momento em que veio ao mundo. Sempre que alguém pretende passar recibo de inteligente, põe-se a falar mal dela. Sob esse viés, apreciá-la parece significar que a pessoa opta deliberadamente por andar mal acompanhada, não lhe sendo passível atribuir a desculpa da inocência. Mesmo assim, ela é praticamente ubíqua e sua presença quase unânime na maioria dos lares do planeta. Por isso mesmo, exerce forte influência sobre a cultura e o comportamento de todos, quer a amemos, quer a execremos, quer pretensamente a ignoremos. Tão significativa ela é que ganhou até um dia mundial específico em sua homenagem. Este 21 de novembro é o dia dela. O Dia Mundial da Televisão.
Falar mal da televisão é o mesmo que falar mal da internet, falar mal das redes sociais, falar mal do sal, do açúcar, da imprensa, dos políticos, do Silvio Santos. Falar mal da televisão é reduzir o aparelho e a grade de programação das emissoras ao conceito pré-estabelecido de que nada relativo a isso presta ou possui algum valor. Reducionismo e preconceito, por si só, são as sementes a partir das quais brotam frutos mais perigosos como a intolerância, a política do ódio e do ataque gratuito. Cuidado, portanto. Eu gosto de televisão. Não tenho nada contra. Como sou grandinho, sei selecionar os programas que me interessam e assisto a eles, naqueles momentos em que me disponho ao relax ou à absorção de algum conteúdo que me seja culturalmente produtivo. Mas essas são as minhas escolhas pessoais, elas dizem respeito a mim mesmo e não posso medir o restante da humanidade a partir do tamanho da minha régua.
O que me causa mal estar ao assistir é o crescimento do preconceito, da intolerância, da política do ódio e da agressividade giratória gratuita camuflada sob a equivocada bandeira da (discutível) inteligência. Isso, sim, me faz preferir estar fora do ar.
***

Neste sábado, das 13h às 16h, estarei ali na Galeria Municipal de Arte Gerd Bornheim (junto à Casa da Cultura, na Rua Dr. Montaury, 1.333), autografando meu mais novo romance, intitulado “A Sombra de Clara”, obra vencedora do Prêmio Açorianos de Criação Literária. Na data, o livro será vendido ao preço promocional de R$ 20,00 (depois, custará R$ 25,00). Espero a amiga leitora e o prezado leitor lá.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de novembro de 2015)

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Ser ou não ser... galo

Uma amiga minha gosta de narrar ao seu círculo de relações uma história saborosa (mais saborosa ainda porque verdadeira) a respeito de um galo que imaginava ser cachorro. Aconteceu décadas atrás, quando seus filhos (hoje adultos) ainda eram crianças e ela os presenteou com três galinhos recém-nascidos (pintos, ainda, pois, pintos, pintos). E vejam o que pintou, no parágrafo que segue.
Deu-se que, naquela época, nos famosos bons tempos atrás, as casas ainda viviam sem cercas, a grama do quintal do vizinho (sempre mais bonita) vizinhava com a grama do quintal do morador ao lado, as crianças de uma casa subindo nas árvores do pomar da outra casa e roubando bergamotas, aconteciam essas coisas. Mas aconteciam também coisas chatas, como o fato de o cachorro de um vizinho, tido como muito malvado (o cachorro, não sei o vizinho), ter devorado dois dos galinhos recém-comprados por essa minha amiga. Trauma, tristeza geral e muita preocupação com o destino iminente do derradeiro galinho, que devia estar na mira do cachorro malvado. Só que, aí é que a história mergulha no seu ponto de inflexão. A seguir.
Aí aconteceu que o tal derradeiro galinho mostrou-se mais esperto que seus dois finados manos e passou a andar colado na cadela boxer da família, esta nada malvada, a título de proteção. Grudado na cadela, ficava livre das investidas do malvado cachorro vizinho e, assim, sobreviveu. Sobreviveu porque passou a agir como cachorro, a fim de salvar a pele... Ou melhor, o pelo... Quer dizer, as penas. E, desde então, o galinho cresceu dormindo no canil ao lado da cadela, comendo comida de cachorro, deitando de lado como cachorro, ignorando as galinhas, essas coisas caninas. Morreu anos mais tarde, convicto de que era cão. Como?

Porque foi estimulado a isso. O exemplo real da história do galinho com alma de cachorro comprova minha tese de que podemos ser o que quisermos. Nosso caminho quem define somos nós mesmos. Eu não deixei de ser astronauta, conforme meu sonho de criança, pelo fato de não ter capacidade para tanto. Eu apenas segui outro rumo. Mas poderia, sim, ter sido diplomata, marceneiro, ator, com a mesma competência com que sou o que quer que eu seja hoje. Da mesma forma, poderia ter sido um fracassado, um criminoso, um assassino, um invejoso, um recalcado. Sou o que escolho ser, dentro das possibilidades daquilo que o universo me coloca à disposição. Poderia até ser galo. Ou cachorro.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de novembro de 2015) 

Eles e elas

Na Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945), os países Aliados (capitaneados por Estados Unidos, União Soviética e Inglaterra) mobilizaram um monumental esforço de recursos para enfrentar e derrotar a tentativa dos países do Eixo (Alemanha, Japão e Itália) de transformar o mundo em um circo dos horrores comandado pelo ódio. Nos gabinetes, líderes traçavam os planos de batalha; no front, soldados davam as próprias vidas no confronto direto com o inimigo; na retaguarda, profissionais de várias áreas disponibilizavam os recursos para as campanhas, alimentando as tropas, tratando os feridos, abastecendo os veículos etc; nas terras natais, os compatriotas produziam as armas necessárias para o confronto, os alimentos, os uniformes, as botas.
Em diferentes graus e sob formas variadas, homens e mulheres dessas nações em guerra, centenas de milhões deles, empregaram seus esforços pessoais, na maioria das vezes, anônimos, na conjugação do esforço que resultou na vitória Aliada contra o nazismo e o fascismo. São os heróis da humanidade, alguns deles ainda vivos. Líderes como Churchill, Roosevelt e generais como Patton, Jukov e outros entram para a história como as lideranças que estiveram à frente das ações e das decisões. Mas a História só caminhou para os rumos que caminhou devido à atuação dos anônimos, cujos nomes não integram os livros de História, mas permanecem imortalizados nas cruzes existentes nos memoriais de guerra e nos monumentos ao Soldado Desconhecido, para aqueles que tombaram sem serem identificados.
Homens e mulheres perfazem a totalidade desses heróis. As mulheres integraram as tropas do Exército Vermelho soviético em condições iguais às dos homens: como soldadas, como pilotas de aviões etc. Em todos os fronts, lá estavam elas, na condição de enfermeiras e médicas, tratando dos feridos. Nos seus países, assumiram o lugar dos homens que foram à guerra, substituindo-os nas fábricas e em vários outros postos. Homens e mulheres venceram a barbárie totalitária. Juntos.

Por isso que ainda creio, neste Dia Internacional do Homem, que homens e mulheres, juntos, serão capazes de vencer a cultura do ódio, da discriminação, do racismo, da inveja, do consumismo, da intolerância, da má-fé, da violência, da gratuidade de ataques. Um brinde às mulheres nesse Dia Internacional dos Homens. Outro, aos homens. Outro ainda àqueles e àquelas de boa-fé.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de novembro de 2015)

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Mas, porém...

Mas, conforme atestam os doutores em Língua Portuguesa, é equivocado iniciar uma oração com a palavra “porém”, porém, “porém” pode (e deve) ser utilizado somente no meio das mesmas, conforme fi-lo aqui nesta que abre esta crônica, na tentativa de fazê-lo certo, porque, de outra forma, iniciando esta com “porém”, entraria já no texto e na vida do estimado leitor e da amada leitora com o pé esquerdo, e eis que aqui surge uma metáfora porque é sabido que, por mais mundano que seja, o cronista não utiliza os pés para a produção destas linhas, mas, sim, as extremidades superiores, nas quais se espalham os dez dedos que dedilham o teclado na composição de parágrafos de tirar o fôlego até de leitores preparados e treinados na leitura de orações insubordinadas como a que finalmente agora chega ao final, sob pena de debandada geral, desmaios e ameaças de agressão física ao autor. Desculpo-me.
Aprendi que não se usa “porém” na abertura de uma oração (salvo as exceções de praxe, porque, o que seria da Língua Portuguesa se não fossem as exceções de praxe, hein?) lendo um livro do professor, jornalista e ensaísta gaúcho José Hildebrando Dacanal, uma sumidade em questões gramaticais (entre outras). O livro intitula-se “Manual de Pontuação – Teoria e Prática”, no qual o autor discorre sobre conceitos e regras gerais relativos à arte e ao ofício de bem escrever (um cronista que se pretende mundano precisa estar em constante processo de formação). Paralelamente aos conceitos, aos exemplos práticos e aos exercícios propostos, Dacanal vai brindando o leitor com pertinazes reflexões a respeito da degenerescência que detecta na qualidade da escrita verificável hoje em livros, jornais, revistas e outros impressos.

Afirma ele que a queda da qualidade da escrita no Brasil é um dos mais significativos sinais do processo de decadência da sociedade como um todo. Essa decadência, segundo ele, pode ser comprovada pelo crescimento das desigualdades sociais, da miséria, do crime e pelo afrouxamento das regras de convivência social e de comportamento moral. Finaliza: “...se todas as normas e todos os limites parecem ter sido abolidos e a desordem e a barbárie avançam incontidas, que importância podem ter as velhas regras do bem falar, do bem escrever e do bem pontuar”? Pois é. Nunca antes saber aplicar corretamente o “porém” foi tão significativo e relevante.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de novembro de 2015)

terça-feira, 17 de novembro de 2015

O camarão na hora certa

Um dos grandes segredos da vida é saber estar no lugar certo na hora certa. E, em contraposição direta a essa tese, é preciso admitir que um dos grandes transtornos na vida é não saber estar no lugar certo na hora certa. Isso aí, conforme a amiga leitora e o estimado leitor percebem de cara, vai tendendo a se configurar em uma daquelas crônicas tecidas sobre o fio condutor da filosofia de botequim, e talvez seja exatamente isso mesmo. Vamos ver o que acontece a seguir, acompanhemos o desenrolar do raciocínio do mundano cronista.
Saber estar no lugar certo na hora certa é uma tática muito útil, por exemplo, quando se trata de almoçar em um restaurante que serve comida em bufê. Bufê a quilo, bufê livre, tanto faz. A questão é que, se você está com aquele desejo enorme de aproveitar sua estada na Capital para matar a saudade daquele tradicional bufê livre de comida chinesa, e está com tempo para chegar bem cedo ao restaurante, escolher uma mesa e passar a degustar as delícias que o esperam, em especial os camarões fritos, o ideal é saber organizar-se e estar no lugar certo (o dito restaurante) na hora certa (já na abertura dos trabalhos restaurantais). Pensando assim, lá foi o cronista mundano adentrar a porta do estabelecimento gastronômico às onze e meia da manhã, raciocinando em termos serranos e dando com o nariz no bufê ainda servido só pela metade. Mas ao menos, já havia uma bandejinha com os ditos camarões fritos, para servir de tira-gosto.
Escolheu o cronista mundano uma mesa junto à janela, no extremo oposto ao bufê, o restaurante ainda vazio, e pediu um aperitivo, porque hoje a coisa iria ser boa. Não percebeu a chegada de um grupo de quatro pessoas que logo se posicionou em uma mesa bem do ladinho do bufê. Em comum com o cronista mundano, tinham eles a fissura pelos camarões fritos, que passaram a capturar na íntegra assim que vinham da cozinha para a bandejinha no bufê. E quem disse que o cronista conseguiu abocanhar um deles sequer? Sentado longe, não tinha como visualizar a chegada dos petiscos e, mesmo que o fizesse, não teria tempo de sair da mesa e ultrapassar a agilidade dos quatro camaradas, que amealhavam toda a camaronada.

Mesmo estando no lugar certo na hora certa, o cronista escolheu a tática errada. Ao menos, estava lá na hora certa para obter inspiração e salvar a crônica, proporcionando uma reflexão sobre estratégia. Ou sobre a falta dela.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de novembro de 2015)

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Musas flanam na praça

Eu, por exemplo, preciso delas seis dias por semana, quatro semanas por mês, onze meses por ano (onze, e não doze, afinal, cronista mundano também tira férias). Invoco a graça de receber o hálito doce de seus poderes, a verter sobre meu cérebro, minhas sensações e sensibilidades, aguçando minha pretensa capacidade de identificar as coisas do mundo e da vida e retratá-las em crônicas por meio do manejo da arte da escrita.
Quando elas estão de bom humor e de bem comigo, são generosas e, aí, consigo fazê-lo bem (raras são essas vezes, o que, a bem da verdade, é bom, pois que não banaliza o conjunto da obra). Quando estão distantes, centradas nelas mesmas, alheias às banalidades das necessidades dos seres humanos, elas me esquecem, abandonam-me à própria sorte. E aí, eu, que dessas coisas de sorte manjo pouco, preciso usar de minhas próprias (parcas) capacidades para fazer o feijão-com-arroz que a muito custo ajuda a manter a qualidade minimamente acima da linha d´água, evitando o afogamento do cronista no amplo e imenso mar da mediocridade, que tanto aterroriza aqueles que dependem da inspiração para ganhar seu sustento. E para que haja inspiração, é preciso saber agradar às musas, invocá-las com respeito, tratá-las com dignidade, fazer-se à altura das benesses delas, o que não é fácil, ó meros mortais, nada fácil.

Pois é sobre isso, sobre musas, sobre musas de verdade e sobre musas de papel, sobre inspirações e sobre processos criativos que entraram para a história da literatura universal que tratará o Órbita Literária especial previsto para esta segunda-feira, a partir das 20h em plena Praça Dante Alighieri. Movido pela recente inauguração da estátua de Beatriz, a musa inspiradora do poeta Dante Alighieri, junto ao busto deste na praça, o Órbita convida a comunidade a assistir ao bate-papo temático que historicamente sairá desta vez dos domínios da Livraria e Café Do Arco da Velha (tradicional cenário dos encontros culturais das segundas-feiras à noite, para onde, aliás, será transferido o happening caso as musas resolvam chover) para ganhar o ar livre da praça sob a luz das estrelas. O andamento dos trabalhos estará a cargo deste cronista que vos escreve, juntamente com os escritores Uili Bergamin, Tiago Marcon e Lúcio Sareta, com a participação do convidado especial José Clemente Pozenato. Tudo de graça. Musos e musas são todos benvindos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de novembro de 2015)

sábado, 14 de novembro de 2015

Ao volante da História

Parece que não tem mesmo volta: em termos de trânsito, o que o futuro nos reserva são os veículos que dirigem sozinhos. A tecnologia necessária para a produção de automóveis que dispensam a ação dos motoristas humanos ao volante já existe. Porém, os empecilhos para sua imediata implantação são os de sempre: alto custo e falta de infraestrutura adequada que permita a iteração segura do carro-robô com o ambiente (leia-se as estradas, as ruas, a sinalização, essas coisas).
Mesmo assim, fiquei extasiado dia desses, lendo uma extensa reportagem sobre o assunto, focada nos testes reais que empresas, universidades e montadoras andam realizando nesse sentido ao redor do mundo. Parecia obra de ficção-científica, mas, como sabe-se muito bem desde Leonardo da Vinci e de Jules Verne, o sonho é o primeiro passo para a concretização de maravilhas. Ao que tudo indica, nossos netos e bisnetos vivenciarão experiências bem mais interessantes do que as nossas ao volante dos veículos que os aguardam no futuro próximo. Vai ser possível simplesmente entrar no carro, ordenar ao computador de bordo o destino e, ao longo do trajeto, ocupar os olhos, as mãos, os pés e a mente em atividades diversas como ler um livro (livro, no futuro?), assistir a um filme, pintar as unhas e retocar a maquiagem (sim, eu também penso nelas), preparar uma palestra, trocar as fraldas do bebê, tirar um cochilo. Muitos fazem essas coisas hoje em dia ao volante, infelizmente, mas não deveriam. Ainda não estamos no futuro. Nem nós, nem nossos veículos, nem nossa (dita) consciência cidadã. Mas o amanhã bate à porta, como sempre, e não engata marcha-a-ré.

Tomara que, junto com essa tecnologia, consiga-se também varrer para o passado a sucessão de tristes notícias referentes à carnificina do trânsito, decorrente da direção irresponsável dos motoristas, das más-condições das estradas, das más-condições dos veículos, dos descaminhos e malversações das verbas públicas, essas coisas todas que, pelo jeito, não há futuro capaz de dar fim, infelizmente. Quem viver para ver, corre o rico de testemunhar uma realidade brilhante dessas em plena ação nos países desenvolvidos enquanto que, aqui, insistiremos em nos dedicar ao subdesenvolvimento contumaz, asfaltado pela cultura do jeitinho e do cada um por si, atolados perenemente na contramão da História. Veremos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de novembro de 2015)

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Com a mão no trevo

Quem tem medo do Lobo Mau? Eu tinha, quando escutava os disquinhos (de vinil, a agulha beijando os sulcos no toca-discos da sala) com as historinhas de Walt Disney, lá pelos cinco ano de idade. E quem tem medo do Bicho-Papão? Eu tinha, com menos idade ainda, com a certeza de que ele habitava o infinito espaço vazio existente embaixo da minha cama, à noite. E de passar debaixo de uma escada? Eu tinha, porque dava azar. Por isso, nunca passei. Acho que nunca tive azar.
De gato preto nunca tive medo, pois sempre gostei de gatos e de bichos em geral. Até tive um gato preto de estimação, um dos mais inteligentes que já vi até hoje. Dava-me muita sorte. A sorte da amizade genuína, por exemplo. Foi na mesma época em que era comum nós, a gurizada, quando reunidos, especialmente nas festas de família, sairmos às voltas, ao ar livre, à procura de trevos de quatro folhas. Porque trevos de quatro folhas eram raros e davam sorte. Muita sorte. O personagem Gastão, primo do Pato Donald, era muito sortudo nas histórias em quadrinhos, porque possuía e encontrava trevos de quatro folhas. Eu queria ter a sorte do Gastão, por isso, procurava trevos de quatro folhas com muito afinco. Só encontrei de três folhas, e me sinto, por isso, um sujeito carregado com 75% de sorte, o que me parece um índice bem significativo e suficiente para enfrentar a vida.
Esses elementos inocentemente supersticiosos compunham o imaginário divertido de uma época que se assenta no passado há não muito tempo, e que acabou se perdendo. Hoje ninguém tem medo de gato preto, de Bicho-Papão ou tenta encontrar trevos de quatro folhas. Assim como pouca atenção se dá agora às Festas de São João (saíamos de carro em família em junho para observar as fogueiras) e às traquinagens de primeiro de abril (afinal, agora celebra-se o Halloween, obedecendo aos ditames culturais da matriz norte-americana). Criança não vai mais para a cama às nove horas da noite e nunca mais vi calçadas riscadas a giz ou pedra para o jogo da amarelinha.
Os tempos são outros, o mundo anda para a frente, e a nostalgia faz parte do pacote intangível do processo de amadurecer. Mesmo assim, não faz mal avisar, obedecendo aos ditames das responsabilidades de um cronista diário mundano: hoje é sexta-feira 13! Tens um trevinho de quatro folhas aí para emprestar?

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de novembro de 2015)

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Sinfonia emplumada

Eu até então não havia me dado conta, mas resido em uma região da cidade habitada por muitos, mas muitos passarinhos. E eles são de espécies variadas, a julgar pela multiplicidade de pios que me chegam aos ouvidos. Convivem, pelo visto, muito bem com a diversidade reinante dentro de seu grupo, diferentemente de outros seres ditos até mais evoluídos do que eles. Ah, e também acordam cedo. Muito cedo.
Para ser mais exato, os passarinhos que residem no entorno de minha vizinhança são seres madrugadores. Acordam bem antes do nascer do sol e isso que, pelo que me consta, não possuem relógios e dão de asas para essa coisa de horário de verão. Eles seguem vivendo suas vidas regidos pelo horário “deveria” mesmo, e não pelo de verão, ou seja, acordam às cinco da manhã pelo horário de verão, mas deveria ser quatro. Quando eu disse que eram madrugadores, eu não estava brincando. Constatei isso madrugada dessas, e fiquei ouvindo-os e pensando, porque uma coisa que faz a gente enfileirar pensamentos suaves é quando raramente nos dedicamos a escutar a algazarra dos passarinhos, ao invés de deixarmos passar batido esse som tão típico da existência. Experimente.
Eram cinco da manhã pelo horário de verão (deveriam ser quatro) e acordei com a algazarra da passarada do lado de fora. Muita algazarra, proporcionada por cantos e piados sobrepostos, todos falando ao mesmo tempo. Imaginei que estivessem em um ponto de ônibus indo para o trabalho e colocando animadamente as conversas em dia. Chovera muito no dia anterior, mas agora o tempo firmava e isso parecia deixá-los redobradamente ativos (muito por fazer depois do recolhimento forçado pela chuva, suponho). Aquilo durou uns quinze minutos e depois foi amenizando, creio que com a passagem dos ônibus que os foram recolhendo em bandos. Às seis da manhã o silêncio absoluto já voltava a reinar e eu retomava minha última hora e meia de sono.

Isso até ser reacordado por um galo que se botou a anunciar a chegada do sol por volta de seis e meia. Constatei que nenhum dos passarinhos madrugadores precisa assinar os emplumados serviços de despertar fornecidos pelo dito galo tardio (para eles). Já eu, sim. Pulei da cama, escovei o bico e fui à luta, piar estas mal-digitadas, levemente tranquilizado por saber que, apesar de tudo, o mundo ainda reserva espaço para sabiás, pardais, tico-ticos, galos e afins. Deve haver um bom sinal nisso.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de novembro de 2015)

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Às vistas da musa



Há algo mais poético do que proporcionar a presença da musa inspiradora ao ambiente físico do poeta a quem ela inspira? Há gesto mais sublime, mais elevado, mais doce? Ainda mais quando ato de tamanha magnitude põe fim a uma solidão que já começava a entrar em um segundo longo século, ano após ano o poeta em questão lançando ao horizonte seu olhar duro e frio de pedra, carrancudo, lábios crispados, os olhos afundados sob o peso de um cenho esculpido em bronze, e aqui não se trata de metáfora, como já adivinharam quase todos os que passeiam por estas linhas. Pois que, então, um ato de poesia marcou a praça central de Caxias do Sul no alvorecer desta semana.
 Desde a última segunda-feira, o busto do poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321), instalado desde 1914 na praça para a qual ele empresta o nome, ganhou a companhia de sua musa inspiradora Beatriz, estátua em tamanho natural esculpida pela artista plástica Dilva Conte. Agora Beatriz está lá, sentada em um dos bancos da praça, ao alcance do olhar de Dante, com seus traços doces e suaves a trazer o consolo da presença e a aliviar o olhar duro e rígido que o poeta vem lançando sobre os fatos e as gentes que ao longo de mais de um século transitam ao seu redor, no ponto mais central da chamada Pérola das Colônias.
Uma vez que aqui neste espaço costumamos dar crédito ao poder dos poetas, é natural que lembremos, num momento tão significativo como esse, das palavras de outro poeta, o português Fernando Pessoa (1888 -1935), quando ele afirma que “tudo é símbolo e analogia”. E se tudo possui mesmo carga alegórica, há de se refletir sobre o que pode significar, a partir de agora, a presença da suave e doce e bela Beatriz sentada em um dos bancos da praça principal de nossa cidade, cem anos e mais um ano depois de aquela área permanecer sob o domínio exclusivo do olhar inquisidor, duro e frio do Dante solitário. No mínimo, há de se supor que tudo aquilo que a partir de agora passar pelo crivo da observação pertinaz de Dante, empertigado em busto no alto de sua base, passará também pela avaliação da doce Beatriz, sentada de corpo inteiro no banco que lhe cabe.

No mínimo, passaremos a contar com mais de um ponto de vista, o que, por si só, já será um ganho extraordinário. Que Beatriz na praça, ao lado de Dante, possa ser símbolo e analogia de bons agouros.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de novembro de 2015)

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Gansos na pista

Costumamos afirmar que, para combater e driblar a crise, precisamos usar a criatividade, precisamos ser ousados e imaginativos. É o que aprendemos acompanhando as opiniões de editores e colunistas de Economia nos vídeos dos sites e nas páginas que produzem nos jornais (e eu leio essas páginas e assisto a esses vídeos, acreditem). Existe até um bordãozinho impresso que alguns estabelecimentos pregam nas paredes de seus negócios, nos quais arrancam a letra “s” da palavra “crise” para formar a palavra “crie”, o que, por si só, já é muitíssimo criativo, admitam. Mas tudo tem um limite, até mesmo a criatividade em tempos de crise precisa seguir certos padrões de lógica e bom senso, e é muito bom que seja assim porque, se assim não fosse, não haveria crônica.
Esse dito limite andou sendo ultrapassado esses dias, por exemplo, lá no outro lado do mundo, mais precisamente na província de Hubei (ah, tá), na China. O protagonista foi um chinês (claro) criador de gansos que, vendo-se num aperto financeiro terrível, desprovido de grana para fretar um caminhão, mas precisando urgentemente transportar 1,3 mil (isso mesmo, mil e trezentos) gansos de um lado para o outro, não pensou duas vezes em meter-se a pé na estrada conduzindo por terra a gansaiada toda, em uma rodovia movimentadíssima. As fotos e o vídeo estão na internet, para provar, e a cena é incrível: mil e trezentos gansinhos andando ordenadamente em um lado da rodovia enquanto os veículos cruzam a mil pelo outro lado.
A polícia rodoviária foi chamada para colocar ordem naquilo e evitar que houvesse um atropelamento de gansos, o que seria uma pena (muitas penas, na verdade, muitíssimas penas), colocando cones na pista e ajudando o criador de gansos a levar seus animais ao destino, incólumes. Afinal, ninguém queria ver ao vivo ganso virar patê no asfalto. Tudo indica que a história acabou bem para os 1.301 indivíduos envolvidos (os gansos e o criador), mas, convenhamos, o chinês aí confundiu criatividade e ousadia com absoluta falta de noção ao arriscar os pescoços dos gansos e dos motoristas (apesar de chamar a atenção a disciplina dos gansos, o que ainda muito me intriga).

Moral da crônica: inércia é ruim; criatividade é bom; bom senso é melhor ainda. E patê de ganso só é bom devidamente enlatado.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de novembro de 2015)

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

A precaução da ameba

Uma vez que não somos amebas e nem ratos, mas, sim, seres humanos, sabemos que a condição de nossa existência não rima com a pusilanimidade (arrasta o Aurélio para a sala ou googleia a palavra e, depois, seguimos adiante, porque também não estou aqui para facilitar a vida de ninguém, e eita que começo a semana metendo dentro as portas!). Pois então, não somos pusilânimes, conforme acabamos de compreender. E se pusilânimes não somos, é preciso abrir espaço em nossas vidas para a ousadia e a experimentação, porque só não ousa e não experimenta quem é ameba ou rato, e isso que rato, às vezes, vivencia experiências interessantes dentro de labirintos de laboratório.
Mas também tem uma coisa, e é preciso que se diga para evitar o aparecimento da soberba, esse mal que assola a todos os que vão dos oito aos 80, pulando da antiga pusilanimidade para a adoção do nariz empinado, o que não faz bem para a saúde, haja vista a profusão de desníveis e buracos em nossas calçadas. Experimentar e ousar é preciso, sim, mas reza a cartilha do bom senso que tenhamos sempre à mão um plano B para o caso da ousadia não dar certo. Paralelo a isso, é preciso também sabermos lidar maduramente com as frustrações, e é aí que a porca pode torcer o rabo.
Hora do exemplo para elucidar a tese. Vamos a ele. Final de semana este próximo passado, anunciei em casa, em alto e bom som, que o jantar ficaria por minha conta no sábado, e ela (a esposa, naturalmente) que fosse para a sala ler, assistir tevê, navegar na internet, que a coisa era comigo. Tive de driblar os protestos dela, no sentido de evitar minha trabalheira e jantarmos as sobras do almoço, requentadas, mas não houve jeito, bati pé e teimei em experimentar duas novas receitas: jantar e sobremesa. Comecei os trabalhos às quatro da tarde e só terminei às oito, depois de sujar todas as louças da casa. Chamei-a para jantar e tudo estava uma perfeita droga. Comida ruim, seguida de sobremesa sofrível. Perdi tempo, fiz sujeira, gastei ingredientes, comemos mal e tivemos de requentar o almoço, a fim de não passarmos fome.

Moral da história: panela velha é que faz comida boa. A panela velha era o plano B.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de novembro de 2015)

sábado, 7 de novembro de 2015

Pedras vão rolar, tchê!

Agora parece que rola mesmo. Foi confirmado esta semana o tão esperado show da banda britânica Rolling Stones em Porto Alegre, previsto para sacudir o gramado do Estádio Beira-Rio no dia 2 de março do ano que vem. Tirando o meu aniversário e um casamento, é o primeiro compromisso que bloqueio na agenda para 2016. Não tem como perder. Eu sei que não se pode ter sempre tudo o que se quer, mas quando o sal da Terra lhe é oferecido, não dá para ignorar a chance de obter um pouco de satisfação. E eu tento, e eu tento, mas eu tento.
Os Rolling Stones, representados especialmente pela presença dos três integrantes remanescentes da formação original (Mick Jagger, Keith Richards e Charlie Watts), significam muito mais do que a mais longeva banda de rock em atividade no mundo (surgiram em 1962), autora de dezenas de sucessos clássicos do gênero. Os Stones personificam a essência do rock´n´roll tanto nas composições quanto no comportamento de seus membros: a celebração da juventude pelo seu viés mais positivo. Que viés é esse? Ora, justamente aquele que demonstra e comprova que “ser” jovem, “sentir-se” jovem, é uma questão que definitivamente nada tem a ver com a data de nascimento registrada na carteira de identidade.
Porque iremos a Porto Alegre no dia 2 de março de 2016 para assistir, sim, a um espetáculo histórico, mas também para sermos levados às nuvens por meio de uma arte musical protagonizada ao vivo por um grupo de artistas cuja média de idade gira em torno dos setenta anos. Quando eu era criança, décadas atrás, fui à festa de aniversário de meu avô, quando ele completava 60 anos, e eu fiquei, na época, pensando que ele deveria ser muito velho. Hoje eu estou às portas dos meus 50 anos, distante apenas dez daqueles 60 de meu avô, e não me sinto nada velho. Tanto que irei ao show de rock dos Stones em Porto Alegre, e pretendo pular bastante.

Esse é um dos legados mais significativos que cenário do rock deixa à civilização: o conceito de que você pode ser um jovem de 70 anos, cheio de energia e vitalidade, ou um velho de 20, abastecido de rancores e frustrações. A escolha sempre é de cada um, mas, como diz Bob Dylan em uma de suas músicas, “que você possa permanecer para sempre jovem”. Afinal de contas, isso é apenas rock and roll, mas eu gosto.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de novembro de 2015)

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Recomendo rir

Eu não sei se é verdade, se é oficial ou não, mas alguns sites e alguns almanaques juram de folhas juntas que hoje, 6 de novembro, é o Dia Nacional do Riso. Não tenho conhecimento se algum deputado andou encaminhando projeto de lei nesse sentido algum tempo atrás, o que não seria de espantar, apesar de que ultimamente as ações de nossos nobres parlamentares nos têm feito mesmo é chorar. De qualquer forma, a proposta deste dia é darmos uma atençãozinha a esse ato tão característico dos seres humanos e das hienas, que, segundo dizem, detém até poderes curativos. O riso.
Meu avô paterno e meu avô materno adoravam rir e, mais do que isso, de fazer rir, pois eram grandes colecionadores e contadores de piadas. Bastava encontrá-los que lá vinha uma piada, um chiste, um trocadilho. As piadas já conhecíamos de cor, mas mesmo assim sempre ríamos, afinal, o que valia era apreciar a graça e o entusiasmo com que as contavam, imbuídos da melhor das intenções, que era a de nos fazer rir, compartilhando conosco um pouco de leveza e de desprendimento, afinal sisudez demais faz mal para o fígado. Meus antepassados estavam convictos da verdade contida na máxima de que “rir é o melhor remédio”, conforme afirmava o título de uma seção fixa e muito popular nos anos1960 e 1970, incluída nas páginas de “Seleções de Reader´s Digest”, publicação que não podia faltar nos lares brasileiros de norte a sul do país e da qual extraíam – meus avôs – a maioria das piadas que contavam.
Anos mais tarde, o pensador e escritor italiano Umberto Eco me ensinou, ao ler as páginas de seu afamado “O Nome da Rosa”, que o riso já vivera momentos de opressão nos antigos mosteiros medievais, onde era considerado uma blasfêmia diabólica, inibido e punido até mesmo com a morte. Felizmente, hoje sabemos que a alegria, que conduz ao riso, é atitude com fortes poderes terapêuticos, comprovados cientificamente. Não é para menos que atores voluntários adotam a prática de visitar hospitais levando humor e graça em forma de pequenas esquetes aos pacientes, a fim de aliviar os doentes dos males que também repercutem em seus espíritos.

Se de fato rir é o melhor remédio, também não sei. Mas até hoje não conheci contraindicações e venho tentando usar sem muita moderação, e não somente no dia dedicado a ele. Vamos ver no que vai dar...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de outubro de 2015)

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Há de haver ginga

Diga lá: quem nunca construiu dois edifícios no Leblon ou adquiriu uma casa em Copacabana? Ora, basta ter mais de 30 anos de idade para já tê-lo feito, pelo menos, na infância e adolescência, durante alguma rodada de Banco Imobiliário, uma das maiores vedetes de todos os tempos entre os jogos de tabuleiro, em boa parte do mundo. Eu, que tenho bem mais do que 30 anos, acumulo várias horas jogando dados e manipulando cartas de vários tipos de jogos, entre eles, o famoso Banco Imobiliário, aniversariante desta quinta-feira, 5 de novembro.
Pois é, também os jogos de tabuleiro fazem aniversário, veja só a senhora, tão acostumada a jogar canastra, pife e paciência com baralho de cartas ao invés dos simulacros de computador, não é mesmo, madame? Não sabia? Nem sabia eu, mas fiquei sabendo ao fuçar aqui e acolá nos meus alfarrábios, nos impressos e também nos virtuais, pois que também sou um ser que evolui, a exemplo das ostras e dos platelmintos. E fiquei sabendo disto: que hoje comemora-se os 80 anos da criação do Banco Imobiliário, também conhecido como Monopólio (ou Monopoly, no original em inglês). Oito décadas de existência do joguinho e ainda não consegui comprar nem um quarto-e-sala no Leblon, exceto de brincadeira, mas deixa isso pra lá, não vem ao caso.
Pois a senhora fique sabendo que o jogo foi criado em 1935 por um norte-americano (sempre eles) chamado Charles Darrow (1889-1967). Ele era vendedor de sistemas de aquecimento na Pensilvânia, mas estava desempregado e deu na telha de criar o joguinho e publicá-lo. Aí aconteceu com ele aquilo que volta e meia acontece com os norte-americanos que andam desempregados e colocam uma ideia maluca em prática: a coisa deu certo e ele, no final da história, ficou riquíssimo, sem nunca ter vendido nem comprado nada no Leblon ou em Copacabana.

E o que é que a senhora tem a ver com tudo isso? Bom, pra falar a verdade, nem eu sei, afinal, não é verdade que todo mundo já jogou Banco Imobiliário alguma vez na vida. Menos ainda são os que compraram e venderam imóveis no Leblon e em Copacabana. Já os que, como Charles Darrow, ficaram ricos criando jogos de tabuleiro, são exceções maiores ainda. E os que se preocupam com essas coisas e procuram dar sentido a elas, são em número ainda menor, incluindo a senhora e eu. Pensemos, então, em outra coisa, e passe a vez de jogar.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de novembro de 2015)

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Há de haver ginga

A sensação dos dias de feriado passados no interior na casa dos sogros, entre a turma de adultos nostálgicos e de crianças curiosas, era para ter sido aquele bambolê que surgiu pelas mãos de um cunhado, preocupado em proporcionar novas experiências aos pequenos da família. Era para ter sido, acabou não sendo e, por isso mesmo, de certa forma, houve, sim, certa sensação, mas às avessas. De que jeito? Bem, como já é de lei, nos parágrafos a seguir, explico-me.
O que aconteceu é que alguns pares de olhinhos pertencentes aos pedacinhos de gente da família brilharam ao serem de repente apresentados àquele aro de plástico que prometia muita diversão assim que devidamente demonstrado em seu uso por algum de nós ali reunidos. “Olha só, bambolê, bambolê!”, exclamamos nós, os já passados em anos, todos recordando com entusiasmo dos seus tempos de adolescência, quando os bambolês apareciam em profusão na hora do recreio e os mais habilidosos proporcionavam verdadeiros shows de rebolado. As crianças davam pulinhos de ansiedade, desejosas de verem o que aqueles novos brinquedos seriam capazes de gerar em termos de diversão, e lá foi o primeiro de nós, disposto a demonstrar o que e como deveriam fazer para que o bambolê funcionasse.
O show do primeiro adulto não durou mais do que uma volta do bambolê ao redor da cintura, até, em dois segundos, cair ao solo. O show do segundo adulto durou menos ainda. O do terceiro, sequer bamboleou, indo o aro rumar direto da cintura aos pés em uma fração de segundo. Eu, que tenho a destreza de uma viga de concreto, sequer ousei tentar e passei a minha vez para o seguinte, que também não se saiu bem. Ninguém conseguiu bambolear e, para que a magia não se perdesse, fomos lá fora jogar os bambolês uns para os outros, até cansarmos daquilo. Mas fiquei encasquetado.

Mais tarde, sozinho, fui analisar o bambolê recém-adquirido, em busca de alguma falha em sua estrutura. Porém, estava tudo em ordem: a circunferência parecia correta, o material empregado possuía firmeza e leveza em doses adequadas, o projeto era aprovável. O erro, percebi, não residia neles, mas, sim, nas cinturas dos usuários. Em algum momento depois das nossas adolescências, havíamos perdido a ginga. E sem ginga, amigo leitor, estimada leitora, não há quem rebole nesse mundo!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de novembro de 2015)

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Quem muito escolhe...

Eu ia começar esta crônica com o já batido jargão “é batata”, mas preferi não fazê-lo para não soar repetitivo (o que seria catastrófico) ou desinspirado (o que seria pior do que catastrófico... hecatômbico!?) frente aos meus fiéis e perseverantes leitores, aos quais sempre procuro causar uma boa impressão, em se tratando de letras primordialmente impressas. Mas mesmo não o fazendo, não tem como camuflar, pois que é batata, isso lá é, sim, fazer o quê? É batata, e ponto!
Sim, madame, já vou explicar, a senhora sabe que eu sempre acabo explicando (mesmo que, nem sempre, convencendo, mas isso faz parte do jogo e é o que, no final das contas, confere a graça para a coisa toda). O que é batata é que sempre, invariavelmente, via de regra e todas as vezes, quem faz a melhor escolha é ela. Como assim, “ela quem”? A senhora sabe: ela! Ela, a minha esposa! Quem mais seria? Sim, ela é quem detém o poder de sair-se melhor quando a questão que se coloca à nossa frente é escolher. E lá vai ela, e cá fico eu, a ver navios e a remoer minha invariável e recorrente incapacidade de escolha. Batata pura!
Basta chegar o cardápio no restaurante, por exemplo, que pimba! Ela escolhe a opção do jantar empratado mais saborosa. Mais saborosa do que a minha escolha, lógico. Fico lá eu, remando com o garfo no meu espaguete à bolonhesa e ela se lambuzando com o risoto ao funghi que espertamente pediu! Eu adoro espaguete à bolonhesa, mas o risoto ao funghi dela me olha com uma cara tão saborosa... E na lancheria! O xis-completo dela obviamente será superior ao meu xis-filé de sempre! Na cafeteria, o capuccino dela, vê-se de longe, é notadamente superior ao meu expresso duplo. No boteco, o suco de frutas vermelhas dela parece mil vezes mais encantador do que o meu de uva branca (ou branco?). A sobremesa que ela escolhe é melhor do que a minha. A entrada, também. E o primeiro prato, e o segundo, e a guarnição.

Como é, madame? A senhora sugere que eu peça sempre o mesmo que ela? Já tentei, amiga, já tentei. Não adianta, acredite, o prato dela sempre vem melhor do que o meu. Se pedimos sopa de capeletti, os capelettis do prato dela estão mais saborosos do que os que nadam no meu. É assim, não tem jeito. A única coisa que me redime e consola é saber que, pelo menos, ela escolheu a mim...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de novembro de 2015)

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Verdade vital

A revelação pode vir a ser dura para algumas pessoas, em especial aquelas teimosamente centradas em si mesmas, mas a verdade precisa ser dita e lembrada com frequência: o mundo não surgiu a partir do nosso nascimento. Você e eu não somos as pessoas mais incríveis e fundamentais de todo o universo, não, lamento. O mundo, é preciso que se diga, existe há bem mais tempo do que qualquer um de nós, e não foi criado para servir aos seus desejos e propósitos, nem aos meus. Pois é, lamento de novo, mas é isso aí. Já estamos em idade de saber das coisas e, convenhamos, depois daquele choque relativo à questão do Papai Noel, nada mais pode nos amargurar tanto, não é mesmo? Criamos casca grossa.
E essa grossa casca se faz necessária ao longo de toda a nossa existência, sempre tão curta e efêmera, para enfrentarmos com dignidade e maturidade as situações que a vida real nos apresenta. Uma delas, e das mais importantes, é a compreensão de que não surgimos do nada, vindos ao mundo como se fôssemos um marco zero para a História da humanidade. Não, nada disso. Somos, isso sim, cada um de nós, frutos diretos de um mundo que já existia antes de nossa chegada chorosa, desdentados e carecas, abrindo espaço e dando início à nossa trajetória individual. Cabe a nós desenvolver a capacidade de aprender com os fatos do passado e com as experiências dos que viram antes de nós para enfrentar esse mesmo desafio de posicionar-se humanamente frente à vida e dar a ela (à vida de cada um) um sentido que nos dignifique perante nossos próprios espelhos.
Muitos já fizeram isso antes de nós, e é exatamente por isso que houve espaço para que surgíssemos. É aos que vieram antes que devemos agradecer por terem se esforçado em construir, tijolo por tijolo, uma civilização para habitarmos e por nos deixarem um legado de erros e acertos que nos vão servir de exemplo e amparo ao longo de cada um de nossos próprios dias. Daí a necessidade de homenagearmos a memória dos que nos antecederam e que já terminaram suas trajetórias no tablado da existência, desempenhando os papéis que lhes cabiam na peça da vida.

Mas não existem atores principais. Somos todos figurantes nessa complexa peça escrita em conjunto e em tempo real por cada um de nós, e o papel que nos cabe, esse, sim, só pode ser desempenhado por nós mesmos, e por ninguém mais. Se queremos aplausos no final, é bom aprendermos com aqueles cujas memórias hoje aplaudimos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de novembro de 2015)