quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Gu-gu dá-dá be-beatles!

(Em homenagem à vinda de Paul McCartney a Porto Alegre em 7 de novembro, reproduzo a primeira de três crônicas-Beatle que publiquei no site www.thebeatles.com.br)

A primeira música dos Beatles que eu escutei na minha vida, tenho certeza, foi “Drive My Car”, e não foi por causa dela que eu me tornei um beatlemaníaco, mas foi justamente por causa dela que eu me tornei um beatlemaníaco, se é que dá para entender. Não, acho não dá para entender, então por isso é que eu explico, para quem porventura quiser saber.
Aconteceu lá nos idos de 1966 na Rua dos Viajantes, na casa que meus jovens pais haviam adquirido nas cercanias do centro da simpática cidade de Ijuí, interior do Rio Grande do Sul. Região de terra vermelha, conhecida como tabatinga, e de calores escaldantes no verão e de frios arrepiantes no inverno, temperadíssima, moldando espíritos que se acostumavam a não se acostumar com nada, a começar pela falta de constância do tempo. Andava eu, naqueles dias, a chorar à larga e a espernear bastante, careca, banguela e pelado, fazendo jus e usufruindo de todos os direitos que reconhecia serem meus pelo fato de ser um bebê recém-nascido, e também por restar-me apenas isto a fazer frente às óbvias negativas de meu pai em me emprestar a chave do carro nas condições em que eu ainda me encontrava naquela fase da vida. Que fazer para acalmar a criança?
Simples: ligar a vitrola Telefunken puxando para trás o braço da agulha e fazendo assim rodar automaticamente o prato, pronto para receber bolachas de discos de vinil, cujo som se faria projetar pela sala a partir da única caixa mono instalada no canto ao lado da lareira. E dê-lhe Beatles a ecoar entre as quatro paredes, eu no colo sendo acalentado ora pelo pai, ora pela mãe, e acalmando-me junto à sucessão das faixas de Rubber Soul, disco lançado um ano antes e recém-chegado nas prateleiras das lojas Discolândia e Cifosom em Ijuí, para deleite dos jovens de vinte-e-poucos-anos daquela época, meus pais incluídos, e também meu padrinho que me deu este e outros bolachões de presente de batismo.
Duvido muito que eu pegasse no sono já na abertura do disco, com a guitarra fazendo o inconfundível solo que antecede os versos “Asked a girl what she wanted to be/ She said baby, can´t you see?”... Mas talvez eu já me acalmasse um pouco quando George empunhava a cítara na segunda faixa, para permitir John revelar que “I once had a girl, or should I say, she once had me”... Acho que abria os olhos e resmungava um pouco quando os vocais de John Paul e George começavam a se alternar em “You won`t see me”, e seguiam fazendo composições harmônicas inigualáveis já na abertura da quarta faixa, com “He´s a real nowhere man...”. O fato é que eu me acalmava, dormia, era acalentado ao som de Beatles com seu Rubber Soul e suas 14 faixas altamente recomendáveis para acalmar bebês, entre outras setecentas mil indicações.
O que aconteceu depois é outra história, cheia de idas e vindas, mas um autêntico beatlemaníaco nasceu ali, escutando, mesmo sem o saber, “Drive my car”, que não é, nem de longe, a minha preferida deles hoje. Mas tenho certeza de que era a de meus pais, 44 anos atrás, em noites quentes ou geladas em Ijuí, quando uma criança chorona tinha de ser acalentada antes que o refrão “cry, baby, cry” se tornasse indigesto.

domingo, 26 de setembro de 2010

Lance de mestre


Por volta dos 10 anos de idade, tomei a decisão de que deveria fazer algo para ficar inteligente. Burro como era, não tinha a menor ideia de que caminho trilhar para atingir meu objetivo. Compungido, meu avô prontificou-se a me ensinar a jogar xadrez, passatempo revestido por uma aura de intelectualidade profunda, conhecido como “o rei dos jogos e o jogo dos reis”, praticado por gente inteligente. Topei, aliciado pela promessa de poder saborear um refrigerante ao final de cada partida semanal, na casa do avô. Espertinho, ao menos, eu já era.
Após ensinar-me os movimentos das pedras (que era como chamávamos as peças, objetos palpáveis torneados em madeira, as bases revestidas com feltro, dispostas sobre um tabuleiro pesado, diferentemente das versões virtuais que hoje habitam as entranhas dos computadores), meu avô deu início a um torneio particular comigo que durou uns dois anos. De saída, prometeu-me que, quando eu conquistasse a minha primeira vitória sobre ele, eu receberia de presente um conjunto de peças e tabuleiro igual ao dele. Nham! Aquilo, sim, me motivou. Inteligente, meu avô.
Mas não éramos grandes jogadores. Mexíamos as peças, porém, nossa criatividade estratégica era limitada. Logo um aprendeu o estilo e as manhas do outro, e jogávamos sobre o eventual erro do adversário. Minhas notas em química e matemática não melhoraram muito a partir daquilo. Não me parecia que estivesse ficando mais inteligente.
Certa terça-feira, venci pela primeira vez. Já no final de semana seguinte, ganhei meu prometido conjunto composto por tabuleiro e caixa com elegantes peças de madeira. Havia esquecido da promessa do avô, mas ele não. Desde o início, ele jogara comigo sem me dar chances: “Já sabes as regras. Jogue por si”, dizia. No final das contas, a inteligência extrapolava o cenário da batalha no tabuleiro e habitava a essência dos nossos encontros, pois foi por meio de um ato inteligente mútuo que um avô estabeleceu um elo perene com um neto. Não melhorei minhas notas em matemática, mas aprendi que atos singelos têm potencial para gestar metáforas de vida que vão muito além de um xeque-mate.

(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24/09/2010)

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Admiráveis seres de um novo mundo


“Oh, maravilha! Que esplêndidas criaturas! Como é bela a espécie humana! Oh, admirável mundo novo, onde vive essa gente!”. A mais famosa sucessão de frases de espanto da literatura universal provém da pena de William Shakespeare, que as atribui à jovem Miranda, filha de Próspero, o duque de Milão, que 12 anos antes fora desterrado para uma ilha pelo irmão usurpador, na peça “Tempestade”. Miranda, aos 15 anos de idade, fica extasiada ao se deparar, pela primeira vez em sua jovem vida, com seres humanos diferentes das figuras de seu velho pai, Próspero, e do deformado escravo Caliban, até então os únicos habitantes humanos da ilha. Seus olhos brilham ao enxergar não apenas a tripulação de um barco, mas especialmente o belo e jovem príncipe Fernando. Um admirável mundo novo então se descortina a ela ao vislumbrar aquelas “esplêndidas criaturas”.
Na época em que a peça foi escrita, no início do século XVII, ou seja, exatamente 400 anos atrás (veio a público em 1611), a personagem Miranda era uma digna representante da figura submissa e alienada da mulher, tal qual a sociedade machista ocidental a formatou até meados do século passado (há bem pouco tempo, portanto). Não era necessário chegar ao extremo de viver em uma ilha perdida para que as mulheres da época de Shakespeare (e também a maioria daquelas dos tempos de nossos avós) se sentissem alienadas e coadjuvantes de um mundo eminentemente masculino, pautado pelas demandas decorrentes da visão machista de conduzir sobre o planeta a existência da espécie humana.
Como não há mesmo mal que dure para sempre (apesar de alguns deles delongarem-se mais do que às vezes estamos dispostos a tolerar), essa situação mudou bastante nas últimas décadas, especialmente a partir da segunda metade do século passado, com o início do movimento de libertação feminina. O paraíso ainda está longe de poder ser encontrado aqui na Terra, eu sei, mas é alentador perceber que muitas coisas evoluíram.
Hoje, sim, podemos afirmar que vivemos, finalmente, o limiar de um admirável mundo novo, e as esplêndidas criaturas que nele circulam, que o habitam e o fazem espantosamente dinâmico, interessante, pulsante, criativo e revitalizado são justamente as mulheres modernas, esses novíssimos seres que surgiram e vêm tomando forma desde que conquistaram o desejo e o direito de também protagonizarem a História, deixando para o passado o papel de submissas coadjuvantes. Tenho o privilégio e o orgulho de ser casado com uma mulher do nosso tempo, dessas que colaboram para construir e consolidar este admirável novo mundo: inteligente, sensível, profissional reconhecida, competente, batalhadora, leitora, proativa, bela e feminina. Não acho que ela me provoque sombra, pelo contrário: a atuação dela no mercado de trabalho, na sociedade, em família, na vida pública e particular, complementa e enriquece a minha própria existência. Não a temo: amo-a, admiro-a, incentivo-a e tenho orgulho de ser seu marido.
Nós, homens, não estamos totalmente perdidos. Se bem treinadinhos, somos capazes de reconhecer em nossas mulheres as parceiras igualitárias e complementares de nossas vidas, relegando para o passado as relações de poder discriminatórias e opressoras que sempre regeram a convivência entre os sexos. A ilha de Miranda começa a ficar mais enriquecida com a atuação harmônica entre os seres que a habitam, apesar das tempestades que certamente ainda moldam partes do cenário. Enredo que nem o gênio de Shakespeare foi capaz de tecer, mas, sim, a Vida.
(Texto publicado como colaboração especial no primeiro número da revista caxiense Afrodite, lançada em setembro de 2010)

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

"D" de Pesa"D"elo mesmo!


Série D? Sério? Vem cá, mas, existe isso, sempre existiu ou criaram agora? Quantos times participam? Como funciona? Então a série C não é o fundo do poço? Existe o alfabeto inteiro? Corre-se, agora, o risco de despencar para séries E, F, K, Y, Z? Como é possível instalar-se tanta escassez de futebol dentro de uma agremiação que já ostentou, merecidamente, o orgulho de figurar durante uma década inteira entre os integrantes da classe A do futebol nacional?
Pior é constatar a vertiginosidade da queda. Não bastou dar uma escorregadela, perder o equilíbrio e penar um aninho na série B, como ocorre anualmente com times repletos de tradição, orgulho e títulos. Acontece nas melhores famílias, dá-se a volta por cima, conjugam-se esforços e pronto, retorna-se ao topo já no ano seguinte ou, no pior das hipóteses, amargam-se dois ou mais alguns aninhos gramando por ali, até o retorno “para o local de onde nunca se deveria ter saído”. Mas isso de transformar a compreensível queda num tombo morro abaixo sem freio é feio. A continuar assim, corre-se o risco de o Alviverde ir fazer companhia aos mineiros chilenos ilhados no fundo do poço que eles próprios cavaram, a quase um quilômetro de baixitude.
É impossível, numa hora dessas, não evocar Alice no País das Maravilhas, que persegue o Coelho Branco, enfia-se numa toca e, quando vê, está dentro de um longo poço sem fundo e vai caindo, caindo, caindo... “Essa queda nunca teria fim?”, pergunta Alice. Quem lê a história percebe que o fim do poço é o mundo sem fronteiras da fantasia e da imaginação. Justamente o que parece estar faltando há anos para que o Juventude inverta o sentido do elevador que o conduz cada vez mais para baixo.
O que queremos, todos nós, caxienses de nascimento ou por adoção, é ver os símbolos da terra em que vivemos crescendo e representando com orgulho as nossas melhores qualidades. Não sei se abaixo da série D existe ainda alguma outra e espero não ser conduzido pelo Juventude a descobrir isso. Alice sabe que o País das Maravilhas tem o poder de rapidamente se transformar em pesadelo, mas sempre é tempo para despertar dele e retornar à superfície. Queremos ver você, Alviverde, subindo, subindo, subindo. De volta à luz. Essa fantasia precisa logo se transformar em realidade.
(Crônica especial publicada no Pioneiro em 20/09/2010)

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Nênia a um poeta e a um contista

Descobri tardiamente a poesia do padre Oscar Bertholdo, assim como tardiamente descubro muito do que há de bom na vida. Hipnotizaram-me os versos soprados à mão dele pela alma que lhe cabia, e comunguei com ele as sensibilidades que deitou pousar no volume batizado “Matrícula”, junto com outros então mancebos poetas que, com o tempo, tiveram chancelado o talento, igual ele.
De quebra, sem esperar, além do doce da poesia, ganhei de presente-surpresa a redescoberta de um pedaço de meu pai.
No ano que antecedeu à morte de meu pai, ele veio à Serra, ansioso por descobrir o resultado de um concurso literário do qual participara na condição de contista, em Farroupilha, o Concurso Regional de Poesias, Contos e Crônicas Oscar Bertholdo, então em sua primeira edição. Havia sido convidado pela comissão organizadora do evento para participar da solenidade de revelação dos vencedores e entrega dos prêmios, e estava confiante e exultante. Na “hora H”, coube-lhe o segundo lugar, um troféu e a frustração por não ter angariado os louros maiores e o prêmio em dinheiro.
Morreu meu pai alguns meses mais tarde e herdei eu o troféu, que ele esquecera a um canto entre seus pertences.
Hoje, ao palmilhar a delicada e profunda imersão que o poeta que empresta nome ao concurso faz na alma por meio de sua poesia, resgato e redimensiono o valor do segundo lugar que a obra de meu pai conquistou. Talvez, se ele tivesse, à época, conhecido o tamanho da arte de Bertholdo, poderia ter deitado um olhar mais carinhoso ao prêmio recebido e à própria arte de sua autoria que o troféu valorizava.
Um valor enobrece o outro e eu, em meio a isso tudo, valorizo minhas lembranças e alimento-as com poesia. Graças a almas como as que moveram homens como eles dois, cujos caminhos só se cruzam agora, nas encruzilhadas póstumas das recordações que trafegam pelos labirintos de minha memória.
PS 1 = Oscar Bertholdo nasceu em Nova Roma em 1935, então pertencente a Antônio Prado, e morreu assassinado, sem poesia, em Farroupilha em 1991. Era padre e poeta.
PS 2 = Meu pai nasceu em Ijuí em 1942 e morreu atropelado, sem poesia, em Ijuí em 2004. Era terapeuta naturista e contista.
PS 3 = Nênia, para facilitar a vida do leitor, é um canto fúnebre em homenagem a pessoas que partiram.
(Crônica publicada no jornal Informante, de Farroupilha, em 17/09/2010)

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

O Adão dá bom-dia

Você já deu “bom-dia” hoje? Ou está guardando para alguém que valha a pena, ou para algum momento solene? Se sim, você tem lá sua razão, pois um “bom-dia” vale ouro. Adão também pensa assim, mas é por isso mesmo que não os economiza.
Ele os distribui à larga, a todos os que chegam, a todos os que saem. É um esbanjador de bons augúrios. É um perdulário de civilidade. Gasta seu cumprimento sem parcimônia, como se o estoque lhe fosse inesgotável e em constante processo de reposição. E o é, de fato. Para a felicidade dele e de todos os que frequentam seu estabelecimento.
Adão tem um sorriso estampado nos lábios, uma genuína paixão por encontrar gente. Doa a todos as energias positivas que seu espírito parece gerar. Adão dá “bom-dia” em alto e bom som, transformando o cumprimento na principal música-ambiente do restaurante que pilota. Um “bom-dia” recebido assim na entrada se transfigura em brinde ofertado a cada cliente que vai ali comer a quilo, a maioria com tempo curto e fome larga.
Eles vêm e retornam porque a comida é boa, porque o atendimento da equipe é acolhedor, porque o ambiente é agradável. Muito disso, senão tudo, decorre diretamente do “bom-dia” do Adão. Para ele, não custa nada. Para quem recebe, vale muito. Mesmo que alguns ouvidos não escutem com a devida atenção, não há como a mais cimentada alma não ser tocada pela sonoridade do dito e pela verdade do desejo de que se tenha, pelo menos a partir dali, um dia que valha a pena ser vivido.
Descobri, após conversas ao pé do ouvido, que o fornecedor de “bons-dias” desobrigou Adão de qualquer espécie de pagamento pelo produto, desde que ele faça uso amplo da mercadoria. E ele cumpre à risca o contrato, diária e constantemente:
- Bom dia!
- Booooom diaaaaa!
- Bom diiiia!
E sempre junto um sorriso largo e sincero, e uma olhada nos olhos do interlocutor, para consolidar e personalizar a entrega.
Precisamos universalizar esse fornecedor de “bons-dias” que atende ao Adão, e com certa urgência, porque, do jeito como a coisa vai aí pelo mundo, tenho a impressão de que já tem gente querendo cobrar pela gentileza. Com o Adão, o produto ainda é de graça, abundante e sincero.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17/09/10)

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Uma reflexão trigueira

Publica-se em Caxias do Sul. Escreve-se e publica-se. Caxias do Sul possui uma feira de livros anual portentosa, repleta de (óbvio) livros, autores, debates e sessões de autógrafos. Há livrarias grandes em Caxias do Sul, e editoras de livros florescem aqui. Também existe há décadas um concurso anual literário que revela novos talentos e a prefeitura dispõe de dispositivos como a Lei de Incentivo à Cultura e o Financiarte para prover, com verbas públicas, a publicação de obras literárias aprovadas pelos critérios de seleção.
Espaço, portanto, para a prática da literatura, em Caxias do Sul, há. Não sei se há leitores em igual proporção, mas isso já é outra história. O fato é que nunca antes foi tão fácil levar ao conhecimento público aquilo que se forja em termos literários em Caxias do Sul como nos dias atuais. Isso é, em essência, e por princípio, bom, muito bom.
Já dizia Honoré de Balzac (escritor francês do século dezenove) que, para conseguir escrever bem, é preciso escrever muito. Pode-se interpretar essa frase de efeito sob duas óticas válidas e não-excludentes. Uma, é a de que só o exercício constante e contínuo da escrita é que conduz o escritor ao domínio da técnica narrativa e à conquista de um estilo admirável. Outra, é a de que, produzindo bastante e constantemente, acabaremos, em meio a todo o joio que geramos, inevitavelmente parindo aquelas exceções (os trigos) que de fato vão se configurar como literatura de qualidade. Os dois vieses, a meu ver, estão corretos.
O trigo que vai sobrar entre todo esse joio é a posteridade quem vai decidir, naturalmente. A grande promessa literária de hoje pode cair no esquecimento absoluto dentro de um par de anos, e aquele livro que passou batido por nossos olhos pode vir a ser o representante de nossa geração dentro de algumas décadas. Quem vai saber?
Mas sempre me inclino a pensar que as condições propícias para que o trigo surja e se manifeste decorrem da abundância do joio jorrando ao redor. Que haja joio! Recebamos o joio todo de braços abertos e sorrisos largos, para que em meio a ele tenhamos sazonalmente a surpresa agradável de vermos, uma ou outra vez, pousar em nossos colos um delicado e valioso raminho de trigo.
Ah, e que sejamos, ó Senhor das Letras, sempre capazes de identificar a identidade desses tão valiosos raminhos e não deixá-los secar solitários abandonados ao fundo das prateleiras das livrarias. Além dessa lucidez, dai-nos também, Senhor das Letras, a humildade e a sabedoria necessárias para acolhermos melhor os eventuais ramos que afobadamente arremessamos para o monte dos joios. Sempre pode haver pérolas inesperadas escondidas entre eles e, pior do que arremessar pérolas aos porcos é não sermos nós mesmos capazes de detectar pérolas em meio ao joio.

PÉROLAS NA PRAÇA
Falando em pérolas literárias, a Feira do Livro de Caxias do Sul já tem data: acontece de 1º a 17 de outubro, na Praça Dante Alighieri. Em sua 26ª edição, a Feira leva ao centro da cidade livreiros, livrarias, escritores e leitores, que comungam sua paixão pelos livros e pela leitura em debates, bate-papos, mesas-redondas, sessões de autógrafos, encontros e conversas informais, rodas de leitura e muito mais. Entre as barracas de livros e as bandejas de saldos, é possível encontrar muitas pérolas literárias ansiosas para serem levadas para a sua casa e lidas por você. Fique atento, organize-se e vá à praça fazer a feira... de livros. Este ano, tenho a honra de ser o patrono do evento, ao lado do homenageado Frei Aldo Colombo. Espero-os lá!
(Publicado na seção "Planeta Livro" da revista Acontece Sul, edição de setembro de 2010)

terça-feira, 14 de setembro de 2010

As Azedinhas II

Recebi da leitora Ana Araldi o seguinte relato, inspirado em minha crônica publicada no jornal Pioneiro em 10/09/10, intitulada "As Azedinhas". Ana revela possuir talento de cronista, e aqui vai seu texto, que ela gentilmente me permitiu reproduzir no blog:

"No dia 28 de agosto deste ano, estávamos indo a um velório em Veranópolis, eu, meu marido e minha irmã. Logo após atravessar a ponte do Rio das Antas, à direita, há um restaurante panorâmico. Paramos, mas não pudemos apreciar aquela exuberante paisagem, pois já estava escuro. Nos limitamos a entrar, tomar um café e, na saída, ao chegar no caixa, inesperadamente fui surpreendida por um vidro transparente cheio de balinhas açucaradas por fora e azedinhas por dentro, em forma de peixinhos.
Subitamente, me transportei para a minha infância. Que delícia aqueles peixinhos doces e azedinhos ao mesmo tempo, dando-nos uma sensação de prazer completo. As lembranças daqueles dias espiavam pelas frestas do momento presente. E riam, muito. Foi delicioso lembrar e reencontrar os peixinhos.
Em meio a estas sensações, não pude conter a surpresa acompanhada de uma exclamação sonora:
- Olhem só o que estou vendo, aquelas balinhas de quando éramos crianças, há quanto tempo eu não as via, ah!!!!! Os peixinhos!!
Foi quando, golpeado por um impulso de extrema infelicidade e inadequação, o homem do caixa retrucou:
- Pois é Dona, estas balinhas são do seu tempo.
Instintivamente, cravei nele um par de olhos, como flechas, velozes e certeiras.
- Alto lá, cara! Do NOSSO tempo.
E ele, completamente descomposto, fez a tréplica:
- Ah! sim, não, quer dizer, desculpa Dona, quer dizer, Senhora, desculpa de novo, digo, sim, do NOSSO tempo.
Fez-se um silêncio constrangedor, muito breve, porém demasiado longo para aquelas circunstâncias, principalmente para ele. Claro que eu estava brincando, mas ele não percebeu isso. Tratei logo de desfazer a cena. Ri.
Peguei as balinhas, quer dizer, os peixinhos, o troco e lhe desejei um sonoro “Boa Noite, Senhor”. Os peixinhos nadavam de um lado para outro da minha boca e nunca pareceram tão azedinhos quanto naquela noite. Seriam de fato as mesmas balinhas? O que realmente havia se modificado, as balinhas azedinhas ou eu? Ou ambas?
No dia seguinte, retornamos. Impossível não conectar-se com a natureza diante de tamanha exuberância que ladeia aquela estrada. Tudo era maravilhoso e eu estava maravilhada. Passamos em frente àquele restaurante e nem foi preciso parar, pois eu nem estava mesmo com vontade de balinhas, nem de peixinhos. Pacientemente, o rio percorria seu destino e os peixinhos do rio, nada açucarados, nem azedinhos passeavam pelas águas turvas e semoventes."

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

As azedinhas

(Balinhas são o objeto do desejo de dez entre dez velhinhos iguais a mim)


Tudo é relativo. Quer ver? Leia-me.
Passeava eu, despreocupado, por um empório que comercializa produtos gastronômicos atraentes, quando topei com um artigo que me teletransportou para a minha infância. Manuseei embevecido o potinho transparente que continha as saborosas balinhas de açúcar, azedinhas e coloridas, cortadas como se fossem minitubinhos com as laterais ornamentadas com desenhos das frutas às quais seus artificiais sabores remetem, e me vi criança.
A lembrança dessas balinhas tipo pedregulhos havia se evaporado de minha memória junto com as nuvens que devem guardar inesgotáveis registros de objetos, fatos e sensações que povoaram e moldaram os primeiros anos de minha existência. Não tive dúvidas: capturei uma embalagem daqueles artiguinhos que me catapultavam de volta ao passado e dirigi-me ao caixa, ali pilotado por uma moça de seus vinte e poucos anos de idade, sorridente e simpática.
Tão sorridente e tão simpática que entabulou conversa comigo enquanto o scanner lia a tarja com o código de barras, perguntando-me se aquelas balinhas eram de fato gostosas. “São, sim. Ao menos, pelo que eu me recorde, são. Elas me lembram a minha infância”, respondi, também todo simpático e sorridente. Ao que ela emendou: “Pois é, vários idosos vêm aqui e compram essas balinhas, dizendo a mesma coisa”. E assim foi-se balcão abaixo o sorriso simpático de meus lábios, e pesaram-me as cãs no exato instante em que meu cérebro traduziu as entrelinhas do que a simpática moçoila me dizia, a mim, o idoso a adquirir balinhas pré-históricas.
Cheguei em casa, abri a embalagem e contei todas as balinhas (típica atitude de velhinho): 32 cubinhos recheados de sabores da infância, a serem degustados um a um enquanto recordo os tempos passados e procuro me habituar ao fato de que esse passado já é bem passadinho mesmo. Para mim, foi ontem que o garotinho míope chupava essas balas com o nariz enfiado em livros de Monteiro Lobato. Para a rapariga do empório, esses velhinhos como eu parecem tão simpatiquinhos comprando as balinhas de sua dinossáurica infância... Simpatia e velhice são, de fato, conceitos relativos...


(Crônica publicada no jornal Pioneiro, em 10/09/10)

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Quem quer e quem não quer o seu dinheiro

Nossos repórteres acompanharam a ida às compras de três diferentes consumidores em um shopping center na Bobolândia (o Babashopping), porque os bobolandeses também têm dinheiro para gastar; eles são uma nação emergente e adoram torrar o rico dinheirinho que ganham suado. Só tem um porém: não é fácil ser consumidor na Bobolândia. Acompanhem e saberão o porquê.
O Consumidor Bobolandês 1 entra numa loja de discos (dessas que estão em vias de extinção devido à internet e ao dáunloude de músicas) e é abordado pelo vendedor, que faz a pergunta “o senhor precisa de alguma ajuda?”. O Consumidor Bobolandês 1 (chamaremos ele de CB1 daqui por diante, por uma questão de economia de espaço, tempo e dinheiro, claro) responde “sim, estou procurando o último disco do John Lennon”. “Ah”, responde o vendedor, com indisfarçável cara de quem gostaria de estar dizendo “quemmmmm???”, e emenda: “Ele lançou recentemente? Não recebemos ainda, mas deve estar para chegar”. Detalhe que só o CB1, eu e você sabemos: John Lennon morreu há trinta anos, e o tal “último disco” a que o consumidor se referia trata-se do derradeiro álbum da carreira dele, lançado no mesmo ano em que ele morreu.
É claro que o disco consta no catálogo e, se procurar um pouco, corre-se até o risco de encontrá-lo à disposição para venda ali mesmo, na prateleira. Mas quem é que de sã consciência na Bobolândia vai querer exigir conhecimento musical básico dos vendedores de discos em lojas de discos?
Já o CB2 entra faceiro na livraria grande e portentosa do shopping. Dribla as seções de discos, de DVDs, de eletrônicos, de computadores e de detergentes e chega, enfim, às prateleiras de livros, onde é abordado pela sorridente atendente: “o senhor precisa de alguma ajuda?”. “Sim”, responde, esperançoso, o CB2: “Você tem livros de Osman Lins, de Guy de Maupassant e de Pearl S. Buck?”. “São lançamentos?”, pergunta a atônita menininha de rabinho-de-cabelo, pronta para digitar qualquer coisa no terminal de consulta que a ajude a sair do limbo. Nosso CB2 nem espera para responder, vira as costas e sai, desiludido, rumo à área de patinação no gelo artificial que vai ficar por ali só mais dois dias.
Agora, vejamos como se sai o bravo CB3, que adentra uma concessionária de veículos localizada a duas quadras do Babashopping. Ele entra em meio aos veículos e logo é abordado por um solícito vendedor, que pergunta: “o senhor precisa de alguma ajuda”? “Sim”, diz nosso consumidor, “gostaria de um Upalalá modelo novo”. Ao que nosso surpreendente vendedor responde: “sim, claro, venha comigo. Os novos Upalalás estão vindo em três modelos diferentes, cada um com acessórios específicos para o seu conforto. Se o senhor possui família grande, vou lhe mostrar o modelo ABCD3, que vem com quatro air bags, direção hidráulica, freios ABS...” e assim segue, informado e informando, detalhe por detalhe, as características do produto para o qual foi contratado para vender.
Realmente, adquirir livros, discos e cultura em geral é bastante custoso na Bobolândia. Mais fácil comprar um carro mesmo...
(Crônica publicada no jornal Informante, de Farroupilha, em 03/09/2010)

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Eu sou bárbaro


Minha mulher se impôs uma missão árdua desde que leu a crônica em que eu discorria sobre a questão da gentileza. Convencida de que ando usando este espaço para dar moral de ceroulas, agora quer me ensinar alguns conceitos básicos de etiqueta que norteiam a atuação em sociedade de um casal. Ela crê que eu tenho conserto, que aprenderei, e está empenhada nas lições. Coitada. E de mim também, que tento decorar as regras e comprometi-me a colocá-las em prática sempre que saímos juntos. Sou um veículo em treinamento, portanto.
Primeira lição: lembrar de sempre entrar na frente dela em lugares públicos, como restaurantes, recepções, vernissages, ambientes lotados em geral. Sim, porque cabe ao homem dar a primeira pisada na área, farejar possíveis perigos, eliminar obstáculos, detectar o melhor lugar para sentar ou identificar o grupo formado pelo menor número de chatos. O homem educado, o cavalheiro gentil e atencioso, não faz igual a mim (ou igual ao meu antigo eu, o bárbaro), que empurra a mulher porta adentro como se a estivesse rifando aos olhares da turba presente. Isso é errado. Feio. Grotesco. Aprendi, pelo menos, já na teoria.
Lição dois: lembrar de sempre deixar a companheira sair na frente do mesmo ambiente. Cabe a você resguardá-la. Todos os olhares devem ferir as suas costas, e não as dela. É você quem deve receber as punhaladas psíquicas na hora da retirada. Ela, não; ela deve ser protegida por você como um escudo na entrada e outro na retirada. Seja um escudo. O mesmo vale na hora de subir e descer escadas, ensina-me ela: ao subir, fique atrás, para apará-la caso ela se desequilibre no salto e role escada abaixo, seja a escada rolante ou não. Ao descer, fique na frente dela, pela mesmíssima razão, seu ogro.
Aliás, depois da retirada bem feita, obedecendo a todas as regras, cuide para não colocar tudo por terra disparando na frente dela rumo ao carro, entrando, ligando o motor e já arrancando quando ela recém chegou e ainda tem um pé apoiado na calçada. Domestique o viking que habita o seu ser e aprenda a cuidar melhor delas. Elas saberão valorizar. Juro que estou tentando. Grof...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro, em 03/09/2010)