terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Para ser telúrico

Assim como um telefone celular, um notebook e uma câmera digital precisam ter suas baterias recarregadas com frequência para que sigam operantes, também eu necessito, sazonalmente, recarregar aquilo que chamo de minhas energias telúricas. Uma vez que “telúrico” é o termo que se emprega para fazer referência a tudo o que se relaciona à terra, ao solo, eu me aproprio da expressão para criar uma imagem de recarga das energias vitais só possível de ser obtida revisitando o solo da cidade em que nasci. No meu caso: Ijuí, 400 quilômetros distante de nossa Caxias do Sul.
Fui-me então no Natal passar por lá alguns dias e enfiar na tomada o cabo que liga aquele telurismo de lá com as energias psíquicas, mentais, espirituais e emocionais que me movem cá. Essas sessões de recarrego se dão por meio de atos simples, a começar pelo fato de estar lá. Chegar, permanecer, revisitar ruas, logradouros, praças; percorrer caminhos antigos repletos de significados e lembranças; revisitar pessoas; tomar chimarrão com os familiares; reescutar cigarras e sabiás. Tudo recarrega.
Recarrega também, no meu caso particular, dar uma passadinha sempre pela Rua dos Viajantes, situada nos limites do centro com um bairro, onde reside ainda a casa em que vivi minha infância e adolescência e que foi sede para o processo de meu despertar para o mundo. Fui lá em uma típica quente tarde natalina, para recapturar odores, sons e sabores e – surpresa! – asfaltaram a Rua dos Viajantes! Tascaram-lhe asfalto por sobre a irregularidade ancestral dos paralelepípedos daquela rua, aproximando-a de um progresso urbano da qual até então vinha se mantendo inexplicável e ferrenhamente alheia.

Agora não se cruza mais a 20 por hora pela Rua dos Viajantes. Agora, a rua de minha infância passa a ser também abordada por flamejantes veículos desrespeitadores das regras de trânsito, que lhe passam voando por cima do tapete de piche que cobre os paralelepípedos em cujos buracos soterram-se as marcas de meu passado. O progresso é inexorável. Mas, mesmo assim, permanece escondida ali num cantinho a tomada para a minha recarga telúrica.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de dezembro de 2014)

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Generosidade borbulhante

Quer saber como fazer? Eu vou dizer. Não devia, mas vou dizer. A generosidade e o desprendimento me capturam nessas épocas de final de ano e começo de outro ciclo, e que não fiquem sabendo disso os que pensam em me pedir empréstimos e favores! Mas sou assim, fico mole nesse período que vai de 20 de dezembro a dois de janeiro. Aproveitem!
Mas do que, afinal de contas, desejo falar? Calma, minha senhora, já vai. Não despreze o valor de uma boa introdução. Desdenha introduções há anos? Questão sua, minha senhora, questão sua. Acho-as importantes, e há quem me apoie nesse quesito, posso lhe assegurar. Em frente, portanto, que o ano se acaba e há outro ali adiante, já ansiado para querer entrar. Mas tudo a seu tempo.
O que quero é discorrer sobre espumantes. Sim, isso, espumantes. Champanhe, como se costumava dizer nos tempos passados, nem tão passados assim. Por que diabos? Ora, minha senhora, puxe os óculos para a ponta do nariz e meta a cara no calendário, sem pudores. É final de ano, estamos prestes a celebrar um novo ano, e a data rima com espumante, e não é de hoje. Antes, rimava com champanhe, porque não havia quem lhe acompanhe. Agora é espumante, a bebida borbulhante. Rimaram, sim? Rimas ruins? Bom, culpa sua, senhora, que me alfineta e me induz a tecer crônicas pisando em ovos.
O que eu queria era conversar ao pé do ouvido com o amigo leitor, e não necessariamente com a senhora, dessa vez. Dizer a ele que, nessa época de festas, ele pode aproveitar para fazer o charme e a moral com os amigos e principalmente com as amigas, revelando-se um exímio servidor de espumantes. Porque o charme do espumante reside, muitos por cento, na arte de saber servir. Na técnica correta de abrir a garrafa sem desperdiçar o precioso gás e de saber verter o valoroso líquido na taça, fazendo-o resplender em borbulhas a noite inteira. Bebida dos deuses, sim, mas somente se for servida por um emissário dos deuses: você. E aí, meu amigo, está feita a festa!

Mas não vai dar, desculpe. A senhorinha ali insiste em me olhar torto e chocou meu entusiasmo, arrefeceu minha generosidade. Fica para o ano que vem. Saúde!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de dezembro de 2014)

A expertise do amador

Uma coisa é ser um amador; outra coisa é ser um enganador. Ambas as coisas diferem de ser um expert, e não é necessário que sejamos experts em tudo na vida. Podemos (e até devemos) ser experts em algumas coisas, especialmente naquelas relacionadas à atividade que escolhemos para ser nossa profissão. Aí, nessa área, nos cabe empreender todos os esforços no sentido de buscarmos incansavelmente a excelência, sim senhor, sim senhora, senhorita e senhorito.
Não podemos ser amadores (e muito menos enganadores) dentro do âmbito de nossa atividade profissional. Se escolhemos ser médicos, precisamos saber diferenciar baço de pâncreas (coloquem os dois órgãos à minha frente, um de cada lado, e sou capaz de oferecer ao público 100% de bola fora ao tentar identificar um e outro); se decidimos ser sapateiros, precisamos saber pregar um salto e recauchutar uma palmilha; se queremos ser jornalistas, precisamos saber escrever com correção e identificar o que é notícia; e assim por diante. É mister que busquemos excelência naquelas atividades que nos definem perante a sociedade.
Mas a coisa pode pegar mais leve quando se trata das atividades das quais nos aproximamos por simples afinidade diletante, o que pode ser traduzido e resumido como lazer, hobby, passatempo. Se não sou um churrasqueiro profissional e não trabalho em uma churrascaria, posso me dar ao luxo de colocar o avental e me fantasiar de churrasqueiro aos finais de semana, para júbilo, gáudio e saliva de meus amigos e familiares. E tudo bem se, eventualmente, minha tradicional picanha bem passada esturricar feito carvão vez que outra. Tudo bem vírgula, desde que haja à mão o número da telepizza, claro. Minha fama de assador não será abalada por um eventual deslizamento de competência (desde que o mico não se repita com frequência constrangedora).

Mas é aí, nessa esfera, na dos prazeres e brincares, que podemos nos largar ao luxo das eventuais incompetências, porque é ali que o erro pode revestir-se de humor. Ali. Só ali. Fora isso, é incompetência e, aí, não tem desculpa nem tapinha nas costas. Uma coisa é uma coisa e outra coisa é coisa outra, até barbeiro está careca de saber.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de dezembro de 2014)

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Saber presentear

Agora que o Natal já é quadradinho riscado no calendário sobre a escrivaninha do escritório, posso relatar o acontecido sem desmerecer a moral da dupla de protagonistas da história, a saber, a esposa deste que vos escreve e este que vos escreve ele próprio. Foi numa daquelas manhãs dos últimos dias antes da data natalina, em que o centro da cidade estava agitadíssimo com aqueles desavisados que ficam sabendo que já é quase Natal só aos 44 minutos do segundo tempo, quando então se lançam às compras. Nós entre eles, claro.
Depois de distribuídas as tarefas entre um e outro dos dois integrantes do já citado casal, combinamos de nos encontrar dali a um par de horas em um café/livraria do qual somos clientes habituais. Quem chegasse antes, que se pusesse a esperar pelo outro. E tudo certo, fomos cada um para seu lado, a cumprir a missão de adquirir presentes a torto e a direito.
A mim, cabia a incumbência de encontrar brinquedos para meu afilhado de quase três anos de idade e também para um priminho dele, um ano mais velho. Entrar em loja de brinquedos não me é nenhuma tortura e lá fui eu, faceiro, cartão de crédito calibrado no bolso, adentrar os domínios da fantasia e da imaginação. Já de cara fui capturado, o nariz na vitrine, por um sabre de luz de Cavaleiro Jedi, da saga de Guerra nas Estrelas. Que acende e emite um facho de luz fosforescente esverdeado, igualzinho ao do Luke Skywalker! Uau! Não resisti e comprei. Mais adiante, na outra prateleira, uma máscara do Darth Vader, que, ao ser colocada, faz a sua voz sair cavernosa e gutural, igualzinha à do vilão cinematográfico. Pimba! Venha! Passei de novo o cartão de crédito, sem pestanejar. Depois, um ovo de dinossauro que, se mergulhado na água, faz nascer um dinossaurinho-bebê em 24 horas. Que massa! Veio também!

Resultado: cheguei antes ao café, repleto de pacotes de brinquedos. Todos eles para mim mesmo. Teria de voltar no dia seguinte, para dar conta das compras para as crianças. Se fui xingado pela outra metade do casal? Não, senhora, somos crias da mesma cepa. Ela chegou depois, repleta de pacotes de sapatos e blusas, que adquiriu para ela mesma! Isso que é sintonia...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de dezembro de 2014)

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

O melhor presente

Como primeiro dizia John Lennon, depois versado para o português pela Simone, “então é Natal”. Sendo então Natal, como sempre nesta época nos lembram Lennon e Simone, brindemos. Um brinde a você, leitor, que acompanha essas crônicas ao longo do ano e que delas tira das entrelinhas o às vezes escasso leite que as oficiais linhas aparentemente escondem. Parabéns, leitor, brindo a ti.
Brindo a ti especialmente pela presença. Por se fazer presente lendo os textos e, vez em quando, comentando com os de suas relações e, mais em quando ainda, enviando a este escriba as manifestações referentes ao que depreendeu das leituras. Isso é fazer-se presente, e a essa postura e a esse gesto é que brindo.
Brindo porque, imbuído pelo espírito da reflexão que esta época dos derradeiros dias do ano nos induz, flagrei-me concluindo que o maior presente que se pode dar aos outros não só no Natal, mas ao longo de todos os 365 dias dos anos que nos cabem viver, é justamente a presença. O melhor presente é saber fazer-se presente. A isso é que brindo. Saber fazer-se presente é uma arte humana que transcende o ato de ofertar aos outros presentes físicos. Fazer-se presente é em si o maior dos presentes, e é preciso esforço para que nos tornemos bons praticantes dessa arte intangível de presentear. É a quem sabe praticar essa arte em seu dia-a-dia que eu ergo o brinde aqui hoje, nesta crônica natalina.
E há tantas formas de se fazer presente quanto existem situações humanas no mundo. O leitor, como já disse, se faz presente ao cronista quando lê as crônicas e reflete sobre elas, mesmo que não as comente e não manifeste ao autor suas reflexões. Lê-la já é fazer-se presente. Isso, apenas um exemplo. Haveria tantos outros a elencar, integrando tanto o ato físico de reunir-se e fazer-se presente de corpo, quanto aquelas situações em que nos fazemos presentes de alma e espírito e pensamento.

Pensar em alguém é fazer-se presente a esse alguém. Recordar com carinho um ente-querido que já se foi é também trazer sua memória à presença. Dar um telefonema, enviar um email, dizer que se importa. Fazer-se presente é dar de si o melhor presente. Brindemos a isso e feliz Natal!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de dezembro de 2014)

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Ai, que prazer

Costumamos saber muito bem quais são os elementos que nos dão prazer. Quais os produtos que nos embevecem, quais as ações que nos encantam, quais as pessoas que nos fascinam, enfim. Quanto mais convivemos com nós mesmos – situação a que somos individualmente submetidos desde nosso nascimento, sem choro nem vela -, melhor vamos desvendando as fontes de nossos maiores prazeres.
Para uns, as salas de cinema; para outros, as mesas dos restaurantes; para algoutros, as distantes paragens que se põem a visitar; para muitas delas, as compras, que lhes enfeitam os pezinhos; para muitos deles, o futebolzinho de final de semana, que lhes destrói os garrões; para os ricos, uma BMW novinha e reluzente; para os pobres, o sonho com uma BMW reluzente e novinha; para os remediados, que seja aquela fosca Brasília Muito Velha, mesmo que a piada seja batida; para o avô, o churrasquinho que reúne a familiagem no final de semana; para o adolescente, um final de semana acampando com os amigos, libertando-se dos almoços em família. Enfim, cada pé conhece o sapato que lhe massageia os calos (e essa inventei agora, eu que aprecio criar frases de efeito com gosto duvidoso).
Mas falando em mim mesmo, aproveito para revelar que já faz décadas que sou assolado por uma dúvida excruciante (tacar-lhe assim de supetão no leitor uma palavra incomum é outro de meus prazeres passíveis de repreensão). Eu, que sou chegado nessa coisa estapafúrdia de gostar de ler livros, não tenho jeito de descobrir qual desses atos me causa maior prazer: iniciar a leitura de um livro, concluir a leitura de um livro ou comprar um livro. Todas essas três ações me causam cascatas de prazer. Cascatas, não: cataratas (que imagino maiores do que as cascatas, haja vista a relação entre a do Caracol – cascata – e as do Niágara – cataratas, sem falar que aquela se usa no singular e, esta, no plural).

Como não consigo colocar em ordem de intensidade esses três prazeres, sigo a vida ininterruptamente concretizando, de forma alternada, todas essas ações: compro, começo a ler e termino de ler. Ai, que prazeres! “Cada louco...”, já dizia meu amigo Argentino, de canto de olho.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de dezembro de 2014)

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Literalmente suspeito

“O fato de eu ser paranoico não significa que não possa haver alguém me perseguindo mesmo”, já dizia Argentino, um amigo meu que é muito paranoico. Admito que há certa lógica em seu raciocínio, apesar de distanciado da realidade. Ninguém nunca perseguiu Argentino, exceto os policiais que o detiveram dia desses no Parque dos Macaquinhos, a tempo de impedir que ele trouxesse para Caxias a onda dos peladões que invadiu nossa Capital pouco tempo atrás.
Tudo já devidamente amansado, fico aqui a refletir sobre os pontos de convergência que me permitem compreender essa sensação de crer estar sendo objeto dos olhares reprovadores e estranhados de todos ao redor, a ponto de sentir desconforto e surgir aquela percepção de que somos peixe fora da água. Sempre sinto isso quando circulo em público com um livro na mão. Viciado que sou nessa coisa estranha de ler livros, carrego-os comigo sempre que saio de casa e rumo a algum compromisso. Com exceção das aulas de natação, nas quais todos os meus membros ficam ocupados. Como, senhora? Não sabia que eu fazia natação? Não, senhora, não faço, justamente por esse impeditivo livresco. Sim, concordo, deveria, a senhora tem razão. Pensarei a respeito. Por ora, sigamos a crônica.
Como eu estava raciocinando, não preciso sair pelado pela aí para que fiquem me olhando de forma estranha, desconfiando de minha pessoa, de meus atos, de minha índole, de minha sanidade mental e de minhas intenções. Basta que eu circule com um livro e, pior, me bote a lê-lo em locais públicos. Na sala de espera da dentista, os colegas de espera me observam imaginando que errei de porta: “o psiquiatra fica ali ao lado, amigo”, é o que ouço de seus pensamentos. No shopping, enquanto a esposa perambula dilapidando minha fortuna, sento-me nos bancos e tenho a atenção desviada das páginas do livro para a presença dos vigilantes que se põem a me rondar, vigiando as ações desse estranhíssimo eu ali, com um livro, atitude das mais suspeitas.

O que argumentar no dia em que me abordarem? Que estou lendo? Melhor preparar desde já uma desculpa mais plausível, para evitar consequências constrangedoras...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de dezembro de 2014)

domingo, 21 de dezembro de 2014

Papai Noel de sunga

A partir de domingo, os seguintes apetrechos voltam a ganhar status de parafernália oficial para os felizes habitantes do hemisfério sul: calção, sunga, biquíni, maiô, chinelo-de-dedo, sandália, rasteirinha, canga, chapéu de palha, boné, óculos-escuros, protetor solar, esteira, cadeira de dobrar, baralho, aparelhagem de frescobol, guarda-sol, toalha de banho, camiseta, bermuda e assemelhados. Os objetos-de-desejo passam a ser: milho verde, caipirinha, cerveja beeeeeeem gelada, pastel de siri, pastel de camarão, pastel de carne, espumante, batata frita, sol, calor, mar, areia, grama, piscina, ar livre, céu azul.
Estou certo ou errado? Bola na trave ou gol de placa? Sim, porque, a partir de domingo, dia 21 de dezembro, abrem-se oficialmente as portas nos países do hemisfério sul para a chegada do verão, essa estação que tanto amamos e que promete ficar por aqui a temporada inteira, até 20 de março. E o verão já chega trazendo seu tradicional solstício, o fenômeno que faz com que, no domingo, 21, o dia seja mais comprido do que a noite (haverá mais horas de luz solar, se não estiver nublado, do que de noite estelar). Já lá no hemisfério norte, os pobres dos europeus e norte-americanos passam a ser brindados, na mesmíssima data, com a chegada do inverno e com direito a solstício inverso, com mais horas de noite do que de luz solar. Ah, coitados!

Isso é o que obriga, todos os anos, o Papai Noel dos nortistas a se vestir daquele jeito esquimó, com a pesadona roupa vermelha forrada de algodão, luvas, botas, touca e espessa barba branca. Tudo térmico, para enfrentar a neve durante sua árdua tarefa de entregar presentes. Aqui no sul, ninguém nunca vê o Papai Noel justamente porque ele passa despercebido no meio da multidão com seus chinelinhos Havaianas, bermuda transadinha, um copinho de piña colada e o barrigão que, convenhamos, nove entre cada dez homens temos. Aqui no sul, basta entrar dezembro que Papai Noel raspa a barbona branca, porque ele não é bobo. É por isso que ninguém nunca o viu de verdade. Nosso Papai Noel é veronil. Fiquei sabendo que, este ano, vai veranear em Arroio do Sal. Fique atento.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de dezembro de 2014)

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Quem diria

Muito mais do que o futebol, caixinha de surpresas mesmo é a vida. “Vou morrer velho e não vou ver tudo” e “não há o que não haja” são expressões populares que resumem bem o sentimento de espanto que o fato de se estar vivo nos acomete com mais frequência do que somos capazes de admitir. Eu, que desembarquei nesse mundo há pouco menos de 50 anos, já acumulo centenas de episódios que me chegaram ao conhecimento (e/ou que presenciei) que são dignos de espanto. O interessante na coisa toda é que espanto é uma sensação que não se esgota jamais: sempre somos capazes de sermos surpreendidos pelo inesperado, por mais coisas que já tenham visto, vivido e sentido as nossas cãs.
Agora, por exemplo, Cuba e Estados Unidos organizando o restabelecimento de relações diplomáticas e comerciais, dando fim a um afastamento e a um embargo que duravam quase seis décadas. É a pedra derradeira que faltava para que se enterrasse definitivamente a Guerra Fria, cujo processo de caducança teve início ainda em 1989, com a queda do Muro de Berlim, seguida pelo efeito dominó da derrocada dos regimes comunistas do Leste Europeu. Quem diria que iríamos viver para presenciar isso...
Décadas atrás houve a libertação de Nelson Mandela, na África do Sul, antecipando o fim do apartheid, sistema segregacionista que oprimiu aquele país por décadas. Quem diria? Um papa renunciar e se retirar para a aposentadoria, como fez há pouco o Bento XVI... Quem diria? Mulheres conquistando o cargo de presidente em vários países do mundo; o fumo sendo banido dos espaços públicos; o álcool antes de dirigir sendo combatido; Bob Dylan gravando canções de Frank Sinatra; Plutão perdendo o status de planeta e depois sendo reabilitado; casamento homossexual sendo finalmente oficializado nos setores mais civilizados do planeta... Quem diria?

É por essas e outras que sigo tendo convicção de que ainda é válido lutar pelos sonhos e arregaçar as mangas para tentar mudar o que precisa ser mudado ao nosso redor. Sempre há muito por fazer, é verdade. Mas, felizmente, a vida e o mundo são elementos possíveis de serem transformados. A História que o diga.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de dezembro de 2014)

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

A inércia dos legumes

Chega a ser comovente essa vocação que todas as coisas existentes no mundo possuem de preferirem permanecer como estão. A opção preferencial de todos e de tudo é ficar como está, ao menos, a princípio. Se é para testar o novo, que o façam aqueles que estão na frente. Se for de queimar, queimem-se eles, eu é que não. Se for seguro, avancem os outros primeiro, depois vou eu. Se for fundo, afundam os da vanguarda, eu, aqui no raso, dou meia-volta e retorno seguro para a base.
Afinal, alguém tem de restar para contar a história, não é o que dizem? Que seja eu, então, o contador. É mais seguro. É menos cansativo. Tem risco zero. O único risco é o de se ficar atolado para sempre na mesmice, mas não ligamos, adoramos manter intocada a nossa zoninha de conforto. Mesmo que essa zona de aparente conforto seja, na verdade, um pântano de areia movediça, onde justamente a nossa inércia é o que nos suga para o fundo. Porém, preferimos tapar os olhos com a peneira e ocultar a realidade de nós mesmos pelo mais longo tempo possível.
É assim, somos assim, tudo é assim. Tudo mesmo: desde as pessoas, passando pelos animais, pelas plantas e até pelos seres inanimados. Tenho provas disso todas as vezes em que me boto a cozinhar, por exemplo. Nem o chuchu refogado, nem as rodelas de cenoura cortadas em cubos gostam de serem mexidas de onde estão para migrarem à panela ou ao prato. Faça a experiência você mesmo: corte um chuchu em cubos. Coloque-os na panela com água para cozinhá-los. Depois de alguns minutos, leve a panela semitampada à pia para retirar a água. Agora, vire a panela sobre a travessa em que irá servi-los à mesa. Observe: há 32 cubinhos de chuchu na panela. Uns 28 irão cair dentro da travessa, na boa. Mas sempre haverá aquela meia dúzia que não cai por conta, como os outros. Precisarão ser retirados com a colher. Por que sempre há os que não caem?

Abra uma lata de milho e verta seu conteúdo sobre uma tigela. Haverá sempre aqueles seis ou sete grãos que se recusam a cair igual aos outros. Precisam ser removidos. São os inertes. Sempre existem. É sintomático. Reflito muito sobre a existência quando cozinho...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de dezembro de 2014)

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Sozinho não, né

Aconteceu nos Estados Unidos, no início de novembro. O sujeito, um sueco chamado Fredrik Wilkingsson (pela aparência, deve ter uns 40 anos), foi contemplado com o privilégio de assistir a um show de Bob Dylan apresentado só para ele. Repito: só para ele. Era Bob Dylan e os quatro integrantes de sua banda no palco e o sueco solito lá, sentado em uma das centenas de poltronas aveludadas do elegante Philadelphias´s Academy of Music, na Filadélfia. Eita!
Como isso? Levou a melhor em um sorteio bizarro? Não, nada disso. Wilkingsson foi escolhido para protagonizar uma das experiências comportamentais desenvolvidas por pesquisadores de uma fundação sueca que estuda a felicidade humana, visando à produção de um documentário para a televisão. Os voluntários aceitam se submeter a experiências que normalmente seriam realizadas em grupo, para relatar as emoções que sentiram ao vivenciarem sozinhas essas situações, que acabam se tornando surreais.
Além de ir a um concerto de rock sozinho e não ter com quem comentar os detalhes do show, os pesquisadores desenvolveram com os voluntários atividades como brincar sozinho em um parque de diversões; jantar só em um restaurante grã-fino com direito a tudo do bom e do melhor (não sozinho na mesa, mas com o restaurante todinho vazio, só você, o cozinheiro e o garçom); coisas do gênero. A intenção é analisar uma questão fundamental: é possível apreciarmos sozinhos, na sua totalidade, uma experiência que deveria ser compartilhada? Até que ponto o ato de compartilhar um prazer faz parte essencial desse próprio prazer? Interessante...

Fiquei aqui pensando em sugestões que eu poderia dar para os pesquisadores enriquecerem as experiências propostas aos seus voluntários solitários: um jogo de pingue-pongue em que você, sozinho, faz o pingue e o pongue; um amigo-secreto de final de ano só entre você e você; uma maratona em que só você corre; um jogo de futebol em que você é o único jogador em campo, com direito a empilhar gols ao longo de intermináveis 90 minutos. Coisas assim. Qual é a graça? Ah, pois é...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de dezembro de 2014)

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

O cara não era o cara

A lembrança mais remota que tenho de meus contatos com o Papai Noel me reconduz a dezenas de anos passados, quando eu devia ter uns cinco ou seis anos de idade e morava na Rua dos Viajantes, em Ijuí. Coisas estranhas e maravilhosas aconteciam na Rua dos Viajantes em Ijuí naquela época, e essa foi uma delas.
A informação de que Papai Noel faria uma visita ao nosso lar na noite de Natal foi sendo revelada aos poucos para mim e minha irmã pelos meus pais, enquanto o clima natalino ia se instalando pela casa a partir da metade de dezembro. Falava-se em bom comportamento como requisito fundamental para receber de Papai Noel os presentes que tanto almejávamos (eu queria uma bicicleta Caloi e minha irmã desejava uma boneca Suzy, creio). A expectativa, portanto, era grande.
Naquela época era usual as famílias adquirirem pinheirinhos de verdade e instalá-los dentro de uma caixa de metal a um canto da sala, ao pé do qual montávamos o presépio. Passávamos dias ajudando nossos pais a ornamentar os espinhudos galhos do pinheiro com os enfeites coloridos que reapareciam das caixas guardadas a sete chaves pelos adultos. No jardim da infância, produzíamos enfeites artesanais com cartolina e palitos de fósforo, que obtinham lugar de destaque na árvore. Assim, o clima natalino se estabelecia, embalado com a trilha sonora de discos de vinil que iam sendo tocados com Jingle Bells, Noite Feliz e outras canções similares.

Aí então, na noite de Natal, chegou Papai Noel, o tão esperado visitante, carregando nas costas um saco de estopa do qual foi retirando presentes. Lembro de quando cheguei perto dele e percebi que se tratava de uma pessoa usando uma máscara, o que me causou certa estranheza.     “Ué, esse Papai Noel não é o verdadeiro, mas sim um homem fantasiado”, pensei. De qualquer forma, não disse nada, peguei meus presentes e saí. Em momento algum duvidei ali da existência de Papai Noel. Apenas, aquele que viera não era o próprio, ok, sem problemas. Afinal, ali, na Rua dos Viajantes, a fantasia tinha primazia e não era uma máscara que colocaria tudo por terra. A prioridade era seguir sendo feliz. Magias do Natal.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de dezembro de 2014)

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Obrigado, Papai Noel

Eu não estava lá, mas fiquei sabendo porque me contaram. O cenário: os pavilhões da Festa da Uva, onde, no final de semana, uma empresa de grande porte concretizava a festa de final de ano para seus funcionários e familiares. O motivo: entrega de cestas natalinas aos funcionários e de presentes para seus filhos. O protagonista: meu afilhado, um cidadão de dois anos e sete meses de idade. O personagem coadjuvante: Papai Noel, aquele ser de longas barbas que veste um quentérrimo pijama vermelho em pleno calor de dezembro. O causo: é isso que vou narrar agora, leitor.
O causo se deu assim: tarde de sol nos Pavilhões, final de semana, a gurizada correndo doidivanasmente para cima e para baixo, fazendo a festa e ligando as atenções de seus pais, todos na expectativa da chegada do Papai Noel, aquele que tem a incumbência de trazer presentes. Em dado momento, Papai Noel chegou e passou a distribuir presentes a todos os meninos e meninas que se comportaram e foram bonzinhos ao longo do ano que passou. Por coincidência, e deitando por terra a credibilidade de qualquer instituto de pesquisa, a totalidade absoluta da criançada se comportou bem e era merecedora dos presentes que Papai Noel trazia. Entre eles, meu afilhado, lógico, o João Vitor.
Papai Noel, que possui poderes extranaturais, havia deixado um presente a ser entregue ao João Vitor, o que foi feito por seus pais, lá nos pavilhões. Entregaram o brinquedo ao meu afilhado e informaram que Papai Noel, aquele ali, de barba e de vermelho, é quem havia mandado fazer a entrega para ele. Dito isso, João Vitor disparou. E disparou reto em direção ao Papai Noel. Chegou perto das barbas do bom velhinho e fez o que havia decidido fazer, em um ímpeto incontrolável: agradeceu. “Obigado, Papainoéu”, disse ele. E voltou correndo para junto de seus pais.

João Vitor é um garoto educado. Recebeu o presente e decidiu que tinha de ir agradecer. Decidiu por conta própria. Por uma questão de consciência pessoal. Porque acha que é preciso demonstrar gratidão a quem lhe faz um agrado. Tem menos de três anos de idade. Já é um cidadão. Que siga assim.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de dezembro de 2014)

domingo, 14 de dezembro de 2014

É chegado o chester

O período de final de ano ainda guarda alguns simbolismos mágicos para mim, mesmo não sendo mais criança e não tendo mais uma relação assim tão próxima com o Papai Noel. O leitor, essa criatura sempre otimista e esperançosa, imagina que, ao ler os termos que usei para abrir este texto, vou discorrer sobre os bons sentimentos do Natal e a renovação de projetos que nos assaltam as consciências na virada do ano. Só que não, desculpem, aviso desde já: vou tratar é de comida mesmo.
A magia de final de ano que me invade, leitora amiga, amigo leitor, se assenta sobre o reencontro de minhas papilas gustativas com sabores só apreciados nesta época em que o calendário exibe sua derradeira folhinha. Em especial, peru, tender, chester e bruster. Eu não sei vocês, mas eu, é só nas ceias de Natal e de Ano-Novo que devoro perus, chesters, tenders e brusters. Ah, aquela esfera de tender avermelhada toda espetada com palitinhos de cravo-da-índia como se fosse um joelho submetido a uma sessão de acupuntura, coberta com um molho preparado à base de mel e mostarda, hummm. E os brusters e chesters que se assentam garbosos no centro da mesa coberta com a mais fina toalha branca reservada para essa noite especial, exalando aquele aroma de frango chique recém saído do forno, recheado com alguma surpresa que só nossas mães, avós, sogras, tias, esposas, irmãs e cunhadas (tá, primas também) sabem fazer. Ahmmm.
Houve épocas (bem pouco tempo atrás, por sinal) em que também os espumantes (quando todos eles ainda eram denominados indiscriminadamente como “champanhes”) só molhavam nossos lábios no final de ano, mas isso, felizmente, evoluiu e hoje aprendemos a saborear esse borbulhante e refinado néctar das ninfas em todos os meses do ano, sob qualquer pretexto, o que é um avanço. Mas não me vejo abocanhando as coxas robustas de um bruster ou o peito generoso de um chester em maio, ao meio-dia de uma terça-feira qualquer. Há encantos que devem ser preservados para essas ocasiões especiais. Que o diga o peru que desde ontem ocupa toda a área física do meu freezer (por ainda poucos dias, bem o sabemos...).

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de dezembro de 2014)

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

O carnaval das agendas

Dezembro é o mês das agendas. Esquecidas ao longo dos demais onze meses do ano, colocadas a hibernar quietinhas no fundo dos balcões das papelarias, é no derradeiro mês do calendário que as agendas têm a oportunidade de despertar para a vida e fazem o seu carnaval.
Basta entrar dezembro que agendas passam a saltar indiscriminadamente em nossos colos, vindas de todos os lados. Agendas com capa de couro, agendas simples e agendas elegantes, agendas temáticas, agendas literárias, agendas com informações, agendas grandes, pequenas, médias, com pesos e medidas, com a conversão de moedas, com os dias da semana em inglês e espanhol (algumas até em alemão), agendas permanentes, agendas impermanentes, agendas com páginas em branco para anotar pensamentos profundos, agendas-diários, agendas com marcador, sem marcador, espiraladas ou em brochura, ecológicas com papel reciclado, infantis com desenhinhos fofos, empresariais sóbrias e respeitáveis, agendas ao gosto de cada freguês, em suma.
Eu fico faceiro nesta época do ano, porque me confesso um agendólatra assumido: sou viciado e dependente das agendas. Atingi tal ponto de dependência que preciso lançar todo e qualquer compromisso nas páginas da agenda, para que me lembre de cumpri-los. Se não está na agenda, esqueci. Se lancei na agenda, tenha a certeza de que cumprirei o compromisso. Não chego ao ponto de anotar lá tarefas prosaicas do dia-a-dia como escovar os dentes, tomar banho, pentear o cabelo, jantar, porque são coisas que aprendi a fazer ainda antes de me alfabetizar e de precisar de agendas. Mas não irei à dentista se isso não estiver apontado na agenda. Não pagarei as contas, não trocarei o óleo do carro, não comparecerei às reuniões, não felicitarei conhecidos pelos aniversários, essas coisas todas. Desagendado, eu não sou eu. Então, que venham as agendas! E elas vêm mesmo.

Mas vem cá, isso de coisas impressas em papel, não estava com os dias contados para acabar? Volumes físicos tácteis nos quais se lê e se escreve com canetas, não era coisa do passado? Pois é, vai ver que esqueceram de agendar essa extinção...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de dezembro de 2014)

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Do alto do cume

A vida é uma imensa sala de aula prática, pois que nos vai enfileirando lições a serem detectadas e aprendidas dia após dia, hora após hora. Se fosse exagerado, eu emendaria “a cada inspirada de ar” e ainda “a cada batida do coração”, mas deixemos de lado os exageros, que isso é também lição a ser aprendida, e das mais importantes.
O fato é que o aproveitamento das lições que a vida nos dá depende exclusivamente da capacidade que temos de refletir sobre elas e, também, de perceber quando se apresentam. Elas estão escondidas dentro do próprio ato de viver e talvez aí resida uma das funções mais importantes da memória: podermos lembrar de fatos passados e deles extrair lições para nosso cotidiano no presente.
Ontem, por exemplo, descobri que hoje, 11 de dezembro, é o Dia Internacional das Montanhas, estabelecido pela Unesco. Fiquei a pensar em montes, picos, colinas, cordilheiras, coxilhas e afins e de como essas formas do relevo estariam a celebrar sua data ao redor do planeta. Avesso a alturas como sou, evitei imaginar a mim mesmo no alto do Everest, do Himalaia ou dos Andes. Foi nisso que recordei que certa vez, décadas atrás, quando iniciava minha carreira jornalística em Candelária, aventurei-me junto a um grupo de amigos no propósito de escalarmos, em um domingo, o Cerro do Botucaraí, o pico isolado mais alto do Rio Grande do Sul, com 570 metros de altura. Só de lembrar, minha espinha gela, as mãos suam, o coração acelera.

O segredo, segundo uma amiga me disse na época, ainda ao pé do morro, é subir sem olhar para baixo. Foi o que fiz e, quando vi, estava lá em cima, com os outros, observando a maravilha da vista dali do alto. Problema foi a descida. Não tem como descer sem olhar para baixo. E aí, meus amigos, a porca torceu o rabo, porque foi quando aprendi que tudo é relativo, a começar pelos provérbios populares, como o que diz que “para baixo, todo santo ajuda”. A verdade é que a santaiada debandou de perto de mim quando iniciei a descida, mas enfim, cá estou, para contar a história. E para refletir sobre aprendizados do passado: tudo é relativo, a começar pelas frases feitas.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de dezembro de 2014)

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Chuchus e melões

Todo criador sabe que o segredo para o sucesso reside no exercício de um procedimento conhecido como “erro e acerto”. A gente até pode se convencer de que possui um talento para determinada atividade, mas essa habilidade só vai ser desenvolvida com a sucessão de tentativas de produção, quando os erros nos ensinam a aprimorar o trabalho, que vai sendo coroado com os posteriores acertos.
Beethoven não nasceu compondo sua Nona Sinfonia lá no berço, chacoalhando o chocalho. Não. Ele foi moldando seu talento com erros e acertos. Provavelmente, fez como todo mundo: escondeu os erros e exibiu os acertos, que é a dica que fica aqui de lambuja para quem quiser brincar de gênio. Van Gogh deve ter começado rabiscando uma folha em branco com lápis de cor e mostrando a obra para seu pai, que olhou estranhado e disse: “que que é isso, Vincent, uma tempestade de areia?”, quando, na verdade, o futuro gênio impressionista imaginava desenhar uma catedral gótica. Erros, acertos. Com eles, a gente chega lá.
Exemplo disso é a Natureza, que, por ser quem é, tem a primazia de não eliminar da face da Terra seus erros, permitindo que os comparemos aos acertos, a fim de comprovarmos a evolução de seu talento criador. Na questão gastronômica fica fácil observar isso. Primeiro, veio o insosso e pálido chuchu, sem gosto, sem personalidade. Para saborear um chuchu, precisamos agregá-lo a temperos e condimentos, caso contrário, teremos a sensação de estarmos a mastigar água. Mas depois veio a moranga, aquela abóbora alaranjada, saborosíssima quando refogada, misturada a um guisado ou mesmo pura. A moranga é a evolução do chuchu, assim como a melancia é o aprimoramento do melão.

Outra lição que a Natureza ensina é o perigo da soberba do gênio. Nem sempre o criador produz genialidades, e pode incorrer no risco da inversão do processo, partindo de acertos para produzir erros. A Natureza, que não esconde nada, deixa à mostra também seus equívocos. Primeiro, fez o macaco, selvagem e inocente. Mas daí foi involuindo, involuindo, até chegar aos melões e chuchus que hoje controlam o planeta. Pecado de gênio, pois não?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de dezembro de 2014)

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Paixão por Pong

Isso deve ter sido lá por 1980 ou 1981, se não me falha a memória (a memória é claro que falha, especialmente quando começa a ficar sobrecarregada com o acúmulo de vivências, como bem sabemos eu e os senhorezinhos e senhorazinhas que me leem). O fato é que, naquela época, eu devia ter uns 14 ou 15 anos e transitava na fronteira entre o ensino fundamental e o médio (primeiro e segundo graus, né, senhorezinhos). Foi aí que conheci Pong.
Aconteceu quando fomos visitar a casa de uma família de amigos de nossa família (nossos pais eram amigos e, por tabela, minha irmã e eu ficamos amigos do trio de filhas deles). Chegamos aquela noite lá e as meninas estavam estranhamente quietas, enfurnadas em uma saleta, o que não era nada comum em se tratando delas, sempre tão falantes, elétricas. Mas havia chegado o Pong, que transformara a rotina daquela casa. Ele transformaria a mim e estava transformando grande parte dos lares de todo o mundo ocidental, primeiro aos pouquinhos, depois em avalanche. Pong, o primeiro videogame comercializado pela Atari.
Bastou meio minuto para também eu viciar no Pong. A televisão transformara-se em um tabuleiro preto no qual duas barras verticais brihantes se moviam uma em cada canto da tela, atendendo aos comandos dos jogadores em um console manual, tentando rebater uma bolinha que quicava fazendo “piiing”, a reproduzir uma partida de pingue-pongue. Uau! No Brasil, o produto foi lançado como “Telejogo Philco”, e era caríssimo. A partir daquele dia, passei a visitar dia sim e dia também as minhas amigas. Eu já vinha desejando ampliar a frequência de minhas visitas antes disso, mas por andar cultivando paixonites platônicas de forma revezada por cada uma delas: Carin, Cristina, Claudia. Só que agora havia o Pong. Ah, o Pong! Que fascínio!

No final de semana, morreu o cientista alemão Ralph Baer, aos 91 anos, considerado o “pai dos videogames”. Foi ele quem inventou esse joguinho e os primeiros consoles, o Magnavox Odyssey, depois copiado pela Atari e lançado como Pong. Morreu o homem que desviou minhas atenções de Carin, Cristina e Claudia. Já o Pong... Suspiros!!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de dezembro de 2014)

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Nas ondas do mar

Informes vindos de todos os lados me dão ciência de que o litoral já anda apinhado de veranistas, nem bem entrado dezembro. O calor, o tempo firme (ao menos, enquanto redijo essas digitadas linhas), o clima natalino, a vontade de começar logo os rituais de encerramento do ano, a brisa que se transforma no nordestão mas tudo bem, o copo de caipirinha gelada vendido a preço de garrafa inteira de vodca mas tudo bem também, o cheirinho irresistível do milho cozido, o guarda-sol que sai voando, o cachorrinho tão fofinho da moça que desfila atrás dele seu bronze em fio-dental e que a gente finge que não vê, a barriga branca do senhorzinho enfiado na bermuda que a gente faz questão de não ver mas acaba vendo, a profusão de chinelos-de-dedo, a correria da criançada, o barulho do mar... ah, o mar... o mar, o mar.
Tudo isso já está rolando a poucos quilômetros daqui e eu ainda mergulhado em afazeres, em trabalhos a concluir, em prazos a cumprir, compras a fazer, contas a pagar, demandas a resolver, óleo do motor do carro a trocar, lista de presentes a solucionar, pendências a concluir, coisinhas aqui, coisonas acolá, mas a mente, a alma, o espírito e as vontades todas direcionadas às areias, essas mesmas que tocam o nosso litoral gaúcho, sempre tão desmerecido quando comparado ao resto do país, mas que todos os anos faz a alegria de tantos de nós, fielmente, com o nordestão e o pacote todo. Ah, o mar, o mar...
Às vezes fico pensando que seria mais fácil suportar essa distância se ao menos chovesse por aqui (mas não na praia, não sou estraga-prazeres e nem invejoso), pois, assim, eu não seria invadido minuto a minuto por esse clima praiano de sol, calor e brisa que permanece no meu entorno urbano de trabalho enquanto fico pensando no mar, no mar, no mar... No doce-salgado barulho do mar, nas ondas do mar, nas conchas do mar, nas areias e sereias do mar, do mar, do mar...

Se ainda não posso estar lá, ao menos inundo meus ouvidos com esse balanço de um mar imaginário. É o estímulo que necessito para solucionar as demandas e logo mais, ali adiante, molhar meus pés no mar, no mar...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de dezembro de 2014)

sábado, 6 de dezembro de 2014

Bauru honesto

Tudo exige empenho, dedicação, capricho, esforço, estudo, sangue, suor e, se necessário, até lágrimas. O mundo de hoje não tem mais lugar para chutadores e amadores, em nenhuma esfera de atuação. Não basta conhecer para acreditar que sabe fazer. É preciso habilitar-se a saber fazer. Caso contrário, morre-se na praia, ou, no melhor das hipóteses, se é atropelado pelo trem lotado das competências alheias, que estão aí, fazendo bafo na nossa nuca. E quem é que gosta de bafo na nuca? Eu não, eu não, eu não, nem eu, eu é que não...
A fim de ilustrar o argumento acima proposto, podemos deitar olhos sobre um exemplo singelo, prosaico, comum, banal. Tipo o que presenciei ontem à noite, quando fui com minha esposa jantar em um restaurante que não é nenhum dos da moda, nenhum dos dez mais citados nas pesquisas de preferência, mas, sim, um honesto e esforçado estabelecimento de bairro, daqueles em que a simpatia do atendimento rima em total sintonia com a qualidade do que é posto na mesa (e com preços justos, justíssimos, por sinal). Chegamos, sentamos, recebemos o cardápio e escolhemos: bauru com molho e acompanhamentos. Pedido simples, corriqueiro, humano e brasileiro.
E o que aconteceu? Ora, surpresa das mais agradáveis: fomos brindados com um bauru bem proporcionado (eu ia escrever “bem fornido”, mas mudei de ideia), elaborado a partir de uma peça de filé de primeira, coberto com generosas fatias de presunto e queijo e um molho vermelho de dar água na boca (inundou minha boca ontem, inunda minha boca agora, enquanto escrevo e evoco a lembrança), guarnecido por uma tigela de arroz branquinho e soltinho e dois pãezinhos aquecidos na manteiga e salpicados com orégano. Aiaiaiaiai, que manjar dos deuses!

E onde a frescura, onde o nhe-nhe-nhe, onde o balagandã e o fru-fru? Não havia nada disso. Havia, sim, a expressão materializada de um trabalho bem feito, sério, profissional, diferente de muitos outros pseudobaurus a que já fui apresentado por aí. Não basta achar que sabe fazer. É preciso saber fazer mesmo, de verdade. A era da enganação está perdendo terreno. Posso dizer isso de barriga cheia.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de dezembro de 2014)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Não suspeitou desde o princípio

Apesar de ter encantado crianças de várias partes do mundo ao longo das últimas décadas, o personagem televisivo “Chaves” não tinha em mim um integrante de suas fileiras de fãs. Creio que esse descompasso se explica pelo fato de que, quando os episódios começaram a ser transmitidos por canais brasileiros de televisão, especialmente o SBT, em 1984, eu já era bem grandinho e estava preocupado com o início de minha vida de estudante universitário. Não criei, portanto, empatia com o universo de Quico, Chaves, Seu Madruga, Chapolin Colorado, Chiquinha, Dona Florinda e outros.
Mesmo assim, tocou-me a morte do ator mexicano Roberto Bollaños, aos 85 anos de idade, ocorrida em 28 de novembro, justamente por ser ele um ícone da cultura pop e tão significativo para a história pessoal de tanta gente que conheço. Nunca assisti a um episódio inteiro de Chaves, mas o poder de irradiação dos jargões dos personagens ultrapassava barreiras e não foram poucas as vezes que inseri em minhas falas as famosas “suspeitei desde o princípio” e “não contavam com a minha astúcia”. Dessa forma, sempre atento ao que se passa por aí, não pude deixar de parar para refletir sobre algo que li ainda ontem, relativo ao caso da morte de Bollaños.
Carlos Villagrán, o ator que interpretava o bochechudo e esbugalhado Quico, está a se lamentar publicamente pelo fato de não ter conseguido se reconciliar com Bollaños antes da morte dele. Os dois atores se desentenderam ainda no início dos anos 1980, o que ocasionou a saída de Villagrán do seriado. Voltaram a se falar uma que outra vez, décadas depois, mas a reconciliação mesmo jamais aconteceu. E agora, Villagrán chora sobre o leite derramado que ninguém se preocupou em tentar colocar de volta na leiteira. Tarde demais.

Tocante o compartilhamento que Villagrán faz em público de seu arrependimento. Especialmente por servir de alerta a cada um de nós, junto a um convite para refletirmos sobre o que estamos deixando passar em termos de questões mal resolvidas. O tempo é inclemente e não faz paradas para a reflexão. Temos de refletir e agir com o bonde em movimento. Mais tarde será tarde.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de dezembro de 2014)

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Rumo ao Beleléu

Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. E um viva às frases de efeito, que nos socorrem generosamente sempre que a criatividade pega as malas e vai-se ao Beleléu (que é que tanto faz minha criatividade lá em Beleléu é algo que ainda terei de investigar, oportunamente). Mas o lugar-comum a que lancei mão ali na abertura deste texto se justifica porque desejo tecer um comentário sobre a importância de sermos prudentes (como dizia um selvagem amigo meu chamado Oscar) em tudo, sem exageros, sem obsessões.
O equilíbrio é sempre a melhor prevenção contra um joelho esfolado (essa inventei agora, palmas, palmas). Digo isso porque, dias atrás, um amigo meu me alertava sobre os riscos à saúde existentes no fato de eu portar o telefone celular dentro do bolso esquerdo das minhas camisas. “Trata-se de uma potente fonte de energia e isso, quando acionado, dispara fortes descargas elétricas que podem não fazer bem ao coração”, informava meu amigo, no que está coberto de razão. Sua admoestação me fez refletir e, desde então, ando portando meu celular dentro de uma pasta que carrego comigo para cima e para baixo quando me lanço às ruas ao léu (não em Beleléu, lugar mais belo do que o Léu, como o nome já indica), repleta de utilidades como sombrinha azul-clarinha para espantar a chuva, bloco de notas, caneta para escrever as notas no bloco de notas, livro para ler quando espero (nas salas de espera, nas lojas em que a esposa se some, nos cafés antes das reuniões), balinhas refrescantes, pen drive e outras coisitas.
Estava eu feliz e contente com minha nova atitude quando chega a notícia de que um cidadão caxiense, dias atrás, ao reagir a um assalto em um estabelecimento comercial, levou um tiro no peito desferido pelo criminoso e só não morreu porque a bala atingiu o aparelho celular que ele portava. Onde? Sim, ali mesmo, no bolso esquerdo da camisa! Não fosse isso, o sujeito já teria ido se encontrar com a minha inspiração lá em Beleléu! E agora, como é que fica? Bom, fica tudo igual, o celular segue na pasta. Afinal, pensando bem, jamais reagirei a um assalto. Prefiro seguir por aqui mesmo, ao léu.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de dezembro de 2014)

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Compromisso intransferível

O convite estava agendado há mais de mês e não havia a menor possibilidade de ser negligenciado. Chovesse canivetes, morresse o papa, revolução eclodisse, a cobra fumasse, corruptos se arrependessem, o sol congelasse, o sertão virasse mar ou o mar virasse sertão, só havia uma única alternativa: comparecer. Assim, comparecemos, minha esposa e eu, à apresentação de final de ano organizada pela escolinha maternal que nosso afilhado de dois anos e meio frequenta, no domingo que passou. Afinal, não basta ser dindo, tem de participar.
Meu afilhado foi fantasiado de leão, uma vez que esse é um personagem que ele encarna com perfeição no dia-a-dia, especialmente quando me vê e se põe a rugir exibindo a fileira de dentinhos de leite e franze o nariz como se fosse o focinho de um felino bravo e faminto. As mãozinhas em garras completam a performance, valorizada com o meu susto e minhas fugas tresloucadas.
Assistimos, então, à apresentação preparada pelas profes, reunindo a gurizada dos maternais, dos berçários e do jardim no palco, entre leões, homens-aranha, homens-de-ferro, princesas, brancas-de-neve, batmans e outros personagens, uns cantando direitinho a música ensaiada, outros batendo palmas, alguns olhando para trás, vários deles abanando para papais, mamães, dindos e titios na plateia, um que outro estaqueado feito estátua frente a tantos adultos sorridentes olhando para eles, tudo devidamente registrado em aparelhos celulares, máquinas fotográficas e tablets, para a posteridade.
Encerrada a parte oficial, partimos para o que realmente interessava: as crianças rumo aos brinquedos instalados no ginásio e os adultos rumo ao setor dos comes e bebes, onde o cachorro-quente e o algodão-doce estavam divinos. Difícil foi resistir ao convite insistente do afilhado, que queria me puxar para dentro de um cercadinho em que mal cabiam ele e um amiguinho, pulando alegremente sobre uma cama elástica. “Didu, enta!”, foi o convite. Óbvio que eu não cabia ali dentro, apesar da vontade. Mas valeu o presente de ter sido visto pela dupla como um igual, cuja companhia no brinquedo lhes seria bem-vinda. Foi uma honra.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de dezembro de 2014)

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Longa vida a nosotros

Gosto de ler essas matérias sobre aumento da expectativa de vida dos brasileiros, a partir dos dados que o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulga sazonalmente. A mais recente pesquisa, divulgada ontem, indica que os brasileiros nascidos em 2013 têm uma expectativa de vida de 74,9 anos (já o que significa esse 0,9 eu não entendo: 74 anos e nove meses ou 74 anos e uma nona fração de 12 meses, o que daria... sei lá quantos meses?), ou seja, 03 (três meses será, ou um terço de 12, que seriam quatro meses?) a mais do que a pesquisa anterior, que previa 74,6 anos.
De qualquer forma, são praticamente 75 anos de expectativa de vida para quem nasce no Brasil nos dias de hoje. Melhorou bastante em relação às últimas décadas. Como não nasci em 2013, fiquei tentando encontrar dados que indicassem qual a minha expectativa de vida, nascido eu no mesmo Brasil, porém, na década de 1960 do século (e do milênio) passado. E encontrei. Vou compartilhar.
Os dados são de 2012, mas servem. Pessoas na faixa dos 30 anos têm uma expectativa média de mais 47,4 anos (essas frações são incompreensíveis) de vida. Quem está na faixa dos 40, poderia viver em média mais 38,3 anos e, os de 50, mais 29,6 anos de vida pela frente. Estou em uma faixa intermediária e optei por aplicar ao meu caso o índice mais alvissareiro, naturalmente. O fato é que esses índices vêm crescendo a cada divulgação de nova pesquisa. Em 2002, a expectativa geral de vida era de 71 anos. Ou seja, ganhou-se quase 4 anos a mais em apenas uma década. Onde vamos parar? Qual o limite?

O fato é que os avanços da medicina, a conscientização sobre hábitos que levam a uma existência mais saudável, a melhora das condições de vida da população, são fatores que influenciam diretamente nesses índices de longevidade. Todos os meus avós, nascidos nas décadas de 1910 e 1920, ultrapassaram a barreira dos 80 anos de idade, o que me dá esperanças entusiasmantes, caso eu siga olhando para os lados ao atravessar as ruas. Todos desejamos vida longa. O que me pergunto é, dentre esses todos, quais estão realmente preparados para envelhecer.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de dezembro de 2014)

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Lixo descartável

Poucas cenas me deixam tão incomodado quanto presenciar pessoas arremessando lixo pela janela de um veículo em movimento. Papel de bala, casca de banana, bagana de cigarro, sacolas plásticas, latinha de refrigerante, já vi de tudo. Não importa a marca do carro nem seu ano de fabricação, muito menos a condição social dos ocupantes do veículo. A porquice, infelizmente, é democrática e atinge igualmente a todos.
Minha vontade, nesses casos, seria possuir superpoderes para conseguir sair de meu próprio carro, juntar a lixeira descartada em via pública, voar e emparelhar com o veículo dos porcos ambulantes, arremessando de volta pela janela tudo aquilo que eles expeliram em público logo ali atrás. Infelizmente, não possuo superpoder nenhum, e tenho de me conformar em observar quieto à repetição de cenas degradantes como essa no cotidiano do trânsito das cidades e das estradas. Como sabemos que o exemplo vem de casa, esses condutores estão repassando seus maus hábitos a seus próprios filhos ali no banco de trás, que naturalmente irão reproduzir a porcalhice dali em diante, lógico.
Jogar lixo pela janela de seu carro pode significar muitas coisas, e os psicólogos aqui que me socorram. Não só os psicólogos, mas também os sociólogos e os doutores em evolução do comportamento cultural de uma sociedade. Nós, brasileirinhos, temos uma relação de completo descaso para com aquilo que é público. Na via pública, jogamos lixo. Na vida pública, amealhamos o dinheiro público. Quando protestamos, quebramos tudo. Não temos zelo por nada, exceto por aquilo que nos pertence. E se o que for público puder ser amealhado para nosso patrimônio pessoal, o fazemos e, aí sim, passamos a cuidar como nosso. Mas enquanto for público, desdenhamos, sujamos, depredamos, estelionatamos, roubamos, espezinhamos, ignoramos.

O que esquecemos e ignoramos é que cada um de nós, cidadãos, também somos um bem público. As pessoas da nação são o maior bem da nação, por isso tantas leis que protegem nossas vidas e nossos direitos. Pena que, agindo assim, nos transformamos em bens de quinta categoria e, esses sim, plenamente descartáveis.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de dezembro de 2014)