segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Frio na pele, calor n´alma

Sobre uma coisa somos todos unânimes: unanimidade não existe. Poucos ou raros são os aspectos sobre os quais é possível deitar o véu da unanimidade. Os aviões, por exemplo, são uma delas. Afinal, todo o avião que sobe acabará descendo, de um ou de outro jeito. Sempre descem, é unânime. Difícil encontrar outra coisa que atinja esse grau de unanimidade. Reflito sobre isso nessa reta final (ainda pouco menos de um mês) de um inverno muito estranho na Serra gaúcha. O frio não é unânime. Há quem goste e há quem não goste, já que somos humanos e não pinguins, apesar de, algumas vezes, eu me sentir como se fosse um deles quando desavisadamente fixo o olhar no termômetro.
O frio não só não é unânime como também não é democrático. Pois que é difícil integrar o grupo dos bem-aventurados que dizem apreciar o inverno devido aos prazeres que ele proporciona, como uma lareira acesa, um bom vinho, um passeio a Gramado para ver a neve, o enrodilhar-se em um cobertor, um chocolate quente, essas coisas. Nem todos podem. E os que não podem, acabam vivenciando na pele os rigores malvados não só do frio, mas especialmente do ato de passar frio, essa vergonhosa mazela decorrente das incompetências da (in) civilização humana. Eu, de minha parte, quanto mais avanço nos anos, menos gosto do frio. Combato-o com as armas que tenho ao meu alcance e passo o inverno tiritando e torcendo para que as temperaturas subam.
Bom é saber que não estou só. Dia desses, encontrei um poema, elaborado provavelmente no alto do inverno serrano, em que o frio é desancado com ritmo e rima. Adorei. É de autoria do poeta caxiense Alfredo de Lavra Pinto (1887 – 1939), patrono da cadeira número 8 da Academia Caxiense de Letras, e só posso imaginá-lo compondo-o envolto em um cobertor, à noite, de tamancos e carpins, tremendo o queixo e irritado. Intitulado “Inverno”, reproduzo-o aqui, como uma arma a mais contra as cortantes friagens que nos assolam:
“Inverno, eu voto horror aos teus rigores,/ Eu abomino, em cólera fremente,/ O teu minuano, a sibilar, algente,/ E a música dos tristes amargores./ Detesto esses nevoeiros e tristores/ Que trazes, ó Briareu impenitente,/ Para nos torturar, horrivelmente,/ Para nos imergir num mar de horrores!/ Odeio o teu entono e o teu império!/ Odeio esse ar glacial, de spleen funéreo!/ Odeio o teu sinistro desvario!.../ E odiando-te, com toda a força da alma,/ Eu juro que prefiro a ardente calma/ Ao teu desesperado e intenso frio...”.

Essa impressão deve ser unânime: o frio esquentara bem a pena do poeta...
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 28 de agosto de 2017)

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Coelhos para encher o bolso

Queríamos ganhar dinheiro. A mesada que recebíamos de nossos pais não estava sendo suficiente para suprir nossas necessidades adolescentes. Eu, por exemplo, desejava adquirir logo todos os livros de Monteiro Lobato que ficavam expostos nas prateleiras da Livraria Progresso, bem como colecionar todos os títulos de gibis dos heróis Marvel que surgiam mensalmente na banca de revistas também batizada de Progresso. Havia muito progresso na nossa Ijuí natal (Rádio Progresso, Armazém Progresso...) e queríamos também progredir, meu primo e eu. O que ele planejava fazer com sua parte do futuro dinheiro que ganharíamos, eu nunca soube, mas um propósito nos unia: empreender.
Tínhamos a mesma idade (ainda temos), cursávamos a mesma classe na escola e, por volta dos 15 anos (início da década de 1980), sentamos para planejar. O pai de um colega, dentista famoso na cidade, instalara uma criação de coelhos em sua chácara e fomos lá visitar o empreendimento, cujo mercado era promissor. Achamos aquilo relativamente fácil de administrar e decidimos: criaríamos coelhos (estávamos convictos de que ficaríamos ricos vendendo ovos de páscoa, se alimentássemos e treinássemos bem aqueles coelhos). Meu pai liberou um pedaço do terreno nos fundos de casa para instalarmos ali o futuro viveiro. Pegamos enxadas numa tarde de sol e limpamos a área onde ergueríamos as gaiolas. Agora só faltava construí-las e adquirir os coelhos.
Mas precisávamos de dinheiro para o investimento inicial, o tal do capital de giro. Verificamos nos bolsos que nosso capital não girava além de algumas moedas sobradas de troco dos gibis e das merendas. Tínhamos primeiro de fazer dinheiro para investir no empreendimento que, depois, nos traria fortuna. Que coisa complicada essa vida de capitalistas! Mas fomos em frente. Aceitamos trabalho temporário de dois meses, nas férias, para administrar uma lojinha de especiarias pertencente a um tio-avô enquanto ele veraneava no litoral. Guardaríamos os salários para construir as gaiolas e comprar dois casais de coelhos, torcendo para que se reproduzissem com rapidez (não lembro de termos orçado as cenouras e as couves).

Na segunda semana de trabalho, meu primo derrubou ácido acético no pé e teve de ser substituído por outro colega. Meu sócio, então, retirou-se do projeto, que acabou naufragando junto com os salários devidamente torrados em gibis, livros e lanches. Nenhum de nós jamais criou coelhos. Quem saiu no lucro foi meu pai, com a roçada gratuita que fizemos no terreno de casa. Aprendemos que empreender não é brincadeira.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul,em 21 de agosto de 2017)

terça-feira, 15 de agosto de 2017

O reinado da peçonha

Dia desses vi circular pela internet um artigo de um jornalista do centro do país elencando cinco “roubadas” (definidas por ele) para se evitar ao visitar certa cidade turística da Serra Gaúcha. Apesar do título chamativo, logo fica claro, na leitura do texto, que as tais “roubadas” não passam de ataques direcionados à essência daquilo que o turista encontra ao visitar a cidade, como sua gastronomia, sua estrutura, suas atrações. Não é um texto crítico, porque não amplia as fontes, não oferece o contraponto, não aprofunda as questões, não busca alternativas. A intenção do autor é uma: atacar, desconstruir, fazer terra arrasada e escapulir das cinzas exibindo a própria (autossuposta) sagacidade.
Uma cidade turística (ou não) tem problemas? Claro que sim. Qual não tem? Melhorar, desenvolver, organizar, são metas constantes dos administradores (públicos e privados) de qualquer município, empresa, estado, país, instituição, grupo, comunidade, o que for. Por isso, críticas e sugestões são sempre bem vindas por parte de quem está envolvido nos processos de gestão. Mas é fácil separar a crítica construtiva do raso ataque destilador de peçonha. E estamos a viver um tempo em que a destilação da peçonha virou o senso comum a pautar a maioria das manifestações em todas as plataformas dos relacionamentos humanos. Picar e injetar veneno virou esporte nacional, a despeito de classe social ou de nível de instrução. Combater o ódio com o ódio se transformou em alternativa instantânea para o descarrego urgente das insatisfações, porém, o método não acarreta melhora alguma no quadro, pelo contrário, só amplia o mar de ódio. Os ataques deselegantes resultam no imediato nivelamento do atacante ao perfil de seu alvo.
Desconstruir, desmoralizar, consolidar pré-conceitos, endemonizar virou moda. “Vejam como sou esperto, olhem só como mordo, como sou temerário” são os motivadores das ações grotescas da maioria contra os alvos que elegem para receber as toneladas de ódio que brotam dos gramados sombrios de suas próprias índoles. São usinas de produzir raivosidades que não hesitam em metralhá-las em volta, desde que, claro, elas não os atinjam. Imaginam que, latindo e mordendo, se colocam a salvo do julgamento dos outros, posicionando-se no topo da pirâmide da intocabilidade. Empreendem energia não para criar e transformar para melhor, mas para latir enquanto as caravanas construtivas passam.

Frente a esse quadro, é melhor já ir intitulando minha própria lista de antídotos anti-peçonha: “Trocentos motivos para ficar na minha”.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 14 de agosto de 2017)

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Xeque-mate na "bisca"

Após duas décadas e meia vivendo na Serra Gaúcha e por mais de 15 anos frequentando Uvanova, essa simpática e discreta cidadezinha situada na divisa entre Vila Faconda e Tapariu, encravada ao pé (ou às patas) do Rio das Antas, descobri que qualquer pessoa provida com um mínimo de inteligência aprende a jogar bisca. Prova disso é que eu não aprendo. Já tentaram de tudo, meus sogros, minha esposa, meus cunhados, os primos de meus cunhados e de minha esposa, as tias e os tios de minha esposa e cunhados, os vizinhos, as crianças semialfabetizadas, os primos dos primos e os tios dos primos e os cunhados dos tios dos primos e agregados vindos de todas as redondezas (porque a família ali é grande e não há quem não saiba jogar bisca), mas não adianta. Eu não aprendo.
Chego a provocar espanto até entre os bois e as vaquinhas da roça, que me fitam de olhos esbugalhados sempre que surjo, e sei bem o que ruminam quando passo me enroscando nos arames farpados e estapeando mosquitos: “muuu, lá vem aquele que não sabe jogar bisca”. Sou motivo de espanto imensurável entre todos os uvanovenses devido a essa minha peculiar incapacidade cognitiva. “Esse homem joga xadrez e não aprende a jogar bisca”, já flagrei sussurrarem enquanto mexiam a mêscola dentro do tacho a produzirem massa de tomate. Que eu não saiba sacudir a mêscola, até admitem. Mas não aprender bisca, sacramento!
Além do mais, não é verdade que eu saiba jogar xadrez. Domino apenas o movimento de cada peça e consigo fazer cara de gênio enquanto fico uns 15 minutos com a mão no queixo observando o tabuleiro antes de mover decidido – pam! – a torre duas casas à frente para vê-la de imediato – pam-pam! – ser capturada pela dama adversária, que não precisou mais do que 15 segundos para detectar minha babaquice. Fico constrangido quando uma dama captura minha torre mas, pelo menos, no xadrez, engano durante algum tempo. Na bisca, escancaro minha burrice já na primeira rodada, quando não entendo o que é um “cargueiro” ou o que acontece quando sou “estroçado” (han?) e por que diabos antes o sete de copas era o cara e agora não vale nada? Ah não! Desisto. No xadrez, a rainha é sempre a rainha; o bispo só faz o que os bispos fazem. O mundo representado pelo jogo de xadrez parece estável, com regras claras e imutáveis.

Já a bisca... A bisca representa a mutabilidade imprevisível da vida. E ela, em si, já é tão difícil de apreender. Nesse cada vez mais caótico mundo em que vivemos, tenho preferido a ilusória segurança das certezas do xadrez. Isso, até levar o xeque-mate, claro...
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 7 de agosto de 2017)

O cotovelo do "troglolaite"

Não adianta, e a madama bem sabe disso: pau que nasce torto jamais endireita. É o meu caso, como a amiga leitora já percebeu. Observe. Noite dessas, presente que me fazia a um evento social concorridérrimo (o sufixo “dérrimo” é mais chique que o sufixo “díssimo”, são detalhes que fazem a diferença ao socializar, a senhora atente), transitava eu feito um Titanic periclitante por um mar de icebergs, equilibrando minha tacinha de champanha que aprendi a chamar de espumante, quando meu cotovelo esbarrou contra uma pirâmide de macarons que de pronto foi a pique.
Veio abaixo a refinada estrutura piramidal de plástico que sobre uma mesinha de centro sustentava e exibia os delicados, coloridos, deliciosos e disputados (especialmente entre as madamas, madaminhas e madamoças) docinhos ao estilo francês, que redonda e rapidamente se espalharam pelo salão, por entre saltos e sapatos, alguns indo parar junto aos rodapés e outros sendo infeliz e grotescamente esmagados e espetados pelo transitar frenético da sociedade. Meu desequilibrado gesto antissocial foi flagrado por uma dupla de garçons, cujas bandejas petrificaram. Boquiabertos, não sabiam o que fazer frente ao desconhecido (frente ao desastre desconhecido, não frente a mim, que por essas e outras ando cada vez mais conhecido).
Mas, como já aprendi nessas sociais ocasiões, fiz que não era comigo. Recolhi o cotovelo desastrado, bebi um gole do champanha, digo, do espumante e parti rumo ao garçom que no outro canto distribuía fumegantes panelinhas de louça recheadas com risoto ao funghi, a julgar pelo aroma de cogumelo farejado por minhas narinas que, nesses eventos, ficam afiadamente antenadas. Em duas passadas deixei às costas a cena da tragédia, sem presenciar os atos de salvamento. Isso até ser flagrado pelo olhar fixo e recriminador da senhora, madama! A senhora, que viu tudo: não só meu ato titânico de abalroar e desmantelar a pirâmide de macarons, como especialmente a minha imediata e covarde fuga da cena do crime, uma mão no bolso e a outra na taça da champanha (do champanha... da champanhe... do champanhe... e afunda-se de vez a classe).

Pois é, madama, a senhora, enfim, conseguiu ver o que há por trás da máscara: eu não sou um socialaite. Sou mesmo é um troglolaite. Um troglodita social. Um protossocial, um ser desprovido de ginga social. Um cavernossocial. Engomadinho, ensacado em um blaser e perfumado, até que engano alguns poucos por curtos momentos. Só que é impossível deixar em casa os cotovelos. O cotovelo de um troglolaite sempre acaba vindo à tona.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul,em 31 de julho de 2017)