segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Havia butiás naquele bolso!


Quem foi que disse que bolso é o lugar mais apropriado para o sujeito guardar butiás? Na verdade, até pode ser, uma vez que, ali dentro devidamente empilhados, é difícil eles saltarem para fora e virem a se espraiar pelas calçadas da urbe. A não ser que o solavanco seja de grande monta. Só assim, para que os butiás pulem do bolso do vivente. Pois semanas atrás fui alvo de um solavanco dessa natureza, que fez se espraiarem longe os butiás que nem sabia vir portando no bolso, ao ser convocado para uma reunião com colegas jornalistas representantes da ARI Serra Gaúcha, a seccional local da Associação Riograndense de Imprensa, que representa os comunicadores da região.
Os sorrisos largos e os apertos efusivos de mãos provenientes dos colegas comunicadores e integrantes da diretoria da entidade, Andreia Fontana (presidente da ARI Serra Gaúcha e Gerente de Jornalismo da RBS Caxias) e os jornalistas Juliano Flores e Viviane Somacal, anteviam a boa e inesperada surpresa, anunciada no momento em que eu procurava equilibrar nas mãos uma recém-servida xícara de café preto: meu nome havia sido escolhido para receber, na edição deste ano, o Troféu ARI na categoria Jornalismo Digital e Impresso! Quanto butiá havia naqueles bolsos! E que problema equilibrar aquela pequena xícara, frente ao tremor causado pela emoção advinda da inesperada honraria! Fiquei e sigo emocionado. Juntamente com os demais oito colegas comunicadores agraciados nas diversas categorias (Juares Franco: Jornalismo Audiovisual; Celso Sgorla: Radiojornalismo; Lucinara Masiero: Assessoria de Imprensa; Gilmar Gomes: Imagem; Jomba Salim: Propaganda e Marketing; Neide Tomazzoni Michelon: Relações Públicas; Luís Antônio Giron: Destaque Nacional e Guiomar Chies: Contribuição à Comunicação), flagrei-me comovido com o reconhecimento advindo dos colegas de profissão e também da comunidade, que, neste ano, foi instada a participar da escolha, por meio de votação.
Dedicar a vida profissional à atividade de ampliar as ferramentas de comunicação e de informação entre a comunidade em que se atua é uma vocação que traz, junto aos desafios diários, a plena convicção de se estar contribuindo para os processos de crescimento e desenvolvimento regionais, bem como na formação vital da cidadania. Grato pela homenagem e pelo reconhecimento, que se concretizam na entrega dos prêmios na reunião-almoço da CIC (copatrocinadora do Prêmio) desta segunda-feira.  E se alguém topar com butiás à solta por aí... eram meus, mas que sigam livres, representando a realização de uma escolha certa de vida!
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 25 de novembro de 2019)

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

O luto por um vaso partido


A situação que vou relatar se assemelha à que acontece, às vezes, com aquele vaso antigo que está na família há gerações e vem sendo herdado de forma compulsória por membros menos atentos, no ritual de distribuir os pertences dos ancestrais que vão se retirando de cena. O vaso é sem graça, ninguém sabe de onde veio, se possuía algum significado sentimental para os bisavós, mantido em cena como um coadjuvante silencioso ao longo das décadas, passível de ser identificado ao fundo de alguma velha fotografia, refugado a um canto na prateleira. Por hábito, respeito ou inércia, nunca foi jogado fora, acabou ficando, até o dia em que, pelo manejo desastrado de algum cabo de vassoura, espatifa-se no chão e, daí sim, finalmente, obtém a atenção que jamais conquistara em “vida”: lamentamos sua perda, choramos sua saída de cena, mesmo que, antes, nunca tenhamos prestado atenção à relevância de sua atuação silenciosa. Sentimos luto pela perda do vaso insosso e discreto, pois é inerente à nossa  índole humana a necessidade de sofrer com o processo de desapego.
Da mesma forma se dá, no momento, com o desaparecimento de minha vesícula, órgão discreto, de papel importante mas coadjuvante no funcionamento de meu organismo, que resolveu inflamar de súbito, me lançar ao chão de casa miando de dor no início de uma madrugada e me empurrar ao pronto-socorro, onde, após uma série de exames (eco, tomo e afins...), obrigou-me a me ver baixado em um leito, aos cuidados zelosos de enfermeiras e médicos, obedecendo a rituais de trocas de soro, aplicações de medicamentos via intravenosa, aferições periódicas de sinais vitais, dietas líquidas, até a apoteose final da saga, representada pelo ato sacrificial de retirada física de sua presença no conjunto dos órgãos que compõem a orquestra das minhas entranhas. Foi-se minha vesícula, já era, não nos reveremos jamais! Coração, pulmões, rins, fígado, pâncreas, baço, bexiga e intestinos juram, de pés juntos (com os meus pés, claro, que se solidarizam nesse momento delicado), que serão capazes de seguir dando conta do recado apesar da deserção vesicular. Serve de consolo, mas, além da dor dos pontos, sinto outra pontinha de dor pela perda de uma parte de mim, mesmo que, até então, jamais tivesse me dado por conta de sua sutil existência.
Minha vesícula acabou se revelando tão dispensável quanto o velho vaso da tataravó. Porém, para a garantia de uma sequência de vida saudável, é aconselhável não abandonar a memória de nenhum deles, da dor que foi perdê-los e das razões que culminaram nas dolorosas separações...
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 18 de novembro de 2019)

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Por mais vida, por mais arte!


Cem anos atrás, em março de 1919, morria, em Criúva (hoje distrito de Caxias do Sul), uma bela e jovem moça de 26 anos de idade incompletos, que decidira fazer de sua vida (abreviada devido à tuberculose, doença incurável e fatal em sua época) uma opção preferencial pela cultura e pela arte. Proativa, vanguardista e criativa, temperava seu cotidiano em Porto Alegre e na Serra Gaúcha dedicando-se ao cultivo do espírito, consumindo e produzindo arte. Era poeta, de brilho e talento reconhecidos nos meios intelectuais e literários da Capital e da Serra, mesmo não tendo tido tempo de publicar livro contendo a obra que vinha lapidando com esmero e dedicação. Chamava-se Vivita Cartier, e seu corpo segue sepultado no Cemitério do Pontão, em Criúva, inspirando artistas de várias esferas de atuação, ao longo das décadas, driblando o sempre ameaçador manto do esquecimento.
Vivita Cartier é lembrada e a essência de sua alma artística é mantida viva porque sua vida e sua obra seguem falando e inspirando aqueles que reconhecem a relevância vital do cultivo do espírito humano (por meio das artes e da cultura) na formação da cidadania, na consolidação de sociedades civilizadas e desenvolvidas e na transformação dos seres humanos em plenamente humanos. Sua memória vem sendo cultivada por historiadores, pesquisadores e entusiastas (conhecidos e anônimos, alguns já falecidos, outros ainda ativos), como João Spadari Adami, Honeyde e Adelar Bertussi, Mario Gardelin, Mario Vanin, Juventino Dal Bó e Rodrigo Lopes, entre outros.
A biografia de sua breve vida, escrita por mim e lançada este ano, suscitou vários artistas a revisitarem sua história, ampliando as formas de se relacionar com sua essência, como os músicos da banda Rota Lunar, conduzidos por Selestino Oliveira, que arranjaram e musicaram alguns de seus poemas, gravando um CD especial; as alunas da Escola Estadual de Ensino Médio João Pilati, de Criúva, que levaram aos palcos a vida de Vivita por meio de alguns de seus poemas mais significativos; a fotógrafa Liliane Giordano, que produziu um ensaio fotográfico e uma mostra abordando vislumbres da Noiva do Sol (como Vivita era chamada) e o Grupo Teatral Ueba Produtos Notáveis, que encenou a vida da poeta em um trabalho magistral protagonizado por Jonas Piccoli e Anile Zilli. A luta empreendida por Vivita há mais de um século, por mais vida, se transforma em bandeira e símbolo nos dias de hoje por quem batalha pela manutenção da essência da vida a partir do cultivo das artes e do espírito, na guerra contra as névoas do obscurantismo.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 11 de novembro de 2019)

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Alguém ajuste o despertador!


Ser acordado em meio ao sono pelo barulho de um despertador deveria ser proibido por lei. Algo a se pensar, nesses tempos esquisitos em que o ato de proibir vem conquistando um ibope só igualado ao que desfrutam as censuras nas ditaduras, mas deixemos os obscurantismos de lado, por favor, que de pesadelos bastam os dos sonhos. Pois é, exatamente isso: despertadores, mesmo que agora municiados com a possibilidade de baixar aplicativos com musiquinhas suaves que nos encantam, sempre acabam nos extirpando a fórceps das doces pradarias oníricas para a aridez da realidade desperta em um piscar de olhos (a essas alturas, semicerrados e ainda remelentos, confessemos). A mim, não faz bem, e, sempre que sou acordado desse jeito, demoro alguns instantes para encaixar a alma ao corpo, que se ergue de susto da cama e adentra o roupeiro em busca da tampa do vaso a ser erguida com urgência matinal.
Ser trazido dessa maneira à realidade deixa sonhos órfãos, inconclusos e a meio caminho, o que pode vir a ser um problema. Manhã dessas, ao despertar de forma suave e natural, sem o auxílio (e a imposição) de nenhum despertador, vi-me emergindo de dentro de um jipe, chapéu australiano na cabeça, exclamando ao sujeito sentado ao volante: “Adis Abeba fica para o outro lado!”. E puf! Saí do sonho! Adis Abeba? Onde fica Adis Abeba? Teria de verificar no google maps, durante o café da manhã. Ao saltar da cama rumo à porta correta do banheiro, recordava ainda do chapéu australiano que também encimava a cabeça de meu parceiro de jipe, cuja identidade não soube definir. Seria meu guia? Se fosse, era um incompetente, afinal, Adis Abeba ficava definitivamente para o outro lado. Jamais contrate guias em sonhos, fica a dica. Areia cercava o jipe por todos os lados, e seguramente não era a de Torres. Em que deserto estávamos? No do Saara? No de Gobi? Indecifrável!
Mas senti alívio por ter acordado de forma natural no justo instante em que percebi que Adis Abeba ficava para o outro lado. Caso um despertador me tivesse arrancado do jipe minutos antes, eu corria o risco de ficar eternamente perdido naquele sonho, em um deserto inominável, desorientado em relação à posição real de Adis Abeba. Seria terrível, pois não sei quanta água ainda tínhamos conosco nos cantis e tampouco conhecia as intenções do chapeludo ao meu lado. Ver-se perdido e desorientado no mundo desperto é uma coisa... Já, em sonhos, é excruciante. Mas, espera um pouquinho... O que você disse? Onde fica Adis Abeba? Ora, é para o outro lado! Não é?... Ei, alguém ajuste o despertador!
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 4 de novembro de 2019)