segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Parabéns a você, cidadão!

Aniversários, em geral, são momentos convidativos a que se pare um pouco e se faça uma reflexão. Sou adepto dessa prática há décadas e costumo reservar alguns instantes de cada oito de julho anual para pensar sobre mim mesmo no dia em que completo mais um ciclo de vida, analisando tópicos como “o que ando fazendo no momento, como se configura minha vida agora, quais as minhas realizações e aspirações, o que tudo tenho a agradecer” e assim por diante. Em paralelo a essa questão pessoal, cultivo também o hábito de prestar atenção a datas comemorativas relativas a personalidades e a fatos históricos, a respeito dos quais vale a pena dedicar um momento de reflexão e extrair dessas efemérides ensinamentos e percepções.
Assim se dá, portanto, neste 26 de agosto de 2019, quando completa seus 230 anos a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, documento lúcido e inovador no que tange ao resguardo dos direitos fundamentais dos seres humanos em sua vida em sociedade, em qualquer sociedade, em qualquer tempo. Fruto direto dos ideais que moveram a Revolução Francesa, a Declaração, aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte daquele país em 26 de agosto de 1789, elencava 17 pontos voltados a resguardar as condições básicas para que os cidadãos possam exercer o direito a uma vida plena, igualitária, livre e fraterna. Passados 230 anos do surgimento do texto, vivendo em um mundo e em uma época que muitas vezes parece esquecer o valor fundamental de seu conteúdo, vale a pena refrescar a lembrança da importância de alguns daqueles tópicos (senão de todos).
“Os homens nascem e são livres e iguais em direitos” (Artigo 1º); “A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do Homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão” (Artigo 2º); “A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo” (Artigo 4º); “Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei” (Artigo 10º); “A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei” (Artigo 11º). Questões fundamentais, que precisam ser constantemente reiteradas e resguardadas, com o intuito de preservarmos nosso inalienável direito a uma vida em sociedade digna. Feliz aniversário, pois! 
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 19 de agosto de 2019)

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Gol não nasce de pé solitário


Se é verdade (e eu acho que é verdade) que o futebol é uma forma de expressão metafórica da vida e suas nuances, então hoje vamos falar de futebol, pois, afinal, também sou sofredor. Assisti, do conforto fofo do sofá de minha sala, na gelada noite da quarta-feira da semana passada, à transmissão televisiva da partida entre Grêmio e Atlético Paranaense, válida pelas semifinais da Copa do Brasil, primeiro dos dois confrontos previstos entre as duas equipes que disputam vaga na final da competição. Tricolor de coração desde os tempos em que acompanhava pelas ondas do rádio em Ijuí as atuações do veloz ponta-direita Flecha (que jogou no Grêmio entre 1968 e 1971), vibrei com os dois gols marcados pelo meu time e que encaminham o Grêmio a uma posição confortável no próximo confronto, em Curitiba, daqui a alguns dias. Até aí, tudo zen.
Seguindo as jornadas esportivas daquela noite em canais de tevê e, nos dias seguintes, nas rádios e nos jornais, compartilhei a exaltação dos comentaristas às atuações da dupla de jogadores André e Jean Pyerre, autores dos dois tentos decisivos da partida, mas senti falta de algo. André, claro, marcou um belo gol de cabeça ainda no primeiro tempo, e Jean Pyerre, no segundo, definiu o placar efetivando um magistral gol de cobrança de falta, uma raridade no futebol apresentado hoje em dia nos gramados brasileiros. Tudo muito justo, tudo muito correto, porém, faltou enaltecer um fator crucial para o desfecho favorável desses dois lances: a participação fundamental do jogador Éverton em ambos os momentos. Foi Éverton quem penetrou na defesa paranaense com a bola e fez o cruzamento a André, permitindo a cabeçada golística no primeiro tempo. E foi também Éverton quem, na segunda etapa, sofreu a falta à frente da grande área adversária, que possibilitou a cobrança matadora de Jean Pyerre para dentro das redes.
Sem a atuação vital de Éverton, nenhuma dessas jogadas teria se transformado em gol, mas pouco (ou nada) se falou sobre os méritos de sua performance decisiva na articulação desses dois gols, reservando-se os refletores e as glórias para a dupla que finalizou. Assim também muito se dá nos gramados da vida cotidiana, quando não raro os coadjuvantes (fundamentais) das grandes conquistas veem seus esforços (vitais) serem apagados e sufocados pelas loas reservadas somente aos finalizadores de jogadas construídas em equipe. Zelando melhor pela autoria dos méritos de cada um, garantiremos sempre o envolvimento de todo o time na busca das conquistas cotidianas. Aí sim, é gol de placa.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 19 de agosto de 2019)

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Sem consenso no cardápio


Ninguém nega que comer é uma atividade vital para a existência humana. Envelopado em aspectos culturais e hedonistas, o ato de alimentar-se extrapola a esfera do impulso vital instintivo e alcança, entre as gentes, o status de prazer, de requinte, de deleite, de satisfação dos sentidos. Mais do que cimentar o estômago com alimentos, ir à mesa representa a ressignificação de um ritual em que a arte da gastronomia age a serviço da comunhão com amigos, com familiares e, muitas vezes, consigo mesmo. Assim, nos transformamos em gourmets, em chefs, em sommeliers (profissionais ou amadores, de diploma ou de araque) e cultivamos nossas visões pessoais a respeito do que significa “boa mesa”. Come-se, mas de boca e olhos bem abertos.
Aqui em Caxias do Sul, ir à mesa (de casa, do bar ou do restaurante) é uma atividade tão representativa de nossa cultura e de nosso jeito caxiense de ser que chegamos ao ponto de fomentar querelas insanáveis a respeito da melhor forma de preparar e/ou de servir alguns dos pratos que mais apreciamos. Nós, caxienses, dispendemos generosos nacos de tempo de nossas vidas para batermos bocas (às vezes cheias) quando o assunto é, por exemplo, a temperatura ideal para servir o sagu, que a maioria dos habitantes serranos (reza a tradição, porém, a tese ainda carece de estudo científico) jura preferir quente ou morno, mas alguns hereges refestelam-se em apreciar frio e/ou gelado. Nas lanchonetes, a questão gira em torno do xis, que deve ser apresentado, para uns, aberto e, para outros, prensado, e os embates não se dão à boca pequena. A pizza, não há quem não aprecie, porém, dividimo-nos na hora de optar por borda recheada ou sem borda nenhuma. A sopa de agnoline (que é de capeletti em certas távolas) chega ao debate nas versões al dente ou inflada de tão cozida (quando cada unidade se assemelha a um chapéu mexicano). O bauru rende bons bocados de discussão, pois que aqui é servido aberto no prato, revoltando os puristas que só o concebem fechado no pão. Nem a ortodoxa salada de radicci escapa da celeuma: deve vir com ou sem bacon? Já temperada com vinagre ou sem nada, para que seja azeitada ao gosto do freguês? E no tortéi, deve-se acrescentar canela no tempero do recheio ou não?
Impossível obter conciliação unânime nessa saborosa seara, afinal, também nos dividimos entre papos e grenás, entre pedestres e motoristas, entre friorentos e acalorados, entre “nativos” e “os de fora”. Só uma coisa é pacífica: no inverno, café preto tem de vir com um pingo de graspa, que é para não encarangar. Buon appetito!
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 12 de agosto de 2019)

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

No ritmo do chiclete

É infernal. Ela vem, se instala, não pede licença e não vai embora. E não há mandinga, inventada ou por inventar, capaz de enxotá-la. Nem reza, nem promessa, nem oferenda. Nada. É exasperante. Você salta da cama e a música-chiclete que se instalou em seu cérebro já está lá, infernizando: a letra, a melodia, o refrão, repetidamente invadindo as lacunas ociosas de seu cérebro, obrigando-o a cantarolar o tempo todo, mesmo que não queira. No meu caso mais recente, trata-se de “Chains”, na versão que os Beatles gravaram em 1962, e que eu inventei de escutar no carro enquanto dirigia até a praia algumas semanas atrás. Pra quê! Desde então, é o dia todo aquilo na minha cabeça: “Chains, chains of looooo-ove! Chains of loooooooove! Chains of lo-o-o-oove”! Inferno! Não sai. Nada exorciza.
Tentando me livrar do pensamento recorrente-obsessivo, acorri ao santo google. Caí numa página que aborda a questão das “músicas-chiclete” e de como tirá-las da cabeça. “Estou salvo!”, pensei. “Vou ler e seguir as dicas”. A primeira consistia em escutar a música até o fim, porque, segundo estudos científicos, nosso cérebro embirra nisso de ficar cantarolando porque encara o refrão como uma atividade incompleta, e nossa agulha cerebral empaca nas ações não concluídas. Tem até nome o problema: “Efeito Zeigarnik”. Peguei o Cd, botei a rodar e cantei junto a música toda, do início ao fim, fazendo a primeira voz, o coro e o refrão. “Chains, my baby's got me locked up in chains...” E lá fui eu, desafinando a pérola Beatle, por uma boa causa (própria). Não adiantou nada. Pior: agora, sei a letra toda e o chiclete me pega em partes diferentes da canção.

A segunda dica era mover-me em ritmo diferente ao da música, para atrapalhar o maldito cérebro e esculhambar a coisa toda, expulsando o chiclete. Mas não se aplica ao caso. Trata-se de música dos Beatles, não tem como me mover devagar sendo ela contagiantemente dançante, e tampouco conseguirei chacoalhar de forma mais alucinada do que aquela que o rock já propõe. Descartado. Terceira dica: mascar um chiclete enquanto ouve a música, daí ela não gruda. Fora de questão, pois escutei sem mascar antes e ela grudou em definitivo. Quarta e última: trocar por outra música-chiclete. Rechaço essa, pois, se é para ser chiclete, que seja uma música dos Beatles. Talvez minha psicóloga tenha a solução para o problema. Até lá, “Chains of loooo-ve! Chains of looooooooooove!”. Fazer o que, se sou imune ao Efeito Zeigarnik. Felizmente, para mim e para o mundo, minhas ideias fixas são inofensivamente musicais...
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 5 de agosto de 2019)