terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Visão de carona

“Borracharia dia e noite”, dizia a placa à beira da estrada. “O que será que fazem ali? Enchem a cara de cerveja do raiar do sol até o avanço da madrugada, se emborrachando ininterruptamente?”, me questionava eu, em silêncio, sentado no banco do carona. Pensamentos assim (e alguns outros bem mais filosóficos, profundos e humanos, garanto) me visitam a mente quando tenho a (rara) oportunidade de passear no banco do carona. Como é bom estar no banco do carona.
Desobrigado a atentar para as armadilhas do trânsito frenético, a conduzir o veículo pelas quebradas corretas que desembocarão no destino almejado e a convergir todos os sentidos e esforços na materialização de um trajeto seguro, a chance de poder aninhar-se no banco do carona representa para mim um momento inegociável de relax mental capaz de proporcionar uma recarga de bateria psíquica única e inigualável. Se confio no (na) motorista, largo a alma a flanar pelas paisagens urbanas ou rurais que vão desenrolando seus flagrantes de humanidades à medida em que são tocadas fugazmente pelo crivo de meu olhar atento e descansado.
A moça que passeia com o cãozinho pela calçada; o casal maduro de abrigo, boné e óculos escuros, a fazer sua caminhada diária; o velhinho que não se desapega do hábito de levar a cadeira para a varanda no fim de tarde para testemunhar a vida sorvendo chimarrões silenciosos; a criança que fez arte e sai correndo marota porta afora, deixando para dentro da casa os gritos maternos; a silhueta do cavalo que pasta solitário no alto da campina; a casa de joão-de-barro que se equilibra no alto do poste de luz; a casinha centenária encolhida entre dois prédios no trajeto diário e que sempre me fugiu às vistas de motorista; as placas com dizeres esdrúxulos que são engraçadas justamente por terem sido elaboradas sem a intenção de provocarem graça alguma, como a “borracharia dia e noite” ou a “comida por a quilo”.

O escritor francês Marcel Proust, no início do século passado, temia, com a popularização dos automóveis, que a velocidade das viagens dizimasse nas pessoas a capacidade de observarem as paisagens do mundo com a mansidão necessária. Não proponho a volta das charretes, mas talvez eu devesse viajar mais de ônibus.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de dezembro de 2013)

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

O parafuso perdido

“E aí, solucionou o seu parafuso?”, me pergunta, cheio de simpatia, o frentista do posto de gasolina em que abasteço meu carro. Primeiro, a surpresa por ele ter me reconhecido (“Ah, aí está o cliente do parafuso”) em meio a tantos outros motoristas que conduzem suas conduções até ali para solucionar as mais variadas demandas automobilísticas. Depois, o constrangimento de ter de dar explicações para que a esposa, sentada ao lado, conseguisse entender o que é que andava se passando, uma vez que, nesses dias de estresses característicos de final de ano, ela mesma tem desconfiado de que eu me comporto como se estivesse com um parafuso a menos.
Na verdade, o que existe é um parafuso a mais nessa história. Um parafuso que, não sei quando, nem onde, muito menos como (e nem ouso querer refletir sobre o por quê), botou-se a mirar o pneu traseiro direito de meu carro e cravou-se nele há não sei quanto tempo. Todos sabemos (ou deveríamos saber) que a coexistência entre parafusos e pneus não é pacífica, apesar de íntima, uma vez que o parafuso, devido à sua natureza penetrante, não consegue reprimir o ímpeto de, sempre que em contato com um pneu, perfurar-lhe a carne de borracha e fincar-se fundo nele, como um prego a supliciar um crucificado, sem dó, nem piedade.
O pneu, uma vez empalado pelo objeto pontiagudo e aparafusante, tem a tendência de ir-se esvaziando aos poucos exatamente como a carne que sangra, e que diabos isso de eu não conseguir represar metáforas crucificantes nessa época natalina, deixemos disso antes que mal me entendam. Resultado: um belo dia, o motorista chega no carro e depara com um dos pneus (o empalado, ou o emparafusado) murcho e chocho. Com o pouco de ar que ainda lhe resta nas entranhas, dirige-se até o posto mais próximo onde pede ao moço que o calibre de emergência e, ao fazê-lo, ele, o moço do posto, aponta o problema: “Este pneu está furado. Tem um parafuso nele. E deve estar ali há tempo, o ar é que foi saindo aos pouquinhos”, sentencia.
Resolvido o mistério: então foi ali que o parafuso que eu dei de ter a menos se refugiou quando resolveu libertar-se de mim. Quando for ao borracheiro consertar o estrago, pedirei para que me guarde o parafuso. Minha esposa, eu sei, anda desconfiada de que posso precisar dele para reequilibrar a quantidade dos que ela julga deveriam existir em minha cabeça, de onde não haveria nunca de ficar com nenhum a menos.
***

Gilberto Blume retorna de férias e retoma a partir de amanhã este espaço. Grato a ele pela confiança e aos leitores pelo prestígio.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de dezembro de 2013)

O segredo da árvore

Os natais de minha infância, agora olhando em retrospecto, eram ecologicamente incorretos, uma vez que passava-se o machado em pinheiros de verdade para que fossem transportados até as salas das casas onde, imponentes e majestosos, plantavam-se perto da lareira à espera dos adornos que os transformariam em árvores de Natal. Muitas vezes o pinheiro foi retirado do pátio de casa mesmo, onde dois exemplares da espécie viviam o ano todo mais ou menos alheios à nossa indiferença. Outras vezes meu pai adquiria o pinheirinho na chácara de um cidadão que os comercializava nessa época do ano.
Questões ambientais à parte, o fato é que agora, quando chega dezembro, minha memória afetiva evoca do fundo do baú de minhas lembranças o perfume característico de árvore que invadia a casa toda quando o pinheiro era arrastado porta adentro, credenciando-se como membro da família ao longo dos dias que antecediam e sucediam a data natalina. Seu tronco era afixado em uma caixa de lata municiada de pregos internos, dentro da qual colocávamos tijolos para sustentar o equilíbrio da estrutura. Enchíamos de água o latão e minha mãe jogava lá dentro algumas pastilhas de aspirina, a fim de manter o vigor da árvore por mais tempo. Verdade ou mito, certeza mesmo é de que pinheiro lá em casa jamais sofreu de dor de cabeça.
Depois vinha a melhor parte: enfeitar a árvore com os arranjos e penduricalhos que a mãe mantinha o ano todo guardados sabe-se lá onde, em esconderijo bem distante de nossos olhos infantis. Assim, o encanto e a magia se renovavam a cada ano, com a família exercitando unida o ritual de engalanamento do pinheiro. E lá surgiam as bolas coloridas, as estrelas, os papais-noéis, as velas, cada enfeite ganhando seu lugar entre galhos e espinhos, mesclando-se ao verde silvestre da árvore. A seu pé, iam chegando as figuras do presépio, que eu tinha fissura em montar.

Voltando a olhar em retrospecto, creio que residia ali, naquele rito, a essência do significado do Natal: uma família enfeitando o pinheirinho para receber o Papai Noel e refletir sobre o significado verdadeiro da data cristã. Ecologicamente incorreto, bem, que fosse. Pode-se obter hoje o mesmo efeito psíquico com uma árvore sintética. O segredo da coisa continua morando no mesmo lugar: o interior de cada um. Bom Natal!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de dezembro de 2013)

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

O abre-alas

Transitava por uma das estradas da Serra, dessas estreitas cheias de buracos, desprovidas de faixa dupla e de terceira pista, nas quais formam-se extensas fileiras de veículos penando a vinte por hora atrás de caminhões de carga. Paciente e zeloso, conduzia meu carrinho ensanduichado entre um ônibus que vinha atrás e uma jamanta uruguaia com “freno a aire” à frente. Alternava primeira com segunda, segunda com primeira, freio, embreagem, segura um pouco, olha só o louco que vem de trás querendo forçar espaço para ultrapassagem onde não há lugar para nem mais um mosquito.
De repente, pelo retrovisor, percebo uma movimentação diferente: todos os veículos atrás de mim saindo para o lado, ocupando parte do arremedo de acostamento, para dar passagem ao que vem subindo célere, determinado, convicto: um tanque de guerra. Isso mesmo, um verde-oliva tanque de guerra, com canhão na frente, esteiras e muito aço, abrindo alas. Surreal, onírico. Tão surreal e onírico que de fato acordo, sento-me no meio da cama, irritado com a consequência da liberdade artística total que andei delegando ao misterioso roteirista de meus sonhos. Ora essa, um tanque de guerra subindo a Serra! Só em sonho mesmo. Mas... será?
Sabemos, desde Freud e Jacó, que os sonhos contêm significados psíquicos que vão muito além da aparente insensatez gerada por roteiros malucos. Quem sabe não tenha eu recebido uma dica para a abertura de um lucrativo negócio, um filão de mercado que ninguém ainda atinou em explorar? Abrir uma revenda de tanques de guerra, por exemplo. Não faltariam clientes interessados em adquirir esse tipo de veículo justamente para enfrentarem melhor a guerra declarada do trânsito nas estradas brasileiras. Na verdade, para uma certa espécie de motoristas, só o que lhes está faltando mesmo são os tanques blindados e ameaçadores, porque o comportamento assassino, imprudente, arrogante e incivilizado, adequado para dirigir esse tipo de condução, eles já possuem, e de sobra.

Já que a ordem nas estradas e nas cidades ultimamente tem sido a do salve-se quem puder, e saiam da frente que eu estou chegando, e te escapa que a faixa é minha, e tira essa carroça que o meu é mais lindo e mais potente e maior e não quero nem saber, que tratem então de usar tanques de uma vez por todas. E mantenham os canhões apontados, que é para espalhar logo o terror, já que ninguém mais precisa fechar os olhos e deitar na cama para vivenciar pesadelos nesses dias de hoje.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de dezembro de 2013)

domingo, 22 de dezembro de 2013

O ralho do carteiro


Dia desses recebi uma multa de trânsito. Para poder escrever esta crônica, sou obrigado a admitir, caro leitor, que cometi uma infração e que sou culpado. Não deveria, eu sei, mas aconteceu. Passei a 67 km/h em um trecho no qual só poderia trafegar a, no máximo, 60 km/h. Distraí-me, voei as tranças acima do permitido e a lombada eletrônica deu-me no lombo. Paciência. Paga-se e procura-se redobrar a atenção para não repetir a façanha. Até aí, tudo certo.
Problema mesmo é o carteiro que distribui a correspondência no meu bairro. Ele faz cara de brabo quando vem entregar multa. Para receber a notificação, é preciso assinar o nome num papelzinho na prancheta dele. Ele chega de moto, buzina na frente de casa, me espera sair porta afora e pergunta, inquisitivo, em tom de Torquemada: “Senhor Marcos Fernando?”. Pois sim, sou eu. Apresento-me já meio de orelha baixa, visualizo o logotipo do Detran numa das faces do envelope e entendo tudo. “Lá vem multa”, articulo, tentando estabelecer contato e empatia enquanto o carteiro, compenetrado e mudo, preenche números de protocolo no formulário, a moto com o motor ligado, barulhando defronte ao portão, fazendo questão, parece, de anunciar a toda a vizinhança que “o senhor Marcos Fernando aí andou levando multa”.
E pensa mais o carteiro, enquanto escreve, escreve, escreve com a caneta Bic na prancheta. Amuado do lado de cá da cerca, aguardo a entrega do papel enquanto escuto na alma os pensamentos irados do carteiro: “Brincadeira esses caras, aí. Ficam cometendo infração e depois eu é que tenho de carregar as multas deles pela cidade. Não me interessa se é infração leve, média, grave ou gravíssima. Multa é multa. Fez o que não devia. Não se comportou direito. Faz babada e depois eu é que tenho de ficar trazendo primeiro a notificação para defesa e, mais tarde, retornar aqui de novo para trazer a guia de recolhimento. Por que é que não anda na linha? Tudo bem ter de carregar o malote com correspondência, com conta do cartão de crédito, conta do telefone, da tevê a cabo, mala-direta, cartão de Natal, a revista Veja, a Playboy... ah, não, a Playboy é do vizinho da frente, mas pô... brincadeira esses caras”.

Recebo o papel, assino na linha pontilhada e ele arranca, a moto martelando em meu ouvido as reprimendas surdas que só eu escutei. Tenho andado direitinho desde então. Que medo que tenho desse carteiro.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de dezembro de 2013)

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Mal na foto

A Senhora X e eu fomos colocados em contato por intermédio de uma amiga em comum sabedora de nosso interesse pelo desenvolvimento de determinadas pesquisas históricas. Por e-mail, trocamos informações preliminares e marcamos de nos encontrar certa tarde na casa dela, a fim de nos conhecermos e darmos início a uma parceria que viria a ser útil a ambos. Até aí, tudo bem. Ela me recebeu efusiva, feliz por me ver em pessoa, leitora que se disse ser de meus textos aqui, acolá e alhures. Problema foi quando apareceu o marido.
Também simpático, ele chegou na sala, apertou minha mão, olhou-me fixo nos olhos por alguns instantes, observou minhas feições e sentenciou: “Você não se parece com a foto do jornal”. Desconcertado, pensei rápido e apelei para meu tradicional humor duvidoso: “Sim, o senhor tem razão. Sou mais bonito ao vivo”. Ele deu uma risadinha e saiu da sala, deixando-me com a impressão de que discordava de meu argumento.
Porém, o que o marido da Senhora X conseguiu foi infestar minha orelha com pulgas. Por que diabos eu haveria de não me parecer com a fotinho que encabeça ali a coluna? Estaria ela desfocada? Embaçada? Aguada? Ou pior: e se nada houver de errado com a foto, mas sim com minha imagem real ao vivo? E se o aguado, o desfocado e o embaçado for eu mesmo, em carne e osso e óculos?
Procuro me confortar recordando que já houve vários casos em que desconhecidos me reconheceram na rua justamente devido à foto no jornal. Tudo bem que certa vez um deles me cumprimentou entusiasticamente por uma crônica maravilhosa que na verdade fora escrita pela Maria Helena Balen. Recebi o elogio constrangido e me ralando de inveja da Maria Helena, naturalmente. Mas não quis esvaziar o entusiasmo do leitor em relação ao texto que, de fato, era ótimo, como não poderia deixar de ser. Fico até hoje me segurando para não telefonar à Maria Helena e perguntar se já ocorreu de ela receber cumprimentos equivocados (e entusiasmados) por escritos brilhantes de minha autoria atribuídos a ela, mas temo descobrir que “não, nunca, querido, mas não se preocupe, você escreve direitinho”.

Isso tudo me faz desconfiar de que talvez eu possa estar mesmo meio mal na foto. Preciso me parecer visualmente comigo mesmo, e urgente. Ficarei assustado se amanhã ou depois alguém passar pela rua e me cumprimentar dizendo: “Olá Maria Helena, belo texto hoje”!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de dezembro de 2013)

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

O engano do Soiza

Acredito que eu deveria ter por volta de uns dez anos de idade quando meu pai chegou em casa uma certa manhã carregando aquela grande caixa de papelão e a depositou sobre a mesa da varanda. Fui ver o que era e deparei com um punhado de pintinhos de um dia acotovelados ali dentro, formando uma massa amarela compacta de pios, penugens e olhares aterrados. Quis saber para que aquilo e meu pai me explicou que os havia comprado a fim de leva-los à fazenda que possuía no interior de São Borja, onde esperava-se que se transformassem logo em frangos e, a seguir, em galinhas poedeiras.
“Com sorte, haverá um ou outro galo no meio desse bando”, disse ele. Fiquei impressionado com o fato de ser possível “comprar vida”, expressão que utilizei na época. Fascinado com a novidade, passei o restante da manhã em volta da caixa, observando os pequenos serezinhos que recém haviam vindo ao mundo e que ignoravam, temerosos, o destino que lhes era traçado. Indefesos, aconchegavam os corpinhos minúsculos e frágeis uns aos outros, na busca instintiva por proteção, segurança, amparo. Eu, enorme para eles, parecia representar a encarnação de um deus poderoso capaz de, em um gesto, ceifar-lhes a vida a meu bel prazer, a qualquer instante. A ideia causou-me mal-estar e ampliou a empatia que eu ia nutrindo por aquelas dezenas de bichinhos.
Um deles, em especial, me chamou a atenção. Parecia ser alguns milímetros mais alto do que os demais e se destacava na multidão de pintos não só pela altura, mas também pelo comportamento: pouco se mexia e ficava estático em um canto da caixa, não procurando os companheiros e dando a impressão de ser também rechaçado por eles. O dó que senti da criatura foi tamanho que pedi a meu pai para ficar com ele em casa. Ele concordou e foi assim que o bicho se transformou em pinto de estimação. Como era maior do que os outros, tive a certeza de que se tratava de um galo, e batizei-o de Soiza (não me perguntem a razão do nome).

Em poucas semanas, já apartado dos seus irmãos que seguiram para São Borja, o grande e tímido Soiza virou frango e, alimentado com ração e carinho, não demorou a se transformar em uma bela e ruiva... galinha! Pois é, aprendi ali, na prática, que as aparências podem enganar. Meu galo era galinha, mas continuei gostado dele (dela) e o nome Soiza permaneceu até o dia em que desapareceu do pátio em uma das visitas da minha avó, expert em panelões maravilhosos de galinhada. Afinal, Soiza, há um destino a ser cumprido...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de dezembro de 2013)

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Dica das boas

Se eu possuísse o lirismo e a mansidão de um Rubem Braga, eu conseguiria escrever crônicas líricas que mansamente pediriam permissão para adentrar como visitas as salas das almas de meus leitores a fim de, ali assentadas, transbordarem para eles as pequenas grandes coisas da existência humana que passam despercebidas a todos, menos a um cronista da cepa dele. Se eu tivesse a cultura, a inteligência e o refinado humor de um Luis Fernando Verissimo, produziria para meus leitores textos hilariantes, ágeis e profundos, capazes de divertir ao mesmo tempo em que proporcionariam, aos mais sagazes, pistas para a reflexão sobre assuntos os mais cruciais da existência humana.
Fosse eu dotado da paixão profunda que um Antônio Maria acalentava pelo tema do amor, seus derivados e múltiplos desdobramentos, botar-me-ia também a redigir crônicas singelas e saborosas, muitas vezes repletas de personagens cativantes pinçados das esquinas da vida real e transformados em personas literárias, a fim de compartilhar com meus leitores os questionamentos que fazemos todos nós, humanos, que amamos amar. Quiçá fosse eu agraciado com o estilo proustiano de longo fôlego igual ao João Bergman, formataria, a exemplo dele, crônicas satíricas nas quais a forma da escrita abusando do uso impudico das vírgulas causaria assombro e riso no público, que acompanharia os períodos intermináveis só para ver no que iria dar o malabarismo maroto do autor daquelas linhas nas quais o prazer mesmo residiria em ler o dito pela forma do dito e menos pelo conteúdo do que ali se diria, e ponto.
Tivesse eu credencial suficiente de sensibilidade para esmiuçar a imensidão das nuances do universo feminino, faria coro aos textos de Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector e Martha Medeiros, que escreviam e escrevem com essa força feminina tão característica e tão profunda, capaz de arrebatar almas e pensamentos de quem for gente o bastante para com elas respirar o sopro de vida que emerge das linhas que tecem. E falando em sensibilidade, que textos não faria, se possuísse ao menos alguns quilates daquela que caracterizava um Caio Fernando Abreu, um Vinícius de Moraes, um Carlos Drummond de Andrade, um Fernando Sabino.

Mas tudo bem. Sendo o que sou, escrevo o que posso e, pelo menos, sirvo de bandeja ao leitor uma boa lista de dicas de leitura aptas a lhe fazerem a melhor das companhias aos meses de sol, sal, sorvete e mar.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de dezembro de 2013)

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Sorvete de queijo

Uma das (incontáveis) vantagens da chegada do verão é que as pessoas param de me olhar estranho por eu estar comendo sorvete. Verão é sinônimo de gente circulando de corpo bronzeado à mostra, os passos cadenciados, a degustarem essa maravilha da inventividade humana que se nos apresenta sob os mais variados formatos, cores e sabores. Eu, que sou um fissurado por sorvete, sou-o (“sou-o”, Sr. Aurélio???,bem, que seja) tanto que pratico o consumo da gelada iguaria sob qualquer clima ou temperatura.
Pouco se me dá que seja inverno. Mando bala no sorvete mesmo assim. Pouco se me dá que neve lá fora, que chova, que haja raios e trovões, que caia granizo ou a seca grasse (”grassar”, Sr. Aurélio? Bom, que grasse), que a neblina assalte a Serra, que os ventos se façam uivantes. Seja como for, o que quero de sobremesa é sorvete. Sobremesa de verdade, para mim, é “sorvemesa”, e devoro sorvete a qualquer hora do dia.
Mas confesso que me sinto assim meio desamparado pelo fato de as pessoas deixarem de me olhar estranho quando devoro sorvetes no verão, pois que já andava acostumado a receber olhares de estranhamento ao desfilar de capotão e guarda-chuva no inverno pela Júlio de Castilhos saboreando, faceiro, uma casquinha de sorvete. “Não mente, Marcos, ninguém vende casquinhas de sorvete no auge do inverno em Caxias do Sul”, dirão vocês, leitores incréus. “Ah, vocês não sabem de nada, seus incréus”, responderei eu, enigmático, deixando a coisa no ar e me refugiando na dúvida que habita as sempre providenciais reticências de final de parágrafo...

É certo que as pessoas continuam tendo um desfiladeiro de razões para me olharem estranho mesmo que eu não esteja consumindo sorvetes no inverno, mas sim no verão, como todo mundo. Mas o fato é que, no inverno, fica mais fácil detectar a razão do olhar estranhado dirigido a mim quando sei que ele se dá pelo fato de eu estar a lamber casquinha de sorvete sob aquelas temperaturas que todos bem sabem quais são. Para seguir mantendo a coisa sob os domínios da área sorvetal, pus-me então a apreciar sorvetes de sabores esdrúxulos, e agora desfilo garboso e bem estranho, apesar do verão, a apreciar sorvetes de milho-verde (nham), de queijo (o melhor de todos), de melancia, de maçã-verde, de amendoim... Afinal, ficaria muito estranho, de uma hora para outra, deixar de ser estranho.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de dezembro de 2013)

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Fechando o tempo

Estou revoltado. E faz tempo. E revoltado exatamente com o tempo. Não com o tempo cronológico, esse passar das horas que vai enrugando minha pele e esbranquiçando os meus cabelos, me deixando cada vez mais velho. Não, com isso não. Tá, um pouquinho também com isso, admito, mas o foco da revolta hoje é outro. É com o tempo meteorológico. Na verdade, minha revolta é contra a meteorologia. Contra a previsão do tempo. Eu não acredito em meteorologia, e isso é o que me revolta.
Não acredito na capacidade que os meteorologistas alegam ter de conseguirem prever com antecedência de dias o comportamento do clima. Não me venham dizer hoje, segunda-feira, que daqui a três dias, na quinta, vai chover. Admitam: vocês não têm capacitação para tanto. E não é culpa ou incompetência dos meteorologistas, em cuja boa-fé e esforços eu acredito e admiro e respeito. Trata-se apenas de admitir que nós, seres humanos, ainda não alcançamos uma tecnologia científica capaz de oferecer o serviço a que a meteorologia se propõe.
Em resumo: a previsão do tempo é tão científica quanto as profecias de Nostradamus. Deveríamos, aliás, rebatizar a coisa como profecia do tempo, e não previsão. Dia desses, dei-me ao trabalho de acompanhar o andamento da página do tempo nos jornais. Na segunda-feira, os meteorologistas previam não só o comportamento do clima ao longo do dia, como também já se adiantavam em dizer o que iria acontecer no restante da semana. Pois que, assim, na segunda, preconizavam sol para terça e chuva de quarta a sexta. Muito bem. A terça, no entanto, amanheceu com chuva. Já a página meteorológica do jornal na terça, afirmava que sim, choveria no dia (ontem, dizia que faria sol) e que haveria sol de quarta a sexta, desdizendo totalmente a previsão da semana do dia anterior. Tá, mas e aí? Qual das páginas está valendo?

Sem falar no aplicativo de meteorologia baixado em meu tablet. Ele faz a mesma coisa: (des)prediz o (mau) comportamento do clima para a semana toda, e ainda ousa afirmar o estado do tempo em tempo real. Só que dia desses, aquele solzão de fritar formiga no paralelepípedo lá fora, o aplicativo tentava me convencer de que chovia! Foi o cúmulos nimbus! Excluí o aplicativo e liguei para minha sogra. “Não, Marcos, amanhã não chove”, disse ela. E não choveu. Não, ela não é meteorologista. A ciência dela chove vida mesmo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de dezembro de 2013)

A hora certa

Tenho uma mania que me inferniza: gosto de chegar no horário marcado. Mais do que mania, creio que a coisa já assumiu em mim aspectos de compulsão, se é que manejo bem os jargões psicológicos. De qualquer forma, o que interessa é isso: sou um escravo da hora certa, uma vítima da autoimposta obrigação de não chegar atrasado. Fico ansiado à morte se percebo que estão à minha espera. Prefiro esperar a ser esperado.
Há vezes, portanto, em que tenho de aguardar muito, pois nem todos (quase ninguém) penam a mesma sina que eu e protagonizam atrasos memoráveis para reuniões, cafés, bate-papos, tele-entregas, prestações de serviços, consultas, entrevistas, aulas, o escambau. Sabendo disso é que porto sempre comigo algum livro e tem sido assim, ao longo dos anos de espera, que venho conseguindo avançar bastante nas leituras, o que, ao menos, se configura em efeito colateral pra lá de benéfico. Mas não justifica os atrasos alheios, que fique claro.
Muito mais do que chegar na hora marcada, minha obstinação por cumprir o horário é tamanha que, via de regra, eu me materializo nos lugares antes, bem antes (“muuuitooo anteeees”, diria minha esposa, a quem vivo irritantemente a apressar) do que o necessário. Dez, quinze minutos antes, são fichinha. Normal é me verem ali plantado feito uma samambaia esperante meia hora antes do espetáculo, do café, da entrevista, da consulta, do escambau, como já disse antes, em clara pobreza de estilo literário que agora teima em reaparecer (cansei de esperar pela expressão mais adequada). Chego e fico ali, quarando. “Pra que vai tão cedo? Vai ficar lá quarando”, dizia minha avó. Pois é, vou e quaro.
Tenho me esforçado um pouquinho para às vezes chegar depois, mas não consigo. No máximo, nessas raras vezes em que tento ser atrasadinho, consigo chegar exatamente na hora, ou dois minutos antes. Até já não uso mais relógio de pulso há anos, desde que conseguiram enfiar as horas todas dentro dos aparelhos celulares, para desconsolo de minha esposa que acha elegante um bom relógio no pulso, mas não tem jeito, continuo adiantado.

Façam um teste, marquem algo comigo. Se eu chegar atrasado, é porque não sou eu, trata-se de um impostor. Se eu me atrasar, é porque já não fui mesmo. Agora com licença, que tenho um compromisso amanhã às duas e já vou indo...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de dezembro de 2013)

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

A conspiração

Sou vidrado em teorias da conspiração. Gosto de todas, acredito em tudo. Basta vir com uma teoria da conspiração para o meu lado que eu de imediato a adoto e viro partidário. E quanto mais cabeluda, melhor. Adoro!
O homem na lua, por exemplo. Que o homem foi para a lua que nada! Tudo não passou de armação dos americanos no final da década de 1960, no auge da Guerra Fria, para darem a impressão de terem vencido a corrida espacial contra os soviéticos, a quem desejavam convencer de que possuíam melhor e mais avançada tecnologia. Um recado tipo assim: “Ó, cuidado vocês aí... nós mandamos o homem para a lua... se não se aquietarem, mandamos todos vocês para o espaço”. Tipo isso, entende? Tem lógica, óbvio. E para tanto, usaram os recursos cinematográficos de Hollywood para criar o cenário convincente. Dizem até que contrataram o diretor Stanley Kubrick para dirigir a coisa toda, e que ele teria assinado um termo de silêncio, mas espalhou pistas sobre isso nos demais filmes que fez depois. Bah, claro que sim!
E os extraterrestres? Que me dizem dos extraterrestres? Barack Obama é um extraterrestre, assim como o são e foram todos os presidentes dos Estados Unidos. Óbvio que sim. Como prova, basta acompanhar os atos de seus mandatos ao longo das últimas décadas. Eles não fazem coisas de outro mundo? Hein? Que me diz? Han?
E Elvis não morreu. Nem John Lennon. Tampouco Michael Jackson. Tudo não passa de farsas bem armadas para que esses ídolos possam escapar das mordidas do imposto de renda ,escapar da encheção de saco dos fãs, escapar dos credores, escapar da mídia e irem viver suas milionárias vidas sob disfarce nas paradisíacas ilhas de Honolulu ou em recantos impensáveis no Terceiro Mundo. Prova disso é que dia desses cruzei com Jim Morrison ali na esquina da Júlio com a Dezoito, mas ele fez que não me reconheceu. O quê? A Júlio não faz esquina com a Dezoito? Tá, então não era o Jim Morrison. Vou passar lá de novo dia desses, para ver. Talvez fosse o impostor esse que há décadas se faz passar por Paul McCartney, porque o verdadeiro morreu ainda na época dos Beatles, como todos sabem.

E as peças do Shakespeare? Claro que não foi ele quem escreveu! Foram outros, se passando por ele. Afinal, ninguém queria ser chamado de gênio, e Shakespeare não poderia ser aquele gênio que ele é sozinho, entendem? Igual aos meus textos. Quem disse que sou eu quem os escreve? Já pensaram nisso? Ahá!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de dezembro de 2013)

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

A galinha a postos

Foi combinado que meu afilhado de um ano e meio passaria um dia inteiro conosco no sábado passado, enquanto seus pais aproveitariam a “folga” para cumprir algumas demandas no centro da cidade. Nós, por nosso lado, aproveitaríamos para nos encantarmos com as surpresas que o seu ininterrupto processo de descobertas do mundo proporciona.
Coube a mim, na véspera, providenciar a lista organizada por minha esposa, a título de “preparativos para a visita do João Vitor”. No supermercado, fui à caça de caixas de suco, já que João Vitor curte suco. Depois, fui à cata de banana, maçã e frutas em geral, uma vez que João Vitor já come de tudo com seus quatro dentinhos sorridentes. O iogurte veio em quantidade pensada para sobrar para os dindos, essa dupla de gulosos. O pacotinho de balões coloridos foi encontrado, após quilômetros de gôndolas rodados, na seção de festas, Marcos, seu asno. E uma caixa de cerveja bock. Para mim e minha esposa, claro, celebrarmos à noite o sucesso da empreitada.
Ao chegar em casa, mais lista de tarefas. A principal delas: deixar engatilhado o DVD com os filminhos da Galinha Pintadinha (aquela que usa saia e tem um monte de pintinha, sabe?), remédio eficaz para acalmá-lo em caso de início de choro inexplicável (depois descobrimos que a tal galinha e seu Galo Carijó andam perdendo popularidade para desenhos do Scooby-Doo e outros em que figurem “au-aus” diversos). Os choros não aconteceram, mas a Galinha até que ajudou na hora da naninha depois do almoço, pois que também ninguém é de ferro, muito menos um dindo quase cinquentão (eu, ao menos, dispensei a mamadeira).

Por fim, devia arregimentar os brinquedos. João Vitor, quando vem nos visitar, costuma trazer junto vários deles, e assim o fez. Mesmo assim, reuni os bichinhos de pelúcia que habitam nossa casa e que vêm à luz nessas ocasiões. Porém, tudo se mostrou desnecessário. João Vitor passou horas se entretendo mesmo foi com os balões e com um cestinho de prendedores de roupas. O cestinho, emborcado, era empurrado pela casa toda à guisa de caminhão desenfreado. Os prendedores ornamentaram, um a um, a cerca do terraço, a título de enfeite natalino. Na sua inocência infantil, João Vitor não depende de marcas, de moda ou de status para obter satisfação e alegria. Já a minha cerveja noturna não podia ser outra senão aquela da marca especial que eu mais aprecio, claro.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em  12 de dezembro de 2013)

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

No café da manhã

Eu não sei quem foi que inventou isso de inserir omelete e salsicha picadinha ao molho vermelho no buffet do café da manhã nos hotéis. Seja lá quem for o autor da ideia, merece um prêmio. Ou uma estátua. Ou, melhor ainda: merece um prato com uma pirâmide de omelete e salsicha picadinha ao molho.
Porque isso sou eu quando estou hospedado em algum hotel, no salão do café da manhã: lá venho eu equilibrando no pratinho, para a abertura dos trabalhos, uma pirâmide amarela de omelete coberta com uma espessa calda de molho vermelho, as rodelinhas de salsicha escorregando do pico da fortaia abaixo para irem se acumular ao redor da base, de onde serão pinçadas uma a uma com a ponta do garfinho até distribuirem seu sabor pelas reentrâncias de minha boca. Ahhh, que prazer iniciar o dia em terra alheia empanturrando o estômago com blocos de omelete ao molho vermelho das cintilantes rodelas de salsicha!
Mas não paro por aí. Desfilo garboso pelo salão, da mesa ao buffet, arrastando os chinelos e transportando copos de suco de laranja e depois de uva, taças de café preto e depois de café com leite, tigelas com iogurte e granola (nhamm, iogurte e granola no café da manhã no hotel!!), sem esquecer do pratinho de apoio para estacionar as fatias de mamão (bom para a digestão), de melão e de sei lá que outra fruta que se come nos cafés da manhã nos hotéis, mas que venha! Traz que a gente come, como sabiamente diz meu sogro.
Ah sim, e como esquecer-se deles, os croissants? Não é mais preciso atravessar as fronteiras até Uruguai e Argentina para deliciar-se com minicroissants crocantinhos. Basta hospedar-se em um hotel cujo cardápio do café da manhã seja minimamente maneiro para saciar o desejo por esse acepipe tão elegante, especialmente pela manhã. Tenho uma habilidade incrível em montar pilhas sólidas de croissants intercalados com pães de queijo quentinhos e equilibrar a estrutura até a mesa onde minha esposa me aguarda de boca aberta (não de fome, mas de espanto).

Toda essa festa sempre tem data para acabar, e se encerra com o fechamento da conta das diárias. Penso nisso aqui em casa esta manhã enquanto sonho com férias. Pego o cacetinho, corto ao meio, passo a margarina (putz, acabou a goiabada de novo), rosqueio a tampa do Nescafé, sorvo um gole do café preto e me ponho a sonhar com as pirâmides de fortaia e salsicha picadinha que me esperam no litoral...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de dezembro de 2013)

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

De olhos bem abertos

Talvez contar carneirinhos possa ajudar. Nas histórias em quadrinhos lidas na infância, o método sempre funcionava com Mônica, Cebolinha e Pato Donald, em suas noites de insônia. Eu não sofro de insônia, normalmente sou ótimo de cama, deito e durmo. Porém, dessa vez, já são três da madrugada e nada de cerrarem-se as cortinas de minha vigília. Aos carneirinhos, então.
Pelo que me lembre, é preciso arrebanhar uma centena de carneirinhos fictícios e reuni-los nas proximidades de uma cerca, ali posicionada para que saltem um a um por ela. Você, o insone, os vai contando ao saltarem e o segredo reside no fato de que, devido à repetição monótona do pulo dos carneirinhos, o sono acabe chegando sem que se perceba. Vamos lá. Imagino um prado, uma relva linda, um dia de sol, muito sol. Bem claro, muito iluminado. Não. Stop. Luz demais. Assim jamais conseguirei dormir. Essa carneirada que me desculpe, mas vão saltar é no escuro mesmo.
Mudança de cenário. Ainda o mesmo prado e a mesma relva, mas agora à noite. No céu, lua e estrelas. E apague aquele grilo, que o cri-cri dele também não vai me deixar dormir. Tá mas agora desgarraram-se dois ou três carneirinhos. Não posso fazer isso com apenas 96 ou 97 bichos. É preciso 100 exatos, porque vai que o sono se esconda exatamente no salto do 99º. Alguém os traga de volta, por favor. Foram certamente para lá, naquele matinho, junto ao qual passa um córrego. Aliás, boa ideia, também tenho sede.
Levanto da cama e vou à cozinha, beber água. Três e meia da matina e a madrugada corre livre, me deixando aqui, desperto e sozinho. A coisa vai mal. Mal para mim, mas não para minha esposa, que há horas exercita o sono dos justos naquela cama, de forma invejável. Até parece provocação.
Volto para o leito, esperançoso de que o sono da esposa possa ser contagioso. Vou encostar meu pé no pé dela, e roubar-lhe sono. Deito-me, meu pé procura o pé dela sob o lençol, e o encontra. Encosto e, de imediato, ela se mexe, dá um pulo, salta da cama, vai ao banheiro, retorna um minuto e meio depois, se deita e retoma o sono. Fico pensando se de fato ela chegou a acordar para fazer isso tudo.

Sou acometido por grande inveja. Insônia e inveja. Insônia, inveja e angústia. Inveja, angústia, insônia e cansaço. Insônia, cansaço, invezzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de dezembro de 2013)

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

A saída do viking

Sempre que tento sair à francesa, acabo saindo à viking mesmo. Posso estar em uma reunião, em um debate, em um encontro, em um seminário, na igreja, em uma festa, num almoço comunitário, no que quer que seja. Basta eu decidir abandonar o recinto de forma discreta, sem chamar a atenção, para que entre em cena meu aplicativo especial da desastrança e subverta por completo os planos.
Ocorre de tudo. Levanto e deixo cair um copo, dou a volta na cadeira e piso no pé de alguma senhorinha, caminho dois passos e esbarro numa vidraça, minha pasta abre e despeja todo o conteúdo no chão, tropeço em algum salto alheio, meto o cotovelo em costas que não me pertencem, dou de testa na quina da janela, enfio o dedo no saco de pipoca do esfomeado, verto vinho na toalha, chuto baldes, piso na casca da banana, cabeceio o lustre, esmago o rabo do gato, derrubo berços, trinco o aquário, rasgo calças, sou o pandemônio instalado. É como se carregasse um menir às costas e o fosse balançando desgovernadamente para os lados ao sabor da inoperância que comanda meus membros.
Elefante em loja de cristais é fichinha se comparado ao mastodonte que se apodera de meus movimentos. Cada perna e cada braço passam a agir em descompasso e desobedecem ao meu comando, inutilmente focado em fugar do recinto sem que as atenções recaiam sobre mim. Mas recaem, claro. Quero ser discreto, mas meus atos desgovernados traem o manto de invisibilidade que gostaria que me envolvesse nesses momentos. Ao querer me retirar, danço a dança das avalanches. Ao invés de simplesmente sair, me desmorono para fora. Todos percebem meu ato de retirada e sei que serei alvo de cobranças amanhã.
“Não ficaste até o fim, né?”. “Você saiu antes”. “Que houve que não permaneceu até o final, não gostou?”. “Ah, perdeste o melhor ontem”. “Na próxima, vê se fica”. Recebo as admoestações resignado com o fato de que, daqui em diante, talvez o melhor mesmo seja organizar minhas atividades de maneira a evitar ao máximo a necessidade de retiradas estratégicas antes do término de qualquer evento em que eu esteja envolvido. Desafio difícil para quem, como eu, prefere preâmbulos a posfácios.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de novembro de 2013)

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Esforço humano

Tenho convicção de que a diversidade é o maior patrimônio da espécie humana. Não só não somos iguais uns aos outros, como é exatamente o conjunto de nossas qualidades e defeitos individuais que nos torna seres únicos. Aqueles que amplificam suas qualidades positivas passam à posteridade (tanto os famosos quanto aqueles restritos a seus círculos pessoais) como seres iluminados, que vieram para aprimorar e transformar para melhor o ambiente em que atuam. Já os que se dedicam a exacerbar seus defeitos e maus atributos acabam se caracterizando no campo oposto, ocupado pelas pessoas que fazem do mundo um lugar pior para se viver.
Regras de convívio, códigos morais e de ética, leis e convenções são criados justamente para guiar os indivíduos no caminho visto como o “do bem”, a fim de que a convivência humana possa ser pautada pela fraternidade. Missão inesgotável enquanto existirmos como espécie composta por seres individualizados, cada um representando um universo complexo a coexistir com os demais, tentando equilibrar diferenças, vontades e necessidades.
Sorte nossa quando nos deparamos com seres que optam por fazer a diferença pelo lado positivo de suas personalidades. Azar o nosso quando topamos com os signatários do contrário. Sorte maior ainda quando nós mesmos decidimos moldar nossas biografias a partir das escolhas do primeiro grupo.
Penso nisso nesse período em que tive de recorrer às benesses da medicina para detectar e sanar um inesperado problema de saúde que resolveu me acometer da noite para o dia, sem aviso prévio. Tive sorte, no meio do pesadelo, em cair nas mãos de médico competente, disponível, humano e comprometido com as nuances de sua profissão. Tive sorte porque poderia ter sido diferente, já que não basta um diploma para que haja garantia de bom atendimento. Sabemos que existem médicos e médicos, assim como há jornalistas e jornalistas, empresários e empresários, escritores e escritores, pedreiros e pedreiros, motoristas e motoristas, cabeleireiras e cabeleireiras, pessoas e pessoas.

O que faz a diferença não é o diploma, nem a especialidade, nem a profissão, nem o sobrenome, nem a idade, nem a conta bancária, nem a altura ou a cor dos olhos. O que faz a diferença é o comprometimento de cada um em ser gente que colabora para melhorar a moral da espécie humana. Isso se faz no dia a dia e não requer esforço sobre-humano. O esforço requerido é apenas o humano mesmo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de novembro de 2013)