segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

A cenoura é a prova

A prova irrefutável de que o Papai Noel realmente visitou na madrugada do Natal a casa de meu afilhado de quatro anos de idade é uma cenoura que foi mordida por uma das renas que puxam o trenó do Bom Velhinho. Não há o que discutir quando as evidências falam por si e o peso das provas equaciona um mistério. O trenó do Papai Noel é puxado por renas. Seis renas, conforme me explica o afilhado, enquanto me ajuda a destruir a embalagem que nos impede de acessarmos com rapidez o conjunto de ferramentas de plástico a ele destinado também pelo Papai Noel, mas que foi deixado na casa dos dindos para a devida entrega.
São seis renas, portanto, aprendo. E elas devoram cenouras. Certo. Escuto com atenção. O Papai Noel não desceu pela chaminé porque não há lareira na casa, mas parece que conseguiu entrar pela janela do banheiro, enquanto todos dormiam - o que é uma lástima, já que ele desejaria muito ter visto o Papai Noel chegar e entregar os presentes. Mas a família toda caiu no sono e foi bem nessa hora que o velhinho resolveu aparecer. Bom, tudo bem, ao menos, as cenouras para as renas haviam sido diligentemente posicionadas sobre o balcão da sala, bem à vista do Papai Noel, que tratou de entregá-las às renas enquanto ele deixava os presentes. As renas ficam com muita fome enquanto levam o Papai Noel de casa em casa, e é importante deixar cenouras para elas se alimentarem.
Uma das cenouras, que não foi totalmente devorada, mas que mantém as marcas das dentadas desferidas por uma das renas, foi guardada como relíquia pelo afilhado, sob sua cama. Se eu queria ver? Mas claro que eu queria! Poc poc poc poc... Saiu correndo em desabalada carreira até o quarto, para voltar empunhando uma longa cenoura coberta de dentadas. Dentadas de rena natalina, evidentemente, como eu logo averiguava com meus próprios olhos e minha longa experiência em pistas deixadas pela ação do Papai Noel. Sim, sim, eram dentadas de rena, não havia dúvidas. Renas do Papai Noel são as que deixam marcas enormes na cenoura, como essas. De fato, Papai Noel esteve ali de madrugada.

Pena que ele não viu, porque pegou no sono. Bem, fazer o que... Nem tudo é perfeito nessa vida. Voltamos a desembrulhar as ferramentas de plástico, em silêncio, a cenoura escorada na parede da sala. “Ano que vem, vou ficar acordado, para ver o Papai Noel entregar os presentes e as renas comendo as cenouras”, disse, manuseando o alicate de plástico. Senti firmeza no propósito. Se eu fico junto? Fico, claro que fico. Também quero ver. Ano que vem, não posso esquecer das cenouras.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de dezembro de 2016)

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Uma questão de essências

Chamava-se “Casa das Essências” e vendia-se ali de tudo: ingredientes para produzir cerveja caseira preta e branca (lúpulo, licor de caramelo, glicose, fermento); pós e essências para sorvetes; mostímetros; rolhas de cortiça de diversos tamanhos; tampinhas de garrafa; aparelhos manuais para tampar garrafas; ingredientes para bolos e refrescos; corantes artificiais; ácidos e sais para fazer sabão e veneno para ratos e baratas; pauzinhos de picolé; casquinhas de sorvete; formas de alumínio para picolé e outras bugigangas. Pertencia a um tio-avô e era ponto de referência dos colonos de toda a região do entorno de Ijuí nos anos 1980. Tive ali meus primeiros aprendizados no mundo do trabalho e no da ética.
Nos anos de 1981 e 1982, nas longas férias de final de ano, eu e um primo (depois substituído por um amigo), adolescentes, decidimos aceitar a oferta do tio-avô de cuidarmos da lojinha enquanto ele passava um mês de férias na praia com sua família, após o Natal. Assim, ele não precisaria fechar as portas do estabelecimento em janeiro, a freguesia seguiria sendo atendida e nós ganharíamos um dinheirinho. Passadas as duas semanas de aprendizado em dezembro, com o tio ensinando como as coisas deveriam ser feitas, entrava janeiro e ele viajava, confiando o negócio às nossas mãos. Não havia ninguém para fiscalizar, mas seguíamos à risca os procedimentos ordenados: abrir as portas às sete e meia da manhã, varrer a calçada defronte à loja; cobrar os preços estabelecidos em uma tabela; anotar detalhadamente cada venda em um caderninho; depositar diariamente no banco a féria do dia, na conta do tio, guardando o recibo e assim por diante.

Nem nos passava pela cabeça fazer diferente, abrir mais tarde, deixar de varrer a calçada, superfaturar as vendas, deixar de anotar para embolsar o dinheiro. Tampouco pensávamos em nosso íntimo “puxa, estamos sendo honestos”. Simplesmente fazíamos exatamente o que combináramos fazer. Certa vez, me enganei e vendi a preço irrisório uma caríssima forma de alumínio para picolé. Eu e meu amigo detectamos logo depois o erro e imediatamente decidimos o que fazer: contaríamos o engano ao tio assim que ele retornasse e pediríamos que ele descontasse o prejuízo de nossos salários, assumindo o equívoco em conjunto. Foi o que fizemos. O tio, obviamente, não descontou um níquel sequer e ainda nos presenteou com um churrasco de agradecimento. Afinal, como apregoava o nome do local, tratava-se de uma questão de essência. Assim como tudo na vida, no fim das contas.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de dezembro de 2016)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Um nocaute na barbárie

Qual o melhor termômetro para medir o grau de barbárie ou de civilização em que se situa determinada sociedade? Como identificar em que estágio na escala do desenvolvimento humano uma comunidade se assenta? Fácil: basta detectar em que ponto dessa régua essa sociedade ou comunidade estabelece seu índice de tolerância frente ao intolerável. Quanto mais tolerante com o intolerável, quanto mais leniente com as mazelas sociais, mais no fundo do poço do processo civilizatório se encontra a sociedade em questão. Na outra ponta, quanto mais seus cidadãos rechaçam o intolerável, criam e respeitam mecanismos de proteção, de coibição e de punição a seus praticantes, mais civilizada é a sociedade que constroem.
Não é tolerável, por exemplo, a corrupção tomar conta de todas as instituições públicas e privadas de uma sociedade. Não é tolerável políticos, legisladores e funcionários públicos de todas as ordens legislarem e atuarem em causa própria. Não é tolerável agentes privados corromperem os agentes públicos. Não é tolerável o bullying. Não é tolerável fazer justiça com as próprias mãos. Não é tolerável a intolerância religiosa, racial, social. Não é tolerável maltratar animais. Não é tolerável o estupro. Não é tolerável o crime organizado. Não é tolerável abastecer aviões com combustível contado para chegar ao destino sem levar em conta quantidades reservas para enfrentar eventualidades. Não é tolerável a política do ódio. Não é tolerável a agressão por desavença de trânsito. Não é tolerável qualquer agressão verbal e física. Não é tolerável fazer vistas grossas ao crime. Não é tolerável dirigir alcoolizado. Não é tolerável propor criar um evento em que as pessoas se reúnam com o propósito de dar socos umas nas outras. Não é tolerável achar normal que essa proposta truculenta receba a inscrição de mais de dois mil interessados em participar da bestialidade. Não é tolerável assistir de braços cruzados à barbarização galopante da sociedade em que vivemos.

Quanto mais tolerante com o intolerável, mais afunda a sociedade na areia movediça da degradação civilizatória. E cada vez mais difícil fica o processo de resgatá-la de lá. O pensador gaúcho José Hildebrando Dacanal já alertava, anos atrás, para as consequências do desastre civilizatório brasileiro: 100 milhões de bárbaros gerados ao longo das últimas quatro décadas. Pois ei-los aí, em ação. Se formos tolerantes com o intolerável decorrente da barbárie, nos afogaremos nela quando ainda estivermos (infelizmente) vivos para ver.
(Crônica publicada no jornal Pioneiroem 12 de dezembro de 2016)

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Sonhos que caem por terra

Estamos completando uma longa semana de uma inominável dor iniciada no cruzar da noite de segunda para a terça passadas, quando uma tragédia aérea que ganha contornos de crime ceifou as vidas de 71 pessoas nos arredores de Medellín, na Colômbia. O Brasil e o mundo compartilham um luto temperado com incredulidade, estupor, tristeza profunda e, em alguns momentos, até mesmo revolta, quando se começa a perceber que o acidente poderia ter sido evitado caso elementos como a ganância, a irresponsabilidade, a imprudência temerária não tivessem entrado em cena. A dor entrou em campo e lotou os espaços nas cerimônias fúnebres realizadas nos estádios do Atlético Nacional de Medellín e da Chapecoense, em Chapecó. Em Medellín, o povo colombiano emocionou o mundo com sua sensibilidade e capacidade de empatia humana, pegando simbolicamente no colo todo um Brasil enlutado.
Mas, ao lado dos jogadores da Chapecoense, dos integrantes da comissão técnica, dos jornalistas e dos membros da tripulação presentes ao fatídico voo, houve outra vítima importante e significativa a bordo da aeronave que se espatifou na montanha. Encontrou ali também um fim inesperado uma gama de sonhos que até então vinham sendo construídos pelas vidas de cada um dos que as perderam dessa maneira absurda. Morreram os sonhos de cada atleta, de cada jornalista, de cada profissional que perdeu a vida no acidente. Morreram os sonhos de seus familiares e amigos; morreram os sonhos das torcidas; dos cidadãos chapecoenses; dos catarinenses e dos brasileiros. Morreram também os sonhos dos amantes do futebol, essa imensurável família universal cujas mais belas características foram personificadas pelos colombianos e brasileiros, que souberam reverenciar a civilização humana protagonizando tão pungentes despedidas.

Sabe-se que as grandes tragédias servem de palco para o aflorar do melhor de cada ser humano. É verdade. Mas também não se pode esquecer (e talvez resida aí uma das importantes lições a se tirar disso tudo) que existem os destruidores de sonhos, e é fundamental saber reconhecê-los para podermos nos precaver contra eles. Os destruidores de sonhos estão à espreita e habitam as esquinas da vida humana, sempre prontos a levar vantagem sem se preocupar com as consequências de seus atos. Eles estão à solta na sociedade esgrimindo suas imprudências e ilegalidades. Estão em todas as esferas da vida, disfarçados, muitas vezes, de gente profissional, ética e decente. Não se pode voar por aparelhos nas proximidades de destruidores de sonhos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de dezembro de 2016) 

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

O legado das areias

Ozimândias era o apelido grego conferido ao faraó egípcio Ramsés II, que comandou o Egito durante mais de 60 anos (um dos mais longos reinados), de 1279 a 1213 a.C. Poderosíssimo, dizia-se filho de deuses, deitava e rolava, mandava e era obedecido. Botou abaixo os monumentos que evocavam a memória e os feitos de seus antecessores e usou as pedras para erigir dezenas de monumentos novos em homenagem a si mesmo. Muitos deles (a maioria em fragmentos) ainda podem ser visitados pelos turistas, especialmente em Tebas e no Vale dos Reis.
A pergunta que grita ao vento desde os desertos do Egito, no entanto, é: passados três milênios, o que restou de todo o poder, da glória, do esplendor, da empáfia, da arrogância e da soberba de Ozimândias? Pó. Restou o pó das estátuas quebradas, dos monumentos pela metade fustigados pela areia, pelo vento e pelo sol. Restou a sombra benfazeja que as agora meia-estátuas proporcionam aos camelos que cruzam o deserto. Restou o silêncio da imponência perdida servindo de pano de fundo para as selfies de viajantes que pouco ou nada sabiam de sua existência antes de pisarem ali, e que de novo a esquecerão nas brumas da memória assim que seguirem adiante. Pobre Ozimândias! Não imaginava que a soberba jamais resiste ao tempo.
O poeta inglês Percy Bysshe Shelley (1792 – 1822) imortalizou seu espanto com a derrocada da arrogância pela passagem do tempo, representada por Ramsés II e suas estátuas caídas, compondo o soneto intitulado “Ozimândias”, que diz assim (na tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos): “Ao vir de antiga terra, disse-me um viajante:/ Duas pernas de pedra, enormes e sem corpo,/ Acham-se no deserto. E jaz, pouco distante,/ Afundando na areia, um rosto já quebrado,/ De lábio desdenhoso, olhar frio e arrogante:/ Mostra esse aspecto que o escultor bem conhecia/ Quantas paixões lá sobrevivem, nos fragmentos,/ A mão que as imitava e ao peito que as nutria/ No pedestal estas palavras notareis:/ “Meu nome é Ozimândias, e sou Rei dos Reis:/ Desesperai, ó Grandes, vendo as minhas obras!”/ Nada subsiste ali. Em torno à derrocada/ Da ruína colossal, a areia ilimitada/ Se estende ao longe, rasa, nua, abandonada.”

A areia é o senhor do tempo, Ozimândias. Glória, poder, soberba e arrogância afundam inexoravelmente nela, mais dia, menos dia. Assim nos ensinam os artistas como Shelley e os arquitetos e escultores de três mil anos atrás, cujas obras, elas sim, mesmo amputadas, permanecem e se fazem ver, para nos lembrar que, no final,  voltamos todos ao pó que nos molda e iguala.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 28 de novembro de 2016)

O recado da torradeira

Não somente os animais e as pessoas, mas também os objetos que nos cercam e nos servem têm uma vida útil com tempo finito, com prazo de validade. Nas coisas inanimadas que povoam e facilitam nossa vida cotidiana costuma ser mais fácil detectar o advento do momento em que começam a bater à porta da necessária e merecida aposentadoria. Mais fácil do que verificar essa mesma situação rondando os nossos bichinhos de estimação, os nossos entes queridos, os nossos amigos e, especialmente, a nós mesmos. Pendurar as chuteiras não é uma decisão fácil para ninguém. Perceber que o outro precisa pendurá-las requer sensibilidade aguçada, instrumento que nem sempre está calibrado em nosso íntimo, normalmente voltado às demandas do umbigo, órgão que na maioria dos humanos parece ditar a existência.
Mas os objetos também aportam, em dado momento de suas existências inanimadas, na fase em que precisam ser agraciados com o merecido descanso e, se não descartados, ao menos substituídos por outros mais jovens, melhor habilitados a dar sequência às demandas diárias. Parêntesis para refletir se máquinas de lavar roupa, liquidificadores, ventiladores e enceradeiras podem ser classificados na categoria de objetos inanimados? Sim, claro, podem; pelo menos, enquanto estiverem fora das tomadas. Aliás, existe objeto mais animado do que um televisor sintonizado em programas de auditório? Ou nas sessões ao vivo do Congresso Nacional? Bom, retornemos ao foco.
Penso essas coisas ao observar, daqui da mesa do jantar, a torradeira que parece me olhar de volta dali de cima do balcão da pia, para onde foi requisitada esta manhã, a fim de animar duas fatias de pão de forma que deveriam vir à mesa do desjejum uniformemente torradinhas, douradas e crocantes, a fim de receberem a manta de manteiga que faria meu dia começar mais inspirado. Sim, confesso: levantei da cama almejando um abrir de dia em clima de propaganda de margarina, já que havia sol e passarinhos cantando. Para completar o quadro, faltava apenas um par de cinematográficas torradas que, infelizmente, a velha torradeira, companheira de tantos amanheceres, não foi capaz de me proporcionar, apesar de bem intencionada, como sempre.
Ela não consegue mais equilibrar uniformemente o calor pela superfície da fatia do pão, que chega à mesa esturricado em baixo e ainda cru na parte superior. E não existe meio-termo em torrada. Ou seja, terei de trocá-la, velha amiga. Terás de sair de cena para dar lugar ao novo. Esse tipo de coisa sempre é meio triste para quem tem o coração ainda ligado na tomada.


(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 21 de novembro de 2016)

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Saber mexer os pauzinhos

Nos anos 1990, a gastronomia típica italiana vigente na Serra Gaúcha sofreu uma ameaça de abalo a partir da inserção do javali entre as iguarias que por aqui aterrissavam nas mesas dos restaurantes e embalavam as reuniões de amigos que se aventuravam a escantear a polenta com formaggio e o frango al primo canto. A costela assada de javali, o lombo de javali ao forno acompanhado com molho de menta, o quarto de javali preparado para ser abocanhado à gaulesa fizeram sucesso entre os apreciadores do bem comer, adaptando-se ao tradicional acompanhamento do radicci com bacon a título de salada e à sobremesa de sagu quente (sobre a qual pairam controvérsias que agora não vêm ao caso).
Mas a onda durou pouco. Arrefecida a euforia inicial, a javalizada se reproduziu como praga, passou a vandalizar as lavouras em gangues descontroladas e decaiu no gosto popular, sendo varrida dos cardápios para o retorno triunfante da bela polenta com queijo, das sopas de capeletti e de agnoline, da codorna ao molho, do bígoli com guisado, do churrasco de gado e de porco, dos peixes fisgados das pesqueiras. Falando em peixe, registre-se a passageira fase das trutas ao molho de amêndoas, que não chegou a abalar o império das velhas e boas tilápias fritas na banha.
Mas, como tudo na vida é sazonal, uma nova onda gastronômica finca fundações sólidas por nossas serranices: o fascínio pelos sushis. Estamos determinados a apreciar os delicados sabores dos coloridos acepipes oriundos da gastronomia japonesa, inclusive trocando os talheres pela manipulação dos pares de pauzinhos. Problema sou eu, claro. Noite dessas, infiltrado em evento enogastronômico refinado, detectei, em um dos cantos, o (agora) já tradicional bufê de sushi. Como todo bom habitante da Serra, pensei “oba, sushi” e lá fui eu, pratinho em punho, pauzinhos na mão, a pinçar unidades para depois saborear com a esposa.

Só que, ainda destreinados, meus dedos não conseguiam manter paralelas as varetinhas, que insistiam em fazer um xis cruzado enquanto eu tentava capturar um encantador sushizinho recheado com algo verde, que acabou arremessado em efeito catapulta contra o meu peito, quicou e foi rolar no chão bem embaixo da sola de meu sapato que nesse instante pisava e achatou o rolinho, agora impróprio para consumo. Minha esposa, acometida por um incontrolável acesso de riso, saiu pela tangente e me deixou ali, imóvel, salivando de desejo secreto por uma suculenta picanha no espeto, nem que fosse de javali. Não adianta, na hora do aperto, sempre apelamos para a tradição.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de novembro de 2016) 

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

O espinho que cala as rosas

Cartola, o Mestre do samba bom, nos ensinou a cantar que as rosas não falam. Sempre cantarolei o samba e dei crédito à tese do artista: as rosas do jardim, às quais às vezes recorremos para nos queixar das tristezas de nossos corações, não falam. Elas se resignam a simplesmente exalar o perfume que roubam de nossos amores perdidos. Isso é o que canta literalmente o samba, servindo como metáfora amplificadora para vários outros sentimentos. Aprendi, assim, ao escutar Cartola, que as rosas, então, não falam. Mas desde a noite da última quinta-feira, aprendi também que as rosas, se não falam, choram.
As rosas e todas as flores de todos os jardins, parques, floristas, matos, campos, salas, canteiros e vasos de todos os recantos da Serra Gaúcha estão, sim, mudas, caladas, chocadas e estarrecidas. Nada falam. E choram. Pode-se sentir a tristeza estampada em cada pétala de cada flor serrana, em cada delicado espinho de rosa, em cada fino caule. O perfume que exalam as flores da região, desde a quinta-feira à noite, dia 3 de novembro, é um perfume de dor. A dor da perda irreparável. A dor da tragédia insana. A dor do luto que rasga fundo. A dor da impotência frente ao horror. A dor de um mundo que se fecha cada vez mais à beleza das flores e mergulha na escuridão exalada pelo fracasso de toda uma civilização, assolada pelo espinho da violência. Quem consegue medir essa dor? Quem consegue represar esse pranto? Quem conseguirá consolar essas rosas que não falam e choram?
As rosas da Serra Gaúcha e todas as suas irmãs flores perderam na semana passada o seu afetuoso soberano. O Mago das Flores foi vítima da violência indiscriminada e bárbara que infecta todas as esquinas da vida brasileira, para se transformar em um número a mais no placar da contagem da violência. Nenhum dos números daquele placar é somente um número a mais. Cada uma daquelas vítimas provocou o pranto das rosas que habitam as almas de seus entes queridos, e as fez murcharem de dor. As flores de nossas cidades estão murchas de dor. Elas choram. Quantas flores serão necessárias para consolar a perda do Mago das Flores? E de cada uma das famílias das vítimas da mesma violência ao longo deste ano e dos anos passados? E dos que estão por vir?

Enquanto persistir o luto, quem se impõe são os versos dos Titãs, ao dizerem que “as flores têm cheiro de morte, a dor vai curar esses cortes”. As flores, dizem eles, se são de plástico, não morrem. Fernando Weber, o Mago das Flores, não era de plástico. Ele levou um tiro e morreu. E as rosas, agora, calam e choram.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro e 7 de novembro de 2016)

A recaptura da muçurana

Pois é, madama, a senhora veja só: nosso encontro semanal desta vez caiu bem no dia 31 de outubro, Halloween, o Dia das Bruxas. Não podemos deixar a data passar em branco, né? Hein? Insinuando coisas, eu? Óbvio que não, madama. Não insinuo nada, afirmo mesmo: não deixemos a data passar em branco. Neste dia, é costume narrar estórias estranhas uns aos outros, então, vamos a uma delas, que tenho muitas na manga.
Já de saída, pergunto: a senhora sabe o que é uma muçurana? Não sabe? Muçurana é uma cobra. Como? Pouco entende a senhora de cobras? Sim, posso imaginar. Então, lá vai minha estória estranha de Halloween, sobre o dia em que deparei com uma muçurana. Era eu um reporterzito ainda em formação, meados dos anos 1980, cabeludo, barbudo, magrinho e voluntarioso, aprendendo o ofício na simpática cidade de Candelária, quando recebi da “Folha de Candelária” a missão de entrevistar o dono de um ônibus de exposições parado para conserto em uma oficina. Lá fui eu falar com o seu Antônio de Saibro, bloquinho na mão, caneta Bic na outra e máquina fotográfica a tiracolo. Naquela época, era comum as cidades do interior receberem a visita de ônibus adaptados para abrigar exposições assombrosas, com fotos de aberrações, bichos esquisitos empalhados, animais raros vivos e outras estranhuras.
Aquele ônibus portava a Exposição Científica de Ofídios e Aracnídeos da Selva do Brasil, só que tombou de lado em uma curva perto de Candelária e teve de parar para reparos. A julgar pelo texto, de minha própria lavra, publicado no jornal, o estrago foi considerável: “Externamente, para-brisas e janelas quebradas e a lataria toda amassada. No interior, no local da exposição, percebe-se os efeitos do acidente: onças empalhadas com as palhas à mostra, tatu de pernas para o ar ao lado de um pequeno roedor enrodilhado em uma cobra que o ataca. Além disso, a estante que continha os animais vivos apresentava todos os seus vidros quebrados, onde podia-se perceber uma tartaruga de 40 centímetros ainda perplexa com a desordem reinante”.

Antônio informava que todos os animais vivos haviam sido recapturados após o acidente, exceto um: a muçurana. “A muçurana?”, inquiri, embaçando de suor frio as lentes dos óculos. “Sim, uma cobra que... ah, mas aqui está ela!”, exclamou, se agachando e capturando, às minhas costas, a tal da bicha perdida. Encerrei ali a entrevista e desabalei reto para a redação. Descobri ali que jornalismo é uma atividade de alto risco. E cobra, madama, é bicho que sempre assusta, seja do tipo que for. A senhora, agora, que conte outra.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 31 de outubro de 2016)

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

E o Nobel vai para...

Noite dessas tive um sonho. Foi semana passada, no andar de quinta para sexta-feira, quando fui dormir refletindo sobre o fato de Bob Dylan ter sido agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura de 2016, deixando dezenas de escritores ao redor do mundo chupando caneta. Admirador de carteirinha de Bob Dylan que sou (aprecio a obra e o personagem que Robert Zimmerman criou com genialidade), confesso que rumei ao leito mergulhado em pensamentos confusos e dicotômicos, sopesando os argumentos da multidão (furiosa) dos contrários e os argumentos da multidão (também furiosa) dos favoráveis à homenagem prestada ao cantor (agora escritor) norte-americano.
Bob Dylan, meu ídolo musical, ganhando o Nobel de Literatura. Sou contra ou a favor? E que importa minha posição a respeito? Bob Dylan ficará sabendo? A Academia Sueca aguarda com ansiedade minha reação? Minha mãe me exige um posicionamento, uma vez que infernizei anos a fio nossa casa em Ijuí rodando LPs o final de semana inteiro fazendo soar ao vento a voz fanhosa do bardo? Não, né. Mesmo assim, deitei a cabeça no travesseiro com a mente em turbilhão, sem conseguir bater, bater na porta do sono. Contra ou a favor? Minha mente era uma pedra rolante no travesseiro. Eu não encontrava abrigo contra aquela tormenta. E não adiantava pensar duas vezes, porque não estava tudo bem. Tudo não passava de uma simples distorção do destino... Apaguei!
Apaguei e acordei lembrando o sonho. Um sonho protagonizado por alguém que era aficionado pelo mundo dos sonhos. Eu estava em um estádio imenso, aguardando com expectativa o início do show, em meio a uma multidão excitada. De repente, as luzes se apagam. Um frêmito percorre as espinhas. Um acorde de guitarra ressoa e reconhecemos de imediato a música que vai abrir o espetáculo. O holofote acende e foca o guitarrista que invade o palco, sob os aplausos do público: é Jorge Luis Borges, mandando ver na guitarra distorcida. Ao fundo do palco, Adolfo Bioy Casares empunha as baquetas e chacoalha a bateria. O gigantesco Julio Cortázar dedilha seu baixo. Ernesto Sábato empunha a guitarra de apoio enquanto as backing vocals Silvina Ocampo e Alfonsina Storni começam o refrão ao qual fazemos coro: “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius! Tlööönnn, Uqbarrrr, Orrrr-bis Tertiuuuuus”! E lá vai Jorge Luis com seu solo de guitarra, liderando o tão esperado show dos Borges e os Alephs.

Acordo ainda com a nítida certeza, advinda do sonho, de que agora sim, Borges estava apto a ganhar o Nobel de Literatura. Mas tudo era sonho. E o sonho acabou.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro" em 24 de outubro de 2016)

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Agora sim: picolé no palito!

Eu havia prometido a mim mesmo que jamais voltaria a esse tema aqui nessas mal-digitadas semanais, porém, não consegui me conter e lá vamos nós de novo, madama, mergulhar na retomada da polêmica do sagu. Mas, também, pudera: como calar quando me chega ao conhecimento, lendo notinha publicada dia desses na coluna “Caixa-Forte”, aqui neste mesmo periódico, divulgando que determinada empresa situada no Vale dos Vinhedos, em Bento Gonçalves, resolveu inovar e passar a vender picolé de sagu? A senhora acredita nisso? Só vendo? Sim, madama, eu também. E vou além: só vendo e lambendo.
Tempos atrás, ousei revelar aqui minha incapacidade em modelar meu (discutível) gosto gastronômico e equalizá-lo na frequência necessária para conseguir apreciar a sobremesa conhecida como sagu quando servida em temperaturas que variam do morno ao quente, conforme parece ser apreciado pela esmagadora maioria dos nativos e habitantes da Serra Gaúcha. Vi-me praticamente sozinho emparedado na minha estranha preferência por sagu frio e/ou gelado, o que, conforme os relatos que recebi, reveste-se em atitude reveladora de gosto estragado. “Sagu se come quente, senhor cronista”, foi o que aprendi ao meter a mêscola onde não era chamado. Fiquei pensando com os botões de minha manga de camisa que existe uma incoerência nisso, uma vez que, em todos os restaurantes e bufês da região em que a sobremesa de sagu é disponibilizada, ela se apresenta fria, jamais sendo mantida aquecida sobre um réchaud fumegante, e parece ser assim consumida por todos, mas, enfim, havia decidido deixar isso para lá.

Pois bem, mas agora, surge, de dentro das entranhas da Serra Gaúcha, a novidade do picolé de sagu, que, a julgar pelo que se pode depreender pelo uso da lógica e da razão, haverá de ser servido gelado aos consumidores. Bom, se depender dos nativos, vai ser um fracasso. Quem vai chupar picolé de sagu gelado? A gente quer sagu quente, conforme tento aprender, ora, pois, direis bolotas de mandioca! Correm os inovadores gastronômicos do Vale dos Vinhedos o risco de verem a picolezada encalhar nos freezers e derreterem ao abandono. Ou isso, ou a novidade é mesmo revolucionária: compre o picolé e exponha-o ao sol por trinta minutos, na tentativa de aquecê-lo e torná-lo próprio para o consumo. Ahá! Agora sim, entendi. Porque sagu, né, madama mia, saboreia-se quente ou morno! Quente ou morno! Quente ou morno, sim, sim, entendi! De minha parte, cabeçudo como sou, vou mesmo ver para crer. Degustarei meu saguzinho ao palito devidamente gelado!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de outubro de 2016)

terça-feira, 11 de outubro de 2016

A não-rotina de Charlotte

Por livre e espontânea iniciativa, eu jamais escolheria o filme “A Sogra” para dedicar quase duas horas de minha vida defronte à tela da tevê. Nada contra o tema indicado no título, uma vez que sou fã de minha sogra e tenho por ela o maior apreço. A questão é que o tempo é curto e, quando pinta a ocasião, costumo priorizar determinados filmes da lista que há muito desejo assistir e esse em questão não estava incluso. Mas a vida é feita de surpresas e “A Sogra”, comédia leve norte-americana de 2005, tendo no elenco estrelas como Jennifer Lopez e Jane Fonda, revestiu-se em uma delas. Explico.
O inesperado encontro com o filme deu-se manhã dessas em que transportei para a sala a bicicleta ergométrica a fim de empilhar pedaladas que viessem a culminar no queimar das gordurinhas que andam se mancomunando ao redor de minha cintura com a sorrateira intenção de dar um golpe que derrube minha saúde e encurte o mandato de minha expectativa de vida. Ligo a televisão com a intenção de animar o exercício feito a quatro paredes e daí zapeio, já pedalando, para encontrar algum programa que anestesie a compreensão de que estou mesmo combatendo o sedentarismo que me define. Estacionei no filme que se iniciava, primeiro, por cansar de equilibrar perigosamente o controle-remoto em uma das mãos que deveria estar no guidão e, segundo, porque Jennifer Lopez está muito bela nesse (só nesse?) e achei que apreciar beleza enquanto pedalava seria um combustível a mais.
Lá pelas tantas, Charlotte, a personagem de Jennifer Lopez, sai-se com esta pérola: “a vida é curta demais para viver o mesmo dia duas vezes”. A personagem procurava explicar ao futuro namorado a razão pela qual ela se dedicava a uma gama infinita de atividades a cada dia, ampliando seu espectro de interesses e fazendo de cada dia de sua vida uma experiência única. A partir daquele momento, abstraí da trama e me pus a refletir sobre o conceito com que o filme acabara de me brindar. De fato, a vida é curta e costumamos nos curvar à tendência de deixar a insossa rotina nos envolver e nos roubar a capacidade criativa de conferirmos sabores especiais aos nossos dias.

“Um dia por vez”, já cantava John Lennon, em antítese ao cenário descrito por Chico Buarque com seu “todo dia ela faz tudo sempre igual...”. Claro que falar é fácil. Vivemos a vida real, não somos personagens de uma comédia romântica. Mas também não custa nada procurarmos, às vezes, driblar rotina, dar uma pedalada na mesmice e agregarmos aos nossos dias alguns temperinhos especiais. Charlotte tem lá sua razão.
(Crônicas publicada no jornal "Pioneiro" em 10 de outubro de 2016)

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Grato por não ser Neymar


Não deve ser fácil ser o Neymar. Eu não queria ser ele e não sou. Ainda bem. Obrigado, Universo, por eu não ser o Neymar. Particularmente, admiro pouco o Neymar enquanto jogador de futebol e menos ainda enquanto exemplo de figura pública. Mas tem uma ou duas coisas nele que eu admiro. A conta bancária do Neymar, por exemplo, é uma delas. Talvez a única delas. Gostaria muito de ter a conta bancária do Neymar sem ter de ser o Neymar, mas é preciso ser o Neymar para ter a conta bancária do Neymar e isso, decididamente, eu passo.

Não quero ser o Neymar porque fico aqui pensando, ao observar as minhas pantufas repousadas sobre o pufe da sala: não deve ser fácil ser uma celebridade. O problema de ser celebridade é que a imprensa transforma em notícia todo ato que a pessoa célebre pratica, por mais banal e prosaica que essa ação seja. Daí fica difícil segurar a onda. O Neymar, dia desses, por exemplo, inventou de postar na internet um vídeo em que está sentado a um piano, cantando. Bastou para que a notícia viralizasse e as pessoas se digladiassem discutindo as qualidades canoras dele. Há quem diga que Neymar, enquanto cantor, é um ótimo jogador. Há quem diga o contrário: Neymar, enquanto jogador, é um ótimo cantor. E há quem diga que é sofrível em ambas as atividades. Eu não digo nada porque não me dignei a abrir o vídeo. Se não assisto a partidas em que ele joga, também não vou ficar ouvindo-o cantar, mesmo que eventualmente esteja perdendo de escutar um novo Pavarotti. Azar o meu. Ou não.

O fato é que Neymar não está almejando se lançar em uma temerária carreira artística. Nada disso. Ele apenas gravou um vídeo de brincadeira em casa, com amigos. Como você faz ou faria. Como eu faria, fiz ou farei. Só que você e eu não somos Neymar (de minha parte, um alívio, reitero) e as brincadeiras que gravamos em vídeo pouco interessam às massas e à imprensa. Não somos celebridades. Nossos divórcios não enlouquecem a mídia como no caso de William Bonner e Fátima Bernardes, Brad Pitt e Angelina Jolie. Nossas desafinadas ao piano em casa não geram manchetes (eu sequer tenho piano, no máximo, um violão emudecido há anos a um canto da sala).

Como não somos Neymar e nem celebridades, vivemos em nosso dia a dia o privilégio inerente às pessoas comuns: o de jamais esquecermos o que significa viver sendo gente normal, sem que nossas banalidades invadam a privacidade dos outros. Ops, verdade madama, bem lembrado... Estou esquecendo das redes sociais... Retiro tudo o que escrevi...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de outubro de 2016)

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Espinafre e salsaparrilha

É difícil crer que a indústria alimentícia norte-americana tenha conseguido incrementar a venda de espinafre enlatado a partir da década de 1930, na esteira do sucesso do personagem Popeye nos cinemas (via desenhos animados) e nos quadrinhos (via tiras de jornal e gibis). O marinheiro caolho consegue obter uma força sobre-humana para enfrentar seu rival Brutus sempre que engole o conteúdo de latas de espinafre, como bem sabemos todos os que temos contato com a cultura pop gerada no século 20. Espinafre dá força? Ok, então, vamos comer espinafre. Se não foi, ao menos esse deveria ter sido o mantra, afinal, é preciso que essas coisas sirvam para algo útil.
Espinafre, ao menos, é possível encontrar nos supermercados e nas feiras de bairro perto de casa, diferentemente da poção mágica do druida Panoramix, que também concede força incrível para que os guerreiros gauleses Asterix e Obelix desçam a lenha nas legiões romanas que tentam conquistar toda a Gália na época do Império Romano de Júlio César. O portentoso Obelix devora javalis assados inteiros nos festins ao final de cada aventura, é verdade, e esse tipo de carne já é mais fácil de encontrar se alguém desejar seguir o exemplo de seu herói do mundo da fantasia (o javali viveu dias de glória na gastronomia da Caxias do Sul dos anos 1990, mas hoje anda meio amuado nos cardápios). Já os admiradores de Garfield, o gato alaranjado, encontram mais facilidade em se sintonizar com as preferências gastronômicas do personagem, que é fissurado por lasanha. Os viciados em hambúrguer podem não saber, mas estão rendendo loas ao Dudu, o amigo do Popeye, que devora pilhas do lanche em questão de minutos.

A dupla de estômagos-sem-fundo Salsicha e Scubidu devora o que vem pela frente, na quantidade que for. A Magali, amiga do Cebolinha, tem paixão por melancia. Os patinhos Huguinho, Zezinho e Luisinho amam a torta de maçã preparada pela Vovó Donalda. O Pateta engole superamendoins para se transformar em super-herói. O gato Tom saliva por ratos como Jerry, apesar de nunca conseguir saboreá-lo (mesmo drama vivido pelo Coiote que persegue o avestruz Papaléguas). Por outro lado, a argentina Mafalda tem aversão aos pratos de sopa empurrados por sua mãe e que são alegremente sorvidos pelo seu irmãozinho Guille. O contraponto fica por conta dos brasileiríssimos Zeferino, Graúna e Bode Francisco Orellana, habitantes da Caatinga criados por Henfil, cujos estômagos roncam de fome mesmo. A moral disso tudo? Falar de comida, né, madama, que é o que nos irmana e interessa, no final das contas.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de setembro de 2016)

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Do salmão aos louros

O salmão, você faz assim: primeiro, compra o salmão em alguma peixaria ou no hipermercado mais perto de casa, porque você não vai se botar a pescar salmão e, amigo, cá entre nós: salmão não se pesca, salmão se compra já pescado, ok? Você conhece alguém que já tenha pescado um salmão na vida? Não, né! Traíra, baiacu, dourado, anjo, tilápia, isso sim, pesca-se. Mas salmão, não. Salmão se compra. É mais fácil achar alguém que ganhou na mega-sena e não seja laranja de estelionatário do que encontrar pessoa que tenha pescado um salmão. Salmão não entra nem mesmo em mentira de pescador. Hein? Baiacu? Eu não falei baiacu. Falei? É, falei, sim. Mas não sei se baiacu é comestível. Também, não vem ao caso, foquemos no salmão, que é o protagonista desta gastrocrônica.
Então, ao princípio: primeiro, consiga um salmão. O melhor é obtê-lo em postas. Posta é um jeito masterchefo de dizer “pedaço”. Posta é pedaço. Preveja no máximo duas postas por pessoa, não mais do que isso, afinal, ninguém vai querer se empanturrar de salmão, nunca vi disso. Uma posta é um pedaço do tamanho tipo assim de uma mão aberta, mas os dedos unidos. Abra a mão. Isso! Uma posta essa sua mão. Legal! As peixarias vendem postas de salmão em saquinhos congelados, é fácil solucionar essa parte. Isso ou, no hipermercado, peça ao atendente para esquartejar a peça de salmão fresco que está em exibição ali em cima da montanha de gelo. Diga “quero esse salmão em oito postas” e receberá do atendente um olhar respeitoso. Ele verá em você alguém que sabe o que está fazendo, alguém que não erra posta nenhuma.

Leve para casa as postas (se congeladas, descongele-as) e deixe-as marinar em suco de limão por um par de horas. “Marinar” significa simplesmente deixar o peixão ali, abanheirado no suquinho, na boa, durante um tempo. Depois, escorra o líquido e tempere as postas com sal e pimenta-do-reino. Só. Sem nhenhenhé. Daí, pegue uma frigideira, unte com óleo de oliva extra-mega-hiper-virgem (quanto mais virgem, melhor, sempre) e ponha as postas a fritar. Vire. Frite. Vire. Quando a casa estiver envolta em um forte cheiro de salmão, é que já estamos nos finalmentes. Corte uma fina fatia de queijo gorgonzola... Eu não tinha falado do gorgonzola? Sim, volte ao mercado, precisa gorgonzola. Conseguiu? Então: corte tirinhas de gorgonzola e cubra cada posta de salmão com uma tira. Deixe derreter. Pronto. Leve à mesa, abra o vinho, sirva e receba os louros. Ou os abraços. Ou, se for o caso, os beijos, os beijos, os beijos... Só depois não me venha com conversa de pescador...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de setembro de 2016)

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Dante e o Pokémon

Um pouco de filosofia para introduzir a crônica de hoje e revesti-la com certa dose de consistência, uma vez que com leveza nem mesmo a balancinha aqui de casa está acostumada: por meio da experiência e da observação, aprendemos que as nuances da vida não são unas. Nada é absoluto e único. A dualidade permeia tudo e Janus, o deus das duas faces, parece ser quem baila a baqueta e dirige o coro da vida. Tudo tem dois lados. Sempre há mais de um viés por meio do qual ressignificamos o que nos cerca. Bem, feitos os rasgos filosóficos, desbarranquemos logo ao mundanismo crônico e vamos adiante com isso.
Porque tudo pode ter mais de um ponto de vista, alguns leitores atilados (e os leitores destas semanais mal-traçadas são bastante atilados) me ensinaram a debruçar um olhar diferente ao fenômeno da caça aos Pokémons, atividade viralizada que vem pautando o cotidiano de dezenas de centenas de milhares de pessoas virtuais (é, tem gente que já virtualizou quase que completamente sua própria existência) ao redor do planeta. O joguinho conhecido como Pokémon Go, que espalha pelas esquinas do mundo a turba de caçadores atrás dos bichinhos escondidos virtualmente em cenários reais e visitados ao vivo, apresenta como característica positiva o fato de fazer as pessoas circularem pelos ambientes físicos reais que as circundam em suas cidades. Assim, a turma levanta o sentante da poltrona e do sofá e se bota a caminhar pela aí, tudo bem que com a fuça mergulhada na tela do celular, mas ao menos botando os pés em praças, parques, ruas.

Vejo gente caçando Pokémon na Praça Dante Alighieri, no centro de Caxias do Sul. Olha, tem um ali sentado no colo da estátua de Beatriz. Seria interessante se o Pokémon, antes de ser capturado, pudesse informar ao caçador alguma coisa sobre o local em que estava escondido, pois não? A estátua de Beatriz, por exemplo, Pokémon, foi criada pela artista plástica caxiense Dilva Conte e instalada ali no ano passado, pertinho do busto de Dante, para lhe fazer companhia, sabia? Beatriz era a musa inspiradora do poeta italiano Dante Alighieri (1265 – 1321), autor do famoso livro “A Divina Comédia”, Pokémon. Pouco mais de um século atrás, a comunidade de Caxias do Sul empreendeu altos esforços para arrecadar a verba necessária para produzir o busto de Dante, com bailes artísticos, saraus etc, sabia? Nossa praça tem mais coisas, Pokémon, vem. Quer ver? Ah, está sem tempo, precisa se esconder? Tá, vai ali atrás do Monumento Gigia Bandera. Outra hora falamos sobre ele, Pokémon. Agora, go!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de setembro de 2016)

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Uma vez por semana

Uma vez por semana, lá na Ijuí de minha infância e adolescência, era sagrado a família se reunir na casa de meus avós paternos aos domingos de meio-dia para saborear o churrasco que meu avô (o “Opa”, que significa “avô” em alemão) fazia. Minha avó, a “Oma”, preparava a tradicional salada de batata e eu, assim que fiquei maior de idade, me encarregava de armar a caipirinha, cuja técnica secreta o Opa me legara. Esses encontros semanais juntavam primos, tios, avós, netos, e estão gravados na memória de toda a família.
Na mesma época, era também tradição de nosso pequeno núcleo familiar (meu pai, minha mãe, minha irmã, eu e meu boneco de plástico Luizinho) irmos almoçar ou jantar, uma vez por semana, no “Restaurante do Primo”, em que eu devorava polentas fritas (antecipando a futura adoção da Serra como lar) e depois me punha a correr pelas mesas do local, a investigar o que os demais clientes estavam usufruindo do cardápio e a reportar (antecipando o futuro jornalista) tudo a meus pais. Outro evento familiar semanal que era cumprido à risca e com deleite era a ida à Banca de Revistas do Seu Sahlberg (“Livraria Progresso”), nas sextas-feiras à noite. Por alguma razão, nossa família tinha o privilégio de poder adentrar a banca no final do expediente, quando Seu Sahlberg estava de portas fechadas fazendo o balanço semanal das vendas. Assim, tínhamos as prateleiras disponíveis só para nós e fazíamos a festa escolhendo revistas a serem devoradas no final de semana. Uma festa de Pato Donald, Recruta Zero, Brasinha e Revista Recreio!
Mais tarde, passei a ganhar uma “semanada” de meus pais, ou seja, uma quantia específica em dinheiro recebida todas as sextas-feiras, a fim de aprender a administrar valores (que eu torrava tudo em gibis e livros do Monteiro Lobato). Nessa mesma época, eu e minha irmã podíamos escolher um dia da semana para ficarmos acordados até mais tarde (depois das 21h) e assistir a um episódio de nosso seriado televisivo preferido. Eu escolhi “SWAT” e aguardava com ansiedade a chegada desses dias específicos. Isso sem falar nas manhãs de domingo nos anos 1980 e 1990, quando Nelson Piquet e Ayrton Senna tornavam nossas semanas mais divertidas com suas performances na Fórmula-1.

Agora, a expectativa pela chegada de um dia específico da semana, significativo e prazeroso, passa a se dar, de minha parte, pelas segundas-feiras, que é quando o Pioneiro publica, agora semanalmente (e não mais diariamente), minhas crônicas aqui neste espaço, proporcionando o encontro prazeroso com os leitores. Até segunda que vem!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de setembro de 2016)

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

De bactérias a dinossauros

Tive o privilégio de vivenciar uma experiência transformadora na tarde da última terça-feira, quando fui convidado pela segunda vez (já havia comparecido alguns meses atrás no turno da manhã) a conversar com os alunos e professoras da Escola Municipal de Ensino Fundamental Rosário de São Francisco, no Desvio Rizzo, aqui em Caxias do Sul. No início do ano a escola decidiu adotar meu livro “Insetolândia: Uma Viagem ao Redor do Quintal”, e a obra foi amplamente lida, debatida, discutida e trabalhada em sala de aula nas diversas turmas, em todas as séries. O ápice de toda essa atividade seria o encontro com o autor, em carne, osso e antenas, e lá fui eu.
Fui e voltei para casa (nas duas visitas) abastecido de carinho, presentes, vivências, trocas, satisfação e, especialmente, sugestões de temas para novos livros. Sim, porque os alunos da Escola Municipal Rosário de São Francisco não se restringiram a esbanjar criatividade e talento na confecção de poesias, contos, releituras da obra lida, apresentações teatrais, esquetes, músicas, jogos, documentários, experiências científicas (aprendi com alunas de nove anos o que são artrópodes, por exemplo), charadas, pinturas, dobraduras, colagens, entrevistas (fui submetido até a um “talk show”), trabalhos manuais etc. Eles foram além e ali, na presença do autor (“olha, olha, é o autor!”), ao longo dos diversos bate-papos realizados, incentivaram o escriba a dar sequência à sua carreira, municiando-o com sugestões de temas para os novos livros.

Que tal um livro contando a vida das bactérias? Foi a primeira sugestão, afinal, se eu havia escrito um sobre insetos, tendo iniciado anos antes com outro sobre as aventuras de um gato, por que não seguir a escala redutiva e enfocar agora as bactérias? Anotado! A outra sugestão, advinda de uma das dezenas de dedinhos levantados esperando para fazer pergunta, consiste em escrever uma obra sobre a origem dos dinossauros. A proposta se concretizou depois de eu responder acertadamente à pergunta de outro menino, desejoso de conferir se eu sabia como os dinossauros haviam desaparecido da Terra. Arrisquei uma resposta, o menino escutou-a atento, mantendo o dedinho erguido até o final de minha fala. Foi um meteoro que se chocou contra a Terra. Ok, eu sabia. Estava apto, então, a receber a sugestão para escrever sobre dinossauros. Eles confiam em minha capacidade. Talvez, um dia, eu o faça. Nada melhor para um escritor do que ser acolhido por dezenas de leitores atentos e reflexivos, independentemente da idade. Sou mesmo um sujeito de sorte.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de setembro de 2016)

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Espelho, espelho meu...

Assisti a um debate televisivo em que um jornalista brasileiro radicado nos Estados Unidos refletia a respeito da estranha capacidade que o povo brasileiro tem de ser tolerante com mazelas que, em outros países, já foram extirpadas há tempos ou, pelo menos, estão subjugadas a rígidos mecanismos de inibição, controle e punição. O brasileiro em geral é tolerante com a corrupção, com os corruptos e com os corruptores. O ponto de quebra da tolerância e da paciência com esse quadro parece não chegar nunca, apesar de, no momento, se estar vivendo um aparente movimento de amadurecimento nesse quesito. Espero que sim.
Além disso, penso eu que o povo brasileiro também se mostra leniente com a subversão das regras do jogo. Estipulam-se pactos, leis, códigos, porém, sucumbimos com facilidade ao apelo (infelizmente irresistível no país) da tentação de ludibriar essas regras. O vício do “jeitinho brasileiro” não tem nada de inocente, pelo contrário. É devido a ele que atropelamos faixas de segurança, desrespeitamos sinais vermelhos, sonegamos impostos, licitamos 100 para construir 90, “erramos” no troco, falsificamos datas de vencimento, furamos filas, trocamos voto por lebre, apoiamos golpes de estado, defendemos censura, clamamos por regimes autoritários, essas barbaridades todas. Somos, em geral, tolerantes com a corrupção e com a subversão das regras.
Por outro lado, detecto que nós, brasileiros (grande parte, não todos), nos mostramos amplamente intolerantes com algumas outras coisas, em especial, com as diferenças humanas. Somos intolerantes com quem é diferente de nós e com quem pensa diferente. A sociedade brasileira apresenta níveis elevados de intolerância em relação a sexo, gênero, opção sexual, nível social, posição política, etnia, nacionalidade, formação, time do coração, pele, raça, cor, ideologia, origem, profissão, religião (ou ausência dela), peso, altura, hábitos, cor de cabelo, crenças, gostos, preferências e assim por diante. Não só não respeitamos quem não pensa e age igual a nós, como nos arvoramos o direito de atacar, odiar, humilhar, ameaçar, ridicularizar (e até a criminalizar) e espinafrar quem é e pensa diferente. Temos medo do que não entendemos e, por isso, atacamos. Como não entendemos quase nada, atacamos sempre, muito e a todos.

O que se tira disso? Não sou sociólogo, tampouco filósofo, assim, só alcanço o que a lógica mais rudimentar me permite: somos altamente intolerantes com o que não se assemelha a nós e altamente tolerantes com aquilo que espelha nossa própria essência. A se pensar.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de setembro de 2016)

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

A lógica do lobo

Hoje a crônica vai por conta da Madama. Não o texto em si - até porque daí eu teria de partilhar parte de meus proventos decorrentes da digitação diária destas mal-tecladas linhas e minha síndrome de Tio Patinhas não o permitiria -, mas, sim, a essência do exposto, oriunda de uma pertinente preocupação que a vem assombrando nesses assombrosos dias e que ela teve a delicadeza de compartilhar com este escriba. Delicadeza aliada à esperteza, pois que ela, no fundo, imaginava (e esperava) que eu acabaria transformando o insumo em crônica e dando-lhe o crédito, já que isso sobre mim ela sabe: mundano cronista, sim; larápio de autorias alheias, jamais! Apesar de não ser banqueiro, sempre dou crédito a quem o merece.
Madama me confessou andar apoquentada (Madama é dessas raras criaturas que ainda se apoquentam com as mazelas do mundo imediato ao seu redor e também à distância, do Oiapoque ao Chuí; do Rio das Antas ao Deserto de Gobi), apoquentada e incomodada (que ela também se incomoda) com essa epidemia psíquica que anda contagiando as gentes de hoje, cegando-as em meio a uma neblina espessa de preconceitos e ideias preconcebidas impossíveis de serem removidas (as imagens literárias aqui usadas são de Madama, uma exímia escultora de figuras de linguagem). “As pessoas botam uma coisa na cabeça e não há Cristo que as tire; não há argumento, lógica ou razão capaz de remover o tijolo mental que elas criam”, exclama Madama, olhos arregalados por trás do pince-nez (Madama, elegante, equilibra há décadas um delicado pince-nez na ponta do discreto nariz).

Verdade, Madama. Suas reflexões fazem o mundano cronista evocar uma das mais famosas fábulas de Esopo, o filósofo-escravo grego do século VI antes de Cristo: “O Lobo e o Cordeiro”. Era assim: O lobo viu o cordeiro bebendo água num riacho e decidiu devorá-lo. Como precisava de uma boa razão para isso, acusou-o de sujar a água que ele mesmo bebia, apesar de o lobo estar bebendo na parte superior do riacho. “Como posso sujar sua água, se ela vem daí de cima onde você está?”, argumentou o cordeiro. Desarmado no âmbito da lógica, o lobo retrucou: “Sim, mas ano passado insultaste meu pai”. E o cordeiro: “Eu nem era nascido”. Irritado e determinado, o lobo vociferou: “Se não foi você foi seu pai, ou seu irmão, ou seu tio. Defenda-se como quiser, pois não vou poupá-lo”, e devorou o cordeiro. Nem precisava, né Madama, mas Esopo insiste em grafar a moral da história: “Quando alguém está disposto a nos prejudicar, de nada adianta nos defendermos”. A alcateia assombra Madama.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 31 de agosto de 2016)

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Uma aposta bem sacana


Hoje vou propor fazer uma aposta com a senhora, madama. A senhora aceita? Concordaria em correr o risco? Veja lá, hein, madama, normalmente eu sei o que estou fazendo, mas a senhora também tem lá suas garantias, claro. Vamos jogar um pouquinho? Afinal, que graça teria a vida se de vez em quando não ousássemos brincar com o perigo, mexer com fogo, mesmo sob o risco de fazer pipi na cama de madrugada? É, sim, também sou do tempo em que as avós nos advertiam para não brincar com fogo porque isso dava piririri de noite na cama. A senhora lembra, né? Então, vamos jogar?

Lá vai a aposta. Trata-se de um desafio sacaninha, desses típicos de autor de livro policial que lança pistas falsas para desnortear o leitor que se acha esperto, na tentativa de manter o mistério até o final da trama. O desafio é o seguinte: aposto que consigo dizer o nome de uma personalidade mundialmente famosa que a senhora não tem nem ideia de quem seja. É estrangeiro e já morreu, não faz muito. Vamos lá? Está pronta? Vou dizer o nome: Michael Jackson! Calma, calma, não meta as mãos na mesa para arrebanhar as fichas, o jogo ainda não acabou, a senhora não venceu a aposta, nananina! Quietinha aí e escuta. Ou melhor: lê. Eu disse Michael Jackson, e a senhora jamais ouviu falar dele. Ao menos, não do Michael Jackson a quem estou me referindo. Ahá! Eu disse que era coisa sacaninha.

Michael Jackson, madama, eu vou lhe dizer quem é. Ou quem foi, porque hoje, 30 de agosto, faz exatos nove anos que ele morreu. Trata-se de um famoso (sim, famoso) escritor e jornalista britânico, nascido em Wetherby em 27 de março de 1942, e que se notabilizou em todo o planeta por ser o maior especialista em análise de cervejas e uísques, tendo escrito vários livros sobre o tema, inclusive, publicados no Brasil. Não há referências a ele como sabendo fazer o passinho de dança “moonwalk”, como no caso daquele outro Michael Jackson que a senhora logo evocou mentalmente na hora de tentar rapar a mesa das apostas. Eu me referia a esse outro Michael Jackson, que a senhora nem sabia que existia, até agora.

Confesso que tampouco eu sabia da existência do tal especialista em cervejas e uísques até ontem, na hora de pesquisar para escrever esta crônica. Mas me espantei com a questão dos homônimos no mundo e do que eles fazem ao portarem nosso próprio nome. Haverá outros Marcos Fernando Kirst pela aí, dançando o “moonwalk” ou escrevendo sobre uísque? E quantas madamas será que há no nosso tão pequeno planeta, construindo biografias inimagináveis, madama? Há coisas que é melhor nem saber...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de agosto de 2016)

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

O muso do Festival

A principal estrela da 15ª edição do Festival de Cinema de Gramado, realizada no longínquo ano de 1987 (quase três décadas atrás), fui eu mesmo. Ouso afirmar isso porque, imerso na condição humana como sou por direito nato, meço o mundo e relativizo a importância das coisas a partir de meu próprio umbigo. Viu só, madama? Hoje decidi chutar o balde que continha a pequenez de minha modéstia.
Resgato a memória embalado pela polêmica capitaneada na edição deste ano do Festival pela atriz Sonia Braga, que, em entrevista coletiva na abertura do evento (sexta-feira passada), voltou a criticar o governo de Michel Temer, chamando-o de golpista. Sonia Braga é e sempre foi uma mulher de posições definidas e exerce seu direito de expressá-las. E o Festival de Cinema de Gramado é e sempre foi palco para manifestações de seus participantes.
Vi isso ao vivo naquele ano de 1987, quando, na condição de ainda semi-imberbe estudante de Jornalismo, obtive credencial de imprensa por meio da Rádio da Universidade Federal de Santa Maria e, após raspar os trocos da caderneta de poupança para financiar pousada, alimentação e transporte, pude vivenciar “in loco” o clima do evento. Presenciei o diretor de cinema Rogério Sganzerla (1946 – 2004) interromper a projeção de seu filme “Nem Tudo é Verdade”, após falhas repetidas no sistema de som, e proferir discurso irado contra as más condições das salas de cinema do país na época. Cheguei pertinho e fiz fotos das musas Lúcia Verissimo e Bruna Lombardi.

E obtive meu diploma de foca inexperiente e inconveniente ao abordar, no saguão do Palácio dos Festivais, gravador de fita-cassete em punho, o cineasta Walter Hugo Khouri (1929-2003), que tomava cafezinho e passava uma cantada em uma bela recepcionista. Imbecilizado pela inexperiência juvenil, interrompi a conversa e pedi entrevista para a Rádio Universidade de Santa Maria. “Para quem?”, exclamou o diretor, contrariado com a fuga da beldade que já estava quase no papo. Repeti e ele, vendo meu nervosismo, assentiu. E tasquei a primeira pergunta: “Quais as suas expectativas para o Festival?”. Novo enfado e a resposta desolada: “Oh, não, logo isso...”. Mas ele respirou fundo e deu a entrevista. Que não foi ao ar em lugar nenhum. Serviu apenas para tirar parte de meus temores. Conseguira entrevistar um famoso! Agora, o mundo seria meu! Dali em diante, não vi mais nada. Só eu sabia, mas eu era a estrela do Festival! Do meu festival pessoal rumo à formação profissional. Afinal, madama, somos as estrelas de nossos próprios filmes de vida, certo?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de agosto de 2016)

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Um freio aos voos de Solo

Hope Solo, a goleira-musa da Seleção Feminina de Futebol dos Estados Unidos, coleciona fãs da mesma forma como enfileira polêmicas. Antes ainda de rumar para as Olimpíadas do Rio de Janeiro, já levou merecidos puxões de orelha por postar fotos, em seus perfis nas redes sociais, comprovando estar paramentada para enfrentar os perigos do vírus da Zika no Brasil, exibindo uma espécie de kit completo repleto de repelentes e até uma máscara especial anti-insetos. “Se alguém na Vila Olímpica esquecer o repelente, pode vir falar comigo”, escreveu a bela goleira de feias atitudes. Acabou levando goleada de críticas na internet devido à brincadeira preconceituosa.
A gracinha de mau gosto obrigou a atleta a pedir desculpas aos brasileiros assim que pisou no país para o início da caça por medalhas. Mesmo assim, o público não perdoou e Hope amargou dezenas de minutos de vaias durante as partidas de sua equipe que, por fim, foi derrotada pela Suécia nos pênaltis, ainda nas quartas de final, e ela teve de voltar para casa sem Zika e sem medalha na bagagem (apenas os tubos de repelente, que sabe-se lá se usou). O incrível é que isso não bastou. Hope, provando que não se contenta em provocar polêmica solo, mas sim em dobradinha, seguiu em frente em sua indomável vocação para armar confusão. Ao final da partida decisiva contra a Suécia, a arqueira deu declarações à imprensa internacional chamando as adversárias de “covardes” por terem adotado uma tática defensiva durante a partida, que resultou empatada em zero a zero no tempo regulamentar e na prorrogação, e foi definida nos pênaltis (a favor da Suécia, que foi à final e levou a medalha de prata).

Mas agora chegou a fatura, uma vez que má-educação e falta de ética têm limite. Ao menos, nos Estados Unidos parece ter. Esta semana, a Confederação Norte-Americana de Futebol decidiu suspender a goleira de participações na Seleção Feminina de seu país por um período de seis meses, devido às suas atitudes. Diz a nota oficial divulgada pela entidade: “Os comentários feitos por Hope Solo após a partida contra a Suécia durante a Olimpíada deste ano são inaceitáveis e vão contra o padrão de conduta que exigimos de nossas jogadoras de seleção. Além da arena atlética, além dos resultados, as Olimpíadas celebram e representam os ideais de jogo limpo e respeito. Nós esperamos que todos os nossos representantes honrem esses princípios, sem exceções”. Os bons exemplos estão aí, para serem seguidos. Refiro-me aos da Confederação Norte-Americana, e não aos da goleira, só para deixar claro.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de agosto de 2016)

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Nem neve, nem santinhos

Já sou conhecido pela turma de carteiros e carteiras que atendem o bairro em que moro, uma vez que demando deles bastante trabalho na entrega de encomendas que faço via postal, atraindo até minha casa livros, revistas, discos e filmes para completar minhas inextinguíveis coleções. “Encomenda para o senhor Marcos”, avisa pelo interfone o bravo funcionário da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, e lá despenco eu do décimo-primeiro andar, pantufas nos pés, coração ansiado acompanhando o visor do elevador a me desembarcar logo no térreo para que possa descobrir qual encomenda chegou e pelas mãos de qual de meus já amigos carteiros: o senhorzinho que gosta de ler e que já foi presenteado com livro de minha autoria; a moça da van de Sedex; o rapaz da motocicleta ou a rapariga caminhante.
Dessa vez é a rapariga caminhante, simpática (como todos) e conversadora, que entrega o pacote e pede para assinar na linha marcada. Hoje ela veio cedo e me achou em casa. “Não o tirei da cama, senhor Marcos?”, brinca. “Não, eu sabia que você viria e já estava cedo de guarda”, devolvo, assinando na linha ao lado do xis. Pelo jeito, ela gosta do que faz e compartilha uma sutileza de sua profissão que até então eu sequer desconfiava: “A campanha eleitoral dificulta nossa vida; as caixinhas de correio ficam lotadas de propaganda e santinhos e não sobra espaço para colocarmos a correspondência”. Verdade, não havia percebido isso. É importante que nós, moradores/eleitores, mantenhamos nossas caixas de correspondência regularmente esvaziadas, especialmente em período eleitoral, sob pena de não recebermos nossas encomendas e nossas cartas (cartas, não, que ninguém mais recebe carta, mas as faturas, as contas, os boletos e as multas de trânsito).

Vejo-a trotar rua abaixo com a pesada sacola às costas e me invadem a mente as belas palavras do lema dos carteiros norte-americanos, que diz mais ou menos assim: “Nem a neve, nem o frio, nem a chuva, nem o calor e nem a escuridão da noite impedirão estes carteiros de cumprir com agilidade as missões que lhes foram designadas”. O belo lema deriva da descrição que o historiador grego Heródoto (484 a.C. – 425 a.C.) fez do Angarium, o incrível sistema de mensageiros que existia na antiga Pérsia no século cinco antes de Cristo e que garantia o fluxo de informações naquela região. Se tanto na Pérsia quanto nos Estados Unidos nem a chuva nem a neve impossibilitam o trabalho dos carteiros, aqui no Brasil tampouco os santinhos eleitorais os impedirão de cumprir suas missões. Façamos votos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de agosto de 2016)

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

A resposta está na cara

Ela repousa logo ali, separada do presente pelo tênue fio intangível da sucessão dos dias que se transformam em anos e estabelecem a compreensão do passar do tempo. Observo meu rosto no espelho e tento encontrar nele a permanência de traços que me remetam a ela ou que pelo menos insinuem a existência de um elo concreto com uma época distante no calendário e, ao mesmo tempo, tão presente nas manifestações da memória. Talvez os sinais dela se escondam em meio às dobras das rugas que já raiam as esquinas dos olhos; talvez seja possível seguir seu rastro contando os fios brancos de cabelo que já se fazem incontáveis e irredutíveis em seu movimento de avanço; talvez a pista de seu paradeiro repouse nos sulcos da testa ou no relaxamento das pálpebras. Não sei.
Olho, olho e nada descubro. Algo me diz que a chave está ali, em algum lugar, e devo continuar perscrutando. Talvez a resposta não se encontre na mudança dos traços físicos e, sim, em algum aspecto que se mantém imutável apesar da marcha das horas. Para encontrá-lo, devo reorientar o foco do olhar. Percebo que o redirecionamento da linha de investigação me aproxima da resposta. O segredo não está na transformação dos traços, mas na essência intangível que os molda, cuja fonte reside na força vital e única que molda cada ser.
Sim, acho que descobri. O segredo de seu esconderijo talvez esteja exatamente na forma de olhar para si mesmo. Repousa no olhar, na intensidade do brilho que toma os olhos quando se olha o mundo com o mesmo entusiasmo de quando se veio há pouco a ele. Eis a chave. Redescobrir os traços da infância, distanciado cronologicamente dela por décadas, requer prestar atenção a alguns aspectos da capacidade infantil de seguir observando o mundo. É aí que se esconde a infância que às vezes dizemos “perdida”, mas que, na verdade, segue acompanhando nossa jornada diária de amadurecimento e de enfrentamento da vida, sempre presente no moldar da história pessoal que a cada um de nós é dado construir. Ela está no olhar e não nas rugas que envolvem e adornam os olhos.

Impossível não pensar nos tempos de criança neste 24 de agosto, definido nos calendários oficiais como Dia da Infância, e evitar ser invadido pela nostalgia inerente a uma época da vida em que o mundo ao redor descortinava oceanos infinitos de possibilidades. Ao longo da vida vamos escolhendo caminhos. Mas saber detectar a presença ainda em nós da criança que fomos e que ainda podemos ser se configura em amparo crucial para seguir em frente na companhia das rugas e das cãs.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de agosto de 2016)

terça-feira, 23 de agosto de 2016

O cardápio da mesa do Rei

“É preciso saber viver”, já dizia (cantava) Roberto Carlos. Mas não só isso. Também é preciso saber viver de acordo com o que se propõe a fazer na vida, digo eu, observando as atitudes do próprio Roberto Carlos. É preciso conhecer seu próprio lugar no mundo, ter consciência de suas metas e de como chegar a elas. Tendo a elas chegado, é preciso também saber mantê-las e isso requer um exercício constante, sempre alerta, de autoconhecimento e de atitudes coerentes. Viu só, madama, como é possível aprender lições importantes somente observando atos de Roberto Carlos? É uma brasa, mesmo, mora?
Como foi que eu cheguei a essas conclusões? Sim, a senhora tem o direito de perguntar. E sempre é um prazer preenchê-la, madama, de informações. Então, vamos aos fatos. Manhã dessas flagrei Roberto Carlos e seu sorriso participando como convidado especial do programa de Ana Maria Braga na televisão. Estavam em torno de uma farta mesa de café da manhã, o que aguçou as atenções de minhas papilas gustativas e, atendendo a seu pedido (das papilas),estacionei o controle-remoto por ali mesmo, para ver o que acontecia. Ana Maria oferecia bolinhos e pãezinhos a Roberto, que gentilmente agradecia, justificando que, de boca cheia, não poderia responder às perguntas dela e nem cantar. Esperto, esse Roberto Carlos, pensei. Ligeiramente frustrada, Ana Maria deixou no prato o bolinho que acabara de arrebanhar e chamou logo a entrada das perguntas que a produção gravara com populares, direcionadas ao cantor.
E lá veio a primeira: “Roberto, qual a sua comida favorita”? Opa! Também queria saber. Qual o rango favorito do Rei? O mistério seria revelado ao vivo. Depois da risadinha tradicional, o artista, sem pestanejar, respondeu: “Feijão, arroz e ovo frito”. Bingo, Roberto! Muito esperto! Ao invés de vir com masterchefices esdrúxulas como paleta de cordeiro ao molho de hortelã ou suflê de palmito com amoras, ele veio logo com um dos mais típicos pratos da preferência nacional. Todos se identificaram de cara com sua resposta. Roberto Carlos sabe que é um ídolo das massas (“Como, não era feijão e arroz?”; não, madama, “massas”, aqui, usado no sentido de “povo”) e, para se manter no posto, é preciso renovar constantemente a identificação com seu público.

Até eu, que também sou massa, me identifiquei. Apenas acrescentaria um bife como acompanhamento, mas aí já estaria elitizando o cardápio, eu sei, e o Rei cuidou para não fazer isso. Roberto Carlos sabe estar em sintonia com seu público. Prova é que nunca o vi ser olimpicamente vaiado em estádios.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro, de Caxias do Sul, em 23 de agosto de 2016)

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Muito além dos 90 minutos

Coisas estranhas acontecem em Uvanova, aquela pequena cidadezinha de colonização italiana encravada no seio da Serra Gaúcha, às margens do Rio das Antas, que faz divisa ao sul com a cidade de Tapariu; ao norte com a localidade de Vila Faconda; a leste com Nova Brócola do Sul e, a oeste, todos dão uma paradinha no final da tarde para apreciar o pôr-do-sol, porque, também, ninguém é de ferro e não dá para preencher a vida só com trabalho, trabalho, trabalho. Mantenho-me informado a respeito dos acontecimentos que movimentam a cidade por meio das notícias impressas no “O Uvanoveiro”, jornal semanal local que fielmente assino e recebo pelo correio com um atraso médio de quatro semanas porque, para economizar selo, são enviadas juntas as quatro edições do mês.
A grande novidade que mexe com o cotidiano dos uvanovenses (“uvanovense” ou “uvanoveiro”, uma das celeumas que chacoalham a comunidade há décadas) provém da área esportiva, mais especificamente do setor futebolístico, uma vez que o futebol é o esporte mais popular entre os nativos, seguido de perto pela esgrima de mêscola e pela bola na sporta. Aliás, a transmissão dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro provocou uma renovação geral do interesse dos uvanovenses pelas mais variadas práticas esportivas e campeonatos os mais diversos surgem em todas as partes pelo município, aquecendo o setor da venda de apitos e o do comércio de pão com salame, porque é preciso alimentar bem os atletas de todas as categorias.
Mas a grande novidade vem do tradicional ramo do futebol, mesmo. Por meio de um decreto prefeitural, a partir de agora, partidas de futebol que definem campeonato não podem terminar empatadas. Em Uvanova, não tem mais isso de levar a decisão para a prorrogação e depois para os pênaltis. “Futebol tem de ser ganho com a bola no pé, correndo dentro das quatro linhas e chacoalhando as redes; nada de cobrança de pênaltis”, declarou o prefeito em cadeia municipal de imprensa falada, escrita e fofocada.

Assim, em Uvanova, uma partida decisiva de futebol que resulte empatada após os 90 minutos regulamentares, entra em ritmo de prorrogação eterna até o instante em que um dos times marcar um gol e sagrar-se campeão. Não importa quanto tempo leve (minutos, horas, dias, semanas, meses). A partida-teste está em andamento já há cinco semanas. Sei que há ainda cinco jogadores em campo (dois de um time e três de outro); os demais, foram vencidos pelas cãibras. Na arquibancada, resta o prefeito, monitorando o certame. Aguardo a próxima remessa de periódicos para saber o desfecho.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro" em 22 de agosto de 2016)

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Livros, CDs e filmes neles!

Olha, madama, vou lhe segredar uma coisa: se seu neto anda voltando desolado de passeios súbitos por diversos logradouros da cidade, infeliz por não estar conseguindo encontrar algum Pokémon pela aí, pode ter certeza de que ele se escondeu aqui em casa. Quem? Seu neto? Não, madama, o tal do Pokémon que ele caça. A Pokemonada toda parece que cansou de ser facilmente encontrada pelos celulares alheios e andam fugindo para cá, deixando a ver navios os caçadores de Pokémon na Praça Dante, nos pátios da UCS, na Avenida Júlio de Castilhos. Se é para brincar de esconde-esconde, eles decidiram radicalizar e vieram todos se esconder aqui.
Aqui tem Pokémon no banheiro, tem Pokémon embaixo da cama, tem Pokémon em cima da televisão, tem Pokémon enfiado na lata de biscoitos, tem Pokémon dormindo nas minhas pantufas, tem Pokémon congelado no freezer, tem Pokémon por tudo, madama. Tenho certeza de que o Pokémon perdido de seu neto está aqui entre eles. Pode mandar vir buscar, que é um favor que a senhora me faz. Entrego-o banhado e penteadinho.
Não é que eu me incomode com a casa atopetada de Pokémons espraiados por todos os cantos, longe disso. Até gosto da companhia que fazem, tiram aquele ar de solidão que costuma invadir uma casa quando não se tem gato, cachorro, periquito, tartaruga ou calopsita de estimação. Eles são minúsculos, silenciosos e amarelos. Um tanto agitados, sim, mas basta cuidar para não esmagar nenhum deles ao andar pela casa que tudo segue com certa tranquilidade. Não me importo que oito deles estejam sentados sobre a tevê quando, à noite, me ponho a acompanhar o salto com vara nas Olimpíadas. Eles torcem junto comigo e já andamos até ensaiando, com relativo sucesso, umas “olas” no sofá da sala.
O que incomoda, mesmo, madama, são os caçadores de Pokémons. E se descobrirem que aqueles mais difíceis de encontrar estão se escondendo aqui em casa? Com os Pokémons até ando aprendendo a lidar, mas os obstinados, fissurados e obcecados caçadores de Pokémons, o que se faz com eles, madama? A senhora veja seu neto! Não tira o nariz do aparelho celular, caçando Pokémons o dia todo, do café da manhã à janta, não é mesmo? Ele caça Pokémon no banho, caça na xícara do café, caça no prato de mingau, caça dentro do ônibus, é um inferno! Como lidar com ele?

Eu, aqui, tenho adestrado os Pokémons que se enfiam dentro de minha casa. Meto bons filmes no DVD, toco música de qualidade no aparelho de som e promovo rodas de leitura. Os seus, eu não sei, mas os meus Pokémons não vão gastar tempo caçando Pokémons pela aí, não.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de agosto de 2016) 

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Pokémon, don´t go!

É surreal, admito. Mas, me diga você, madama: existe algo mais surreal do que a vida real? Pois é. Então: aquilo que narrei aqui ontem, do Pokémon a invadir meu quarto de madrugada, foi só o começo do pesadelo. Teve (e tem) mais. Narrar e compartilhar o drama é minha forma de purgar o problema, a senhora me desculpe, mas tenha paciência. E com Pokémons, madama, há de se ter muita paciência.
Engraçado é que essas coisas só acontecem quando estou sozinho em casa. À noite, minha esposa chega e não acredita em nada do que eu digo. Mas a senhora, madama, eu sei que sempre me dá um voto de confiança. Tudo começou no meio da tarde, dia desses. Estava eu no meu escritório caseiro (isso, “home office”, a senhora já sabe) quando escutei uns barulhos estranhos vindos de lá dos lados da cozinha. Levantei e fui ver. Pra quê! Deparei com três Pokémons saltitando em volta da mesa do jantar. Pronto, era o que eu temia: meu apartamento invadido por Pokémons! Dentro do armário da louça, mais barulhinhos. Abri e saltaram de lá mais quatro. Pelo corredor, adentraram outros tantos. Quando vi, a sala estava tomada por duas dezenas deles. Que fazer?
Não sei me comunicar com Pokémons, nada conheço de seus hábitos. Mas sei que eles têm algum tipo de relação com aparelhos celulares. Empunhei o meu e apontei para o bando. Funcionou. Ficaram como que hipnotizados olhando para o aparelho. Arrebanhei assim a turba e conduzi-a até o sofá da sala. “Sit down there”, falei em inglês, apontando para o sofá. Não sei se foram as palavras ou o meu tom imperativo seguido pelo gesto, mas funcionou. A Pokemonada toda se acotovelou no sofá, juntinhos e quietinhos. De repente, outro ruído dentro da máquina de lavar roupa. Abri o tampo e de lá saltou outro. “Go there, with your friends”, ordenei, e funcionou de novo (meu inglês básico parece servir, pelo menos, para me comunicar com Pokémons).
Agora, o que fazer com eles? Liguei a tevê, tentando encontrar os canais infantis (bastava lembrar daqueles que sintonizo quando recebo a visita do afilhado). Encontrei um que transmitia “A Casa do Mickey Mouse”. “Iiiikk!”, guincharam, em protesto. Claro: Mickey é vetado, eles não gostam de concorrência. Que fazer? Desliguei a tevê e passei a mão em um livro de Monteiro Lobato: “O Picapau Amarelo”. Comecei a ler em voz alta: “O Sítio de Dona Benta foi-se tornando famoso tanto no mundo de verdade quanto no chamado mundo de mentira”. Funcionou. Ficaram quietinhos, escutando. Oba, eu tinha plateia! “Pokémon, don´t go”! Agora, quero-os todos aqui. Vou botá-los a ler!
(Crônica publicada ano jornal Pioneiro em 18 de agosto de 2016)

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Amarelado na madrugada

Acordei no meio da madrugada com a nítida sensação de que havia algo ou alguém no quarto, além de mim mesmo e de minha esposa, que dormia profundamente. Nesses tempos de insegurança e violência, é uma sensação arrepiante. Nem de longe pensei em fantasmas ou seres de outro mundo, pois meu pavor surgia a partir da possibilidade de ter de enfrentar ali a invasão de algum ser deste mundo mesmo.
Tempos atrás, imaginaria tratar-se de meu gato que, cansado de dormir sozinho no sofá da sala, costumava vir ocupar seu devido lugar embaixo das cobertas junto a meus pés, a esquentá-los, pelo que sempre fora bem-vindo. Mas há anos o gato partiu para o céu dos gatitos e meus pés adormecem gelados, exceto nas vezes em que a esposa vira para o lado de cá, verdade. Não se tratava, portanto, do finado gato, tampouco da visita de sua alma felinada. Era alguma outra coisa, e eu precisava descobrir o que. Nessas horas, o medo imobiliza, mas aguça os sentidos de forma excepcional, especialmente a audição. Imobilizei-me na cama e me pus a ouvir.
Pic...pic... pic... Passinhos curtos em volta da cama. Passinhos de coisa pequena. Um anão assaltante? Difícil. Mas, se fosse, talvez eu levasse vantagem sobre ele em um ataque surpresa, com meu um metro e oitenta e um de altura e 85 quilos (cinco em excesso, confesso) de peso. Tenho assistido a combates de luta greco-romana nessas Olimpíadas. Saberia como fazer. Pic... pic... pic... Agucei as orelhas... O intruso se afastava lentamente da cama em direção ao roupeiro. Era agora ou nunca, precisava agir. Dei um salto na cama, acendi a luz e dei um grito de advertência: ráurgh!
“Que é isso, marido?”, gritou assustada a esposa, num pulo na cama, ao mesmo tempo em que eu ainda flagrava os olhinhos arregalados do Pokémon imobilizado ali, flagrado junto à porta do armário dos calçados. “Alhalá, alhalá, um Pokémon aqui no nosso quarto!”, esganicei, excitado e embaralhado, arremessando uma pantufa contra o local em que via a aparição amarelada. Blonc,  fez a pantufa contra o móvel. Blonc, fez também o peteleco que ela me deu na cabeça. “Dorme, você está sonhando acordado”, disse ela. “Pode ser, mas não quero Pokémons aqui dentro de casa”, resmunguei, desligando a luz e abraçando o travesseiro.

Na manhã seguinte, por via das dúvidas, dei uma geral em todas as peças da casa: embaixo das camas, atrás das portas, dentro dos armários... Não quero Pokémons aqui dentro. Nada contra eles, que parecem seres dóceis e adoráveis. Mas eles atraem hordas de caçadores de Pokémons. Isso é o que me apavora e tira o sono.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de agosto de 2016) 

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Os recados das tabelas

Gosto de despender certa parte de meu tempo a analisar tabelas. Algum engraçadinho diria que “vivo pelas tabelas”, mas não chego a tanto. Mesmo assim, minha experiência demonstra que muito se pode obter em termos de informações sempre que uma tabela é examinada com o devido afinco e com predisposição para ir além dos números ali apresentados. Tabelas também possuem entrelinhas, camufladas aos olhos do observador superficial, mas prontas a revelar nuances e mistérios aos perseverantes, que navegam o olhar pelas ondas de mares não explícitos.
Tabelas que sempre consulto são aquelas que demonstram o desempenho dos times de futebol ao final das rodadas semanais de confrontos. Tanto a do Gauchão quanto a do Brasileirão recebem minhas visitas semanais e gasto nelas bons pares de minutos analisando o desempenho do time para o qual teimosamente torço. E o que se aprende após passar tantos anos observando o desenrolar de números de gols feitos contra o número de gols sofridos; a quantidade de partidas vencidas, perdidas e empatadas; a coleção de cartões amarelos e vermelhos e o aproveitamento dos times? Ora, conclui-se o óbvio: campeonatos são ganhos por quem joga melhor, vence mais do que perde, faz mais gols do que leva. Em resumo: por quem se prepara melhor e por quem se empenha mais do que os outros.

Mesma coisa nas Olimpíadas e seu Quadro de Medalhas. As obviedades estão ali, escancaradas entre os países amealhadores de medalhas de ouro, prata e bronze, contra aqueles que só fazem figuração. Interessante detectar que os protagonistas e os figurantes no Quadro de Medalhas Olímpicas equivalem aos países protagonistas e figurantes no cenário da geopolítica mundial. Óbvio que não se trata de coincidência. Detalhe singular: ontem pela manhã, os ocupantes das oito primeiras posições no Quadro de Medalhas eram exatamente os oito países protagonistas da Segunda Guerra Mundial: Estados Unidos, Grã-Bretanha, China, Rússia, França, Alemanha, Itália e Japão. Entre vencedores e derrotados no conflito, constam ali os países que se reergueram e se reinventaram após passarem pela pior guerra da História da Humanidade. E se reergueram e se reinventaram devido ao esforço conjunto de seus povos, calcados na construção de sociedades baseadas em valores comunitários e cidadãos cujos resultados vão bem além da boa performance esportiva apresentada pela conquista de medalhas. A conquista de medalhas tem de se dar no dia a dia dos povos, sabendo enfrentar com maturidade as suas mazelas, sem molecagens. Molecagem não conquista medalha.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de agosto de 2016)

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Como vencer os Vingadores

O primeiro deles, de cinco anos de idade, imobilizou minha perna direita com um abraço apertado. Tratava-se do Homem-Aranha, segundo informações oriundas do próprio. A Mulher-Maravilha, prima do primeiro, um pouco maiorzinha, imobilizou minha barriga, no que me pareceu um ataque em grupo premeditado. A irmãzinha dela, menor ainda do que o Homem-Aranha, decidiu puxar minha perna esquerda, rosnando e mordendo, jurando ser o Hulk. Não sei se o Hulk morde, mas aquela Mini-Hulka ali mordia. Antes que houvesse um acidente, larguei o copo com o drinque em cima da mesa do restaurante que sediava o jantar comemorativo à formatura de uma integrante da família e dediquei-me a administrar o ataque dos Vingadores a que estava sendo submetido.
Primeiro, tentei dialogar, afinal, professo a teoria de que a diplomacia deve imperar na solução de conflitos. Gritei bem alto que eu era o Homem-de-Ferro, super-herói integrante da equipe dos Vingadores, bem como Hulk, Thor, Capitão América e Homem-Aranha. Ah, não, o Homem-Aranha não é um Vingador, bem lembrado. Mas, mesmo assim, procurei apresentar minhas credenciais de super-herói, mesma condição proposta por todos os três atacantes, porém, não fui muito convincente e logo a Mini-Hulka mordia com mais força, o Homem-Aranha e a Mulher-Maravilha prosseguiam em suas lutas de mentirinha. E riam. Riam muito. Especialmente quando o Homem-Aranha me premiava com jatos de sua teia imaginária e eu, agora inegociável e irremediavelmente travestido em minha condição de supervilão, via-me totalmente subjugado.

Uma menorzinha ainda, vendo a alegria incontida dos três primos à minha volta, começou a se aproximar lá do meio do salão, o vestidinho rosa balouçando sabe-se lá sob quais ideias super-heroísticas e percebi que não suportaria enfrentar um quarto superpoderoso unindo-se ao grupo. Era preciso pensar rápido para desmobilizar aquela situação. “Qual é a cor do Hulk?”, perguntei, de súbito. “Azul!”, gritou a Mini-Hulka, tirando os dentinhos de minha perna esquerda. “Não, é amarelo!”, bradou o Homem-Aranha, mais sabido de todos. “Mas não é verde?”, perguntei eu. “Verde, verde, o Hulk é verde!”, uniram-se todos, Homem-Aranha, Mulher-Maravilha, Mini-Hulka e a pequeninha do vestidinho rosa, já desarmada de saída. “E quem corre mais, o Homem-Aranha, o Hulk ou a Mulher Maravilha?”, emendei, em uma estratégia genial. As respostas se deram por meio de uma desabalada carreira do fantástico quarteto pelo salão, para meu alívio. Nós, supervilões, temos como melhor arma a agilidade de raciocínio.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de agosto de 2016)

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Sobre golear a Dinamarca

Sim, eu assisti à partida entre Brasil e Dinamarca na noite de quarta-feira, em que a Seleção Olímpica Brasileira de Futebol Masculino entrou de novo em campo, desacreditada depois das amargas estreias sem gols contra as fracas seleções da África do Sul e do Iraque, que lhes custou críticas em todas as plataformas existentes e imagináveis: dos jornais às redes sociais, das cadeiras dos barbeiros às rodas de chope, dos salões de manicure às academias de ginástica. Ninguém perdoou, especialmente quando comparada a performance dos meninos com a das integrantes da Seleção Olímpica Brasileira de Futebol Feminino, que estreou em grande estilo, metendo goleadas e mostrando o que acontece quando se leva a sério um propósito.
Até poucos anos atrás, o futebol ainda resistia como campo eminentemente masculino, uma vez que a competência das mulheres já vem há tempos encolhendo o raio de ação exclusivo dos homens em várias frentes e não é mais novidade mulher caminhoneira, taxista, lixeira, executiva, empresária, juíza, frentista, delegada de polícia, brigadiana, editora, metalúrgica, carteira, roqueira, soldada, pilota de avião, mestre, doutora, pós-doutora, reitora, política, bandeirinha, juíza de futebol etc. O fato é que não há mais campo em que os homens reinem sozinhos, o que os força a abandonar a zona de conforto e a se reinventarem também, se não quiserem ser atropelados pela competência, pelo foco, pela abnegação com que elas se dedicam a tudo. As mulheres estão obrigando os homens a deixar de serem “mulherzinhas”. Até mesmo no futebol.
Os quatro a zero de quarta-feira sobre a Dinamarca foram bem-vindos, sim, era o que queríamos: um chacoalhão na Seleção Masculina e a devida reação. Passaram para a próxima fase, mas agora é que são elas. Ou melhor, eles. Porque as meninas ainda estão na frente: em três partidas, ganharam duas e empataram uma: sete pontos. Os meninos, empataram duas e venceram uma: cinco pontos. Elas convencem. Eles ainda estão sob análise. E tem mais: não há nada de humilhante em os homens serem comparados com o desempenho feminino, seja no âmbito que for. É preciso aprender com quem tem a ensinar. Só isso.

Não se trata de uma comparação entre gêneros, mas, sim, da demonstração na prática dos resultados que se obtém quando existe dedicação à causa, amor, entrega, foco, trabalho, suor. Os resultados vêm disso. Só disso. Sempre. No caso do futebol, quem está ensinando isso aos meninos são as meninas. Não interessa quem ganhará medalha no final. O que interessa é a forma como se luta por elas.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de agosto de 2016) 

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Sintonizado nas nuvens

Dia desses, levei meu computador a um profissional qualificado (membro da família, naturalmente) para que nele procedesse às devidas formatações, limpezas, becápes (“back ups”, para os puristas), dáunloudes, atualizações, faxinas e o que mais fosse necessário para que a máquina voltasse a funcionar condignamente, sem travar, sem desligar de súbito, sem emitir gargarejos esquisitos, sem brincar de esconde-esconde com textos recém-escritos, essas diatribes que computadores fazem quando ficam tempo demais longe das revisões e que exasperam os usuários, normalmente semianalfabetos virtuais, como este mundano escriba que vos cronica (“eu cronico, tu cronicas”, do verbo “cronicar”, combinados, madama?). Na volta, ao ligar o aparelho no escritório doméstico (“home office”, conforme já pactuamos que é mais chique), deu-se a surpresa.
Devido à atualização de vários programas operacionais, acabei brindado com um serviço extremamente ágil e competente de previsão climática, muito mais confiável do que todas as promessas que vinha escutando até então das moças do tempo em todos os canais televisivos e bem mais prático do que colocar o braço para fora da janela com a intenção de confirmar se chove ou se o tempo está firme, como me via obrigado a fazer antes de sair de casa. Agora viciei no programinha do tempo e consulto-o a toda hora, com o propósito de verificar se o que ele afirma na virtualidade anda condizendo com a realidade temporal verificada lá fora. E não é que anda acertando? Estou fascinado.
Meu previsor do clima chega ao ponto de informar como se dará a variação do tempo de hora em hora ao longo do dia. Agora, por exemplo, jura que choverá daqui a duas horas. Marquei no caderninho. Daqui a duas horas, quero ver se haverá chuva. Além do mais, ele me elucida dados que sequer sabia existirem. Claro, me dá a temperatura e a sensação térmica, me diz a velocidade do vento e a umidade relativa do ar, mas vai além, explicitando a pressão atmosférica, o alcance da visibilidade (veja só!) e até o ponto de orvalho! E ainda conversa comigo, dizendo: “O céu estará nublado. Estará fresco lá fora, com máxima de 11º C. Haverá chuva durante a manhã”. Quer algo melhor do que isso?

Outro dia, programei um acampamento no mato para o final de semana. Familiares e amigos se surpreenderam com minha iniciativa, mas fui firme: “acamparemos no sábado”! Na noite de sexta, sob chuvas e trovoadas, cancelamos a programação. Eu sabia há dias que choveria, mas, ao menos, fiz minha moral com a galera. Nada como estar em sintonia com o seu tempo!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de agosto de 2016)

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Fugindo dos mascarados

“De onde menos se espera, dali é que não sai nada mesmo”. Soa com uma aragem de renovado frescor a famosa frase do Barão de Itararé (codinome do humorista e jornalista brasileiro Apparício Torelly, 1895 - 1971) sempre que perco duas horas de vida doando minha preciosa atenção ao miserável, sofrível, constrangedor, fiasquento e mascarado “futebol” apresentado pela Seleção Masculina nas Olimpíadas. Uma vez que não é dali que obterei o prazer de torcer por brasileiros abnegados lutando verdadeiramente pela conquista de uma medalha e dando o melhor de si nessa busca, tenho me dedicado a acompanhar outras modalidades esportivas, algumas cuja existência sequer conhecia, para minha satisfatória surpresa.
“Não existe esporte chato, existe é esporte pouco conhecido”, disse algum apresentador televisivo, com o que a prática do controle remoto acionado a partir do sofá me tem feito concordar. Quem diria que eu me encantaria por assistir a uma competição de levantamento de peso, onde sequer havia brasileiros disputando? Detectei ali a presença de técnica; percebi o resultado prático dos treinos e dos esforços dos atletas; vibrei com a quebra de recordes e com os instantes de superação. Não sabia que era assim, e gostei. O desconhecimento me afastava da fruição daquele prazer.
O mesmo se deu com a esgrima. Que emoção acompanhar uma luta entre dois contendores empunhando floretes, espadas e sabres, empenhados em tocar, com a ponta de suas armas, o corpo do adversário, em um show de destreza, agilidade, técnica e treino, muito treino; dedicação, muita dedicação. Isso sem falar na natação, no futebol feminino, na ginástica artística, no tênis de mesa, no boxe, no rúgbi (até rúgbi!) e tantas outras modalidades, com ou sem brasileiros na disputa.

Em todas elas, a detecção de algo em comum, já dito lá em cima: a presença do esforço, da dedicação, do amor ao esporte, da vontade de se superar, do orgulho em defender sua bandeira, do treino, da humildade, do aprendizado com os erros e com as derrotas, tão importantes quanto as vitórias. Vencer é a meta de cada atleta, sim, mas não é o que o público exige deles. O que nós exigimos deles é a presença daqueles aspectos citados ali em cima. A vitória, se vier, será sempre aplaudida, claro. Mas o que aplaudimos ao longo de toda a Olimpíada é a verdade do esforço e da entrega na busca pelo objetivo, porque são esses os aspectos que simbolizam a vida diária, e com os quais nos identificamos. Afinal, batemos recordes pessoais todos os dias e nossa medalha é o sono reparador à noite.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de agosto de 2016)