segunda-feira, 29 de julho de 2019

68 opções para a felicidade


Dia desses, ao ler a página “Caixa-Forte”, aqui no jornal “Pioneiro”, fiquei estupefato e boquiaberto ao deparar com determinada nota. Informavam elas (a nota e a colunista titular do espaço) que Caxias do Sul possui nada menos do que 68 pizzarias. A quantidade de estabelecimentos gastronômicos caxienses dedicados a oferecer aos famélicos clientes a iguaria típica italiana, que na verdade teve origem ancestral no Oriente Médio e no norte da África, foi o aspecto que me deixou estupefato. Boquiaberto fiquei devido ao desejo indomável que me invadiu ao ler a notícia, de meter-me dentro de um dos 68 estabelecimentos e sanar a fissura por um exemplar, sabor portuguesa, como sempre. Mas ainda era cedo da manhã e, enquanto a hora da pizza não vinha, pus-me a refletir, fechando a boca.
Sessenta e oito pizzarias, entre rodízios, a la carte e tele-entregas, em Caxias do Sul! É pizza pra todo o lado, convenhamos! Não sei quantas pizzarias existem em Porto Alegre ou em São Paulo, mas, convenhamos de novo, 68 é muita pizzaria para uma cidade só! E, convenhamos mais uma vez, apesar do número significativo, nós, caxienses devoradores de pizzas, sabemos muito bem que ainda há lugar para a 69ª e para a 70ª se instalarem e alegrarem a nós todos com margaritas, sicilianas, portuguesas (amo!), alho e óleo, quatro queijos, milho, calabresa, peito de peru, rúcula com tomate seco (a titular da “Caixa Forte” ama, que eu sei!), estrogonofe, camarão (meu afilhado ama, por ser caríssima!), picanha (até pizza de costela já inventaram), isso sem falar nas doces, onde há espaço de sobra para o exercício da criatividade, como as vindouras e ainda não criadas pizza de sagu (quente e gelado, ao gosto do freguês), pizza de ambrosia, pizza de pudim de leite, pizza de chico balanceado... Que horas são? Manhã, ainda... Aiai!
Segundo pesquisas que fui desenvolvendo ao longo do dia, a fim de consolidar a obsessão por uma pizza com a qual finalizar a jornada, descobri que em São Paulo são consumidas um milhão de pizzas por dia! Bons comedores de pizzas, esses paulistas! Gostaria que alguém fizesse o cálculo aqui na nossa Caxias das 68 pizzarias. O perfil de uma cidade e a personalidade coletiva de seus habitantes talvez possam ser compreendidos também pela quantidade de estabelecimentos que nela se instalam. Caxias, por exemplo, possui 68 pizzarias e, desde a semana passada, quase nenhuma banca de revistas, já que algumas das tradicionais foram pulverizadas no centro da cidade. Melhor nem pensar muito. Garçom, uma portuguesa pra mim, por favor!

(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 29 de julho de 2019)

segunda-feira, 22 de julho de 2019

A performance de Galardón


Argentino, meu amigo argentino que mora em Caxias desde a época em que se circulava nos sábados à tarde pela Avenida Júlio em São Pelegrino fazendo a “Caravana da Polenta”, é um exímio adestrador de cachorros. Aprendeu o ofício quando estudava na Universidad de Buenos Aires, levando a passear, pela Recoleta, “los perros de las madamas porteñas” a troco de “unos valorosos pesos”, que lhe permitiam incrementar o sustento e saborear “un asado de tira com chorizo” na parrilla dos finais de semana. Argentino era um “perrero” de primeira, requisitado pelos donos e adorado pela cachorrada buenosairense, de quem recebia lambidas embaladas em gratidão canina.
Aqui em Caxias, adestra cachorros como hobby e incremento do sustento, o que lhe permite fruir galetos ao primo canto e sagus gelados nos finais de semana em cantinas típicas. Domingo desses me convidou para almoçar em sua casa, pois queria me apresentar o novo habitante do lar: Galardón, um fox terrier saltitante, que já na chegada ameaçava lustrar meus tênis erguendo a patinha e mirando o jorro que acabou pegando em cheio no vaso com o cactus do Atacama posicionado ao lado, pois que pra lhama também não sirvo e sei ser ágil em momentos cruciais. “Te voy a mostrar como Galardón es um perro inteligente”, acudiu Argentino, embalado no avental de chef que usa sempre que se bota a brigar com “el maldito carvón brasileño” frente à churrasqueira. “Te vás a ver como se finge de muerto”, disse, e gritou para Galardón: “Muerto!”
O bicho enrijeceu de pronto, estalou os olhos, cerrou os dentes, pôs a língua pra fora e tombou de lado sobre o tapete da sala, derrubando o vaso com o cactus do Atacama. “Toca-lo”, ordenou-me Argentino, esgrimindo o espeto com o salsichão. “Eu não!”, respondi. “Toca-lo!”, insistiu. Encostei meu dedo na pele do bicho. Frio e rígido, como um cactus do Atacama. “Tchê, ô, meu, esse teu cachorro morreu mesmo, véio”, falei, pasmo. “Nada; mira”, disse ele, e gritou, estalando os dedos: “Galardón, en pié!”. O animal pulou. Saiu do transe, girou sobre si mesmo, reviveu e veio direto lamber meus tênis, erguendo de novo a patinha, repleto de ideias fixas ressuscitadas. Argentino, satisfeito, voltou à churrasqueira, enquanto Galardón pulava ensandecido ao seu redor, orgulhoso da performance. De minha parte, estava inclinado a refletir sobre as relações consentidas de submissão e poder, mas era domingo, a crônica de segunda já estava pronta e precisava limpar o tênis. Me fiz de muerto e fui brincar com Galardón. Saber quando deixar por isso mesmo também é uma arte.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 22 de julho de 2019) 

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Doce paixão à primeira vista


Trata-se, sim, de amor à primeira vista. Apesar da desconfiança pedregosa dos incrédulos e dos portadores de coração cimentado, essa espécie de encantamento súbito existe e pode se manifestar a qualquer momento, derreando os escudos protetores empunhados pelos cerebralistas e redespertando a consciência de que somos humanos, afinal de contas. Não existe proteção capaz de impedir a invasão de sensações que se apoderam do ser quando o encantamento acontece. Corpo e alma acusam os efeitos do súbito sucumbir à paixão e nada resta senão entregar-se a seu usufruto, também de corpo, também de alma.
Para tanto, se faz necessário, por definição, que haja contato visual. Se assim não fosse, o apaixonamento não poderia ser classificado na categoria dos “à primeira vista”, certo? Contato visual direto, ao vivo, sem filtros e sem intermediários. Não basta a observação de uma fotografia do objeto apaixonável. Nada disso. É preciso que se dê o fenômeno do “olho no olho” para que o sistema nervoso seja invadido pela adrenalina do desejo, arrepiando os poros da pele, dilatando as pupilas, acelerando os batimentos cardíacos, provocando sudorese nas palmas das mãos, entreabrindo a boca e incrementando a produção das papilas gustativas. É quando, então, salivamos.
Salivamos desbragadamente, tomados pela paixão e pelo desejo, porque não há como fugir do amor à primeira vista que nos subjuga quando entramos na confeitaria e nosso olhar recai sobre aquela unidade específica de massa folhada fresquinha, o recheio amarelado escorregando pelas laterais, a prenunciar o sabor que explodirá dentro de sua boca dali a instantes, quando a oferenda lhe for conduzida à mesa pela moça que atende no balcão. Você identifica de antemão que a massa, fininha e crocante, foi feita no capricho pela doceira anônima que trabalha incansavelmente nos bastidores, touca na cabeça, na produção de delícias apaixonantes que serão consumidas por hordas de desconhecidos, espalhando prazer e alegria de viver por todos os pontos da cidade. É batata! Você vê, se apaixona, acendem-se as chamas do desejo e você aponta o dedo: “essa ali”. Simples assim. Paixão à primeira vista correspondida, consumada e saciada. Que delícia!
Pena, né, madama, que nem todas as paixões da vida possam ser enquadradas dentro de um naco de massa folhada. A maioria precisa ser trabalhada, cultivada e construída ao longo do tempo, após o gatilho da “primeira vista”. Se assim for, poderão durar bem mais do que a curta sobrevida ofertada por uma massa folhada, por mais deliciosa que ela seja.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 15 de julho de 2019)

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Nem no alto do cume!


Nesses tempos pontuados por redes sociais, câmeras de vigilância espalhadas pelas esquinas, aparelhos digitais filmando tudo em todos os lugares a todo o instante, somos obrigados a rever nossos antigos conceitos de privacidade. Estar só, consigo mesmo, em silêncio, tornou-se uma aspiração desafinada com o espírito da época. A maioria parece não se importar com isso, uma vez que, a julgar pelo teor das postagens nas redes sociais, o que a galera quer mesmo é ser vista, notada, curtida. Vivemos um engarrafamento de egos de dimensões planetárias, nunca antes visto ou imaginado na história da humanidade. Somos sete bilhões de super-astros vivendo nossas vidas triviais, sonhando sermos o último biscoito do pacote. Sete bilhões de derradeiros biscoitos acotovelando-se no fundo do pacote da egolatria narcísica, um dos atributos desse 21º século.
Como fugir disso? Ir para a praia, talvez? Já houve época em que rumar ao litoral nas férias de verão consistia em uma excelente opção para quem desejasse dar uma pausa na correria do cotidiano nas cidades e mergulhar numa onda de paz e sossego. Mas isso foi-se há tempos. Ir para a praia nas férias, hoje, significa trocar o acotovelamento do cotidiano do ano todo nas cidades pelo acotovelamento do verão nas praias superlotadas, uma vez que todo mundo tem a mesma ideia que você. Sartre, o escritor e filósofo francês, aquele do cachimbo, detectou que “o inferno são os outros”. Quanto ao inferno, não sei; sei é que o mundo, esse sim, está cada vez mais abarrotado de outros.
Uma alternativa de fuga das multidões seria comprar uma passagem para o Nepal, enfiar uma mochila nas costas, alugar uma picareta, surripiar aquela toca da vovó, arranjar um par de luvas, cravar pregos nas botas e botar-se a escalar o Everest, a montanha mais alta do planeta. Lá em cima, encarapitado no pico do monte, contemplando o céu infinito e a paisagem gelada do Tibete, você enfim poderá relaxar e gozar um precioso instante de reencontro com aquele seu eu que habita o recôndito de sua alma. Não é mesmo? Era, cara pálida! Porque nem mais isso dá para fazer. Notícias recentes, com fotos incríveis, revelam que o Everest anda vivenciando surreais engarrafamentos de alpinistas provenientes de todas as partes do mundo, rumo ao seu cume. Filas e filas de centenas de alpinistas esbarram picaretas nas íngremes trilhas em uma região que já foi considerada entre as mais inóspitas da Terra. Alguém aí sabe que horas parte o próximo voo para Plutão? Hein? Já está lotado? Ah, já sei! Vou me refugiar em uma biblioteca...
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 8 de julho de 2019)

segunda-feira, 1 de julho de 2019

É proibido embolar


Há coisas que deveriam ser proibidas. Já que agora estamos vivendo na era do “não pode”, também tenho cá minhas reivindicações cerceadoras e proibitivas a apresentar à sociedade, pensando sempre, claro, no meu próprio bem estar e tendo como régua geral a medida de meu próprio umbigo, a decretar o que é bom e o que é ruim, o certo e o errado, e ai de quem discorde de mim. Pois então, vamos lá. Primeira coisa a proibir (ainda não sei se em esfera municipal, estadual, federal ou interplanetária): a prática de vizinhas fazerem bolo cheiroso de manhã cedo, infestando os corredores do prédio e os nossos lares com um aroma sedutor proveniente de uma guloseima cujo usufruto está desde já cerceado ao nosso deleite, uma vez que não sabemos exatamente de onde vem e não temos relações previamente estabelecidas com a dita cozinheira, que nos habilitariam a batermos à sua porta com olhar pidão e implorarmos por um naco.
Sim, porque, assim não dá! Você está ali, sentado em seu escritório caseiro (“home office”, que fica mais elegante e como a madama zelosa sempre cuida de me corrigir, pensando no lustro da imagem profissional deste esmerado cronista de segunda), mergulhado no trabalho, e, de repente, suas narinas são surpreendidas por aquele aroma de bolo de chocolate, ou talvez de nozes, quiçá recheado com baunilha e avelãs, com cobertura de leite condensado e mel, e seus pensamentos embolam, sendo impossível prosseguir com o raciocínio que lhe permitia escrever os livros para os clientes, corrigir os originais enviados, detalhar os projetos futuros, tecer uma crônica de segunda ou postar algo supimpa na internet. Você fica imobilizado frente ao êxtase que se apossa de todo o seu ser a partir da invasão daquele bouquet bolístico que evoca recordações relativas a avós e seus quitutes. Todo o seu corpo palpita, em especial o estômago e a boca, inundada pelo caudaloso rio de saliva produzida pelas papilas gustativas, acionadas em função da vigência da lei científica do reflexo condicionado, que diz: bolo feito, baba solta.
Sim, deveria ser proibido. Se não por meio de lei regulamentada e sancionada em todas as esferas, ao menos, a partir de cláusula extra de conduta aprovada em reunião de condomínio. “Fica proibida a prática do bolo nas dependências do prédio, a menos que imediatamente ofertado a todos os moradores logo após saído do forno”. Porque, nesses tempos bicudos, temos de pensar em nós mesmos, né, madama, e a senhora não me olhe com essa cara de quem acha que ando raciocinando com a barriga, porque não sou o único!
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 1 de julho de 2019)