segunda-feira, 25 de junho de 2018

Um dilema ao pé do vulcão


Cenário 1: À sombra de um vulcão, no Período Cretáceo, exatos 65 milhões de anos atrás. Venha, madama, não tenha medo, suba aí nesse coqueiro e observe. Eu sou Ugh, meu ancestral direto, um típico homem das cavernas. O dia já amanheceu e eu, Ugh, vou saindo, tacape em punho, da caverna que habito com Agh, a mulher das cavernas minha companheira, com quem tenho os filhos Ughinho, Bambam e Pedrita, para alimentar. A expectativa de todos é de que eu retorne logo trazendo um suculento dinossauro para servir de refeição para toda a família. Ainda não criaram a tele-entrega e nem a língua inglesa para substituí-la por delivery, impossíveis de imaginar antes da invenção das motocicletas, dos telefones para fazer os pedidos e dos motoboys. Só resta mesmo eu, Ugh, empunhar o tacape e ir à caça do primeiro dinossauro que encontrar pela frente e transformá-lo em banquete. Lá vou eu.
Horas depois, já ao findar do dia, retorno à caverna de mãos vazias e com uma catastrófica notícia para informar à faminta família: não há mais dinossauro algum sobre a face da Terra. Eles acabaram de ser extintos. “Como assim, extintos?”, exclama, indignada e desconfiada, Agh, minha esposa das cavernas. “Ainda ontem você trouxe um belo Risotossauro com o qual fiz a janta e só não congelei o resto porque ainda nenhum de seus amigos inúteis inventou o freezer! Como assim, os dinossauros estão extintos? Pra mim, você andou o dia todo é no Caverna-Club enchendo a cara com cinza de vulcão... Não me venha com essa, que quem vai acabar extinto aqui é você”! Bom, madama, agora desça da árvore e volte comigo às incivilizações da Era Moderna, à qual pertencemos. O Cenário 2 é essa nossa Caxias do Sul de 2018 depois de Cristo, quando descobri, aterrado, que os dinossauros acabam de ser extintos também em toda a cidade.
 Sim, madama, andei perambulando por todas as lojas de brinquedos dia desses, atrás de um ovo que, quando submerso em uma tigela de água, abre três dias depois e dá à luz um dinossauro esponjoso que faz a alegria de meu afilhado de seis anos de idade, a quem já brindei com dois exemplares da espécie e andei prometendo ampliar a família. O que eu não contava era com a extinção dos ditos-cujos, e minha situação deve ter sido similar à de Ugh, meu ancestral, que, assim como eu, precisou lidar com a decepção causada frente ao não cumprimento de uma expectativa gerada. Eu, de minha parte, comprei um álbum de figurinhas da Copa, a título de plano B. Já Ugh... Nem imagino o que fez... Talvez tenha se mexido e inventado a telentrega...
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 25 de junho de 2018)

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Salve a data e a língua!


Recebo via e-mail um convite para um evento. Os organizadores, organizados que são, enviam com antecedência de cinco meses o convite, a fim de que seus convidados possam se organizar a tempo (a pobreza de vocabulário invadindo tal qual vírus o estilo do cronista, enfileirando flexões empobrecidas dos termos  “organizadores”, “organizar”, “organizados”, “convite”, “convidados”... mas está frio demais para vasculhar regiões glaciais do cérebro em busca de sinônimos que enriqueceriam o texto... vai assim mesmo e peço calor humano...). Compreendo o objetivo louvável dos elaboradores (“elaboradores”? Não, horrível... voltemos a “organizadores”), que, a partir dessa técnica de antecipação convidacional (agora apelei ao neologismo; pelo menos, surpreende), convidam o convidado (argh!) a se organizar (ai!) e a já reservar a data em sua sempre atribulada agenda de compromissos.
Até aí, tudo bem. Problema é essa mania crescente, inexplicável, indesculpável e desconfortável que as pessoas andam cultivando, aqui pelas plagas verdeamarelas, de usar e abusar de termos, palavras e expressões em inglês para dizer aquilo que a língua portuguesa é capaz de expressar com perfeição e até mesmo, na maioria das vezes, com mais elegância. Lá vem o convite, aterrissando na tela de meu computador, via correio eletrônico (por que “e-mail”?), pedindo para que eu, em novembro, “save the date”. Hã? Cadê meu livrinho do nível três do cursinho de inglês? “Save the date”, explode na tela, alegre e brilhante, convidando-me a reservar a data. Não seria mais eficiente os organizados organizadores, ao convidarem o convidado, irem direto ao ponto solicitando, em bom português, que ele “reserve a data”? Por que tenho eu de “save the date”? What a hell? Quer dizer... Que diabos! Ou, em dialeto “talian”... Será que escrevem assim imaginando serem “chiques”? Ora, ser chique é cultivar a sua própria língua, a sua cultura, e não inflar estrangeirismos desnecessários.
Mas, de volta ao tema. Por que “save the date”? Por que os preços em promoção agora ficam “off” nas vitrines? Por que a invasão de “outlets”? Estabeleceu-se, porventura, o mantra de que em inglês o cliente gasta mais? Em inglês o convidado reserva a data? Por que não empregar então, em Caxias do Sul e adjacências, o italiano? “Prenota la data”, deveria sugerir o convite. Para convidar os vizinhos da Região das Hortênsias, vamos direto no alemão: “Buchen Sie das Datum”, e pronto, estaremos todos lá, reunidos, felizes e contentes, na data devidamente “saved”. Afinal, tudo é uma questão de organização, isn´t?
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 18 de junho de 2018)

segunda-feira, 11 de junho de 2018

Velharias em descompasso


“Anacronismo” é o termo que se emprega para identificar uma atitude ou fato que não esteja de acordo com a sua época. Fazer algo, agir ou mesmo pensar e defender ideias que já foram enterradas pelo processo evolutivo ininterrupto da humanidade significa incorrer no “pecado” do anacronismo. Torna-se, portanto, imperioso que se fique atento às tentativas de resgate de anacronismos que de vez em quando surgem aqui e acolá, porque, mesmo que revestidas de uma aura aparentemente inócua e bizarra, essa ideias estão sempre tentando encontrar terreno fértil onde possam voltar a florescer para reconduzir a sociedade de volta às trevas, instituindo processos perigosos de retrocesso e involução social, ética e humana. A defesa das conquistas civilizatórias precisa ser constante e perene, sob o risco de se verem engolfadas por ondas obscurantistas que surgem e se avolumam à sombra de nossas eventuais desatenções.
Comecemos por um exemplo manso de anacronismo, desprovido de más intenções. Você, leitor amigo, leitora atenta, não irá chamar nenhuma pessoa de seu círculo de relações de “vossa mercê”, e nem mesmo de “vosmecê”, que é como esse antigo pronome de tratamento evoluiu com o passar do tempo. Você vai empregar mesmo é o termo “você”, pois estamos vivendo em pleno século 21 e não mais na era do Brasil colonial. “Vosmecê” e “vossa mercê” desapareceram no tempo, ao passo da evolução do processo de horizontalização das relações sociais, e se tornaram, hoje, anacrônicos. Empregar trabalho escravo é uma prática que também desapareceu (ao menos, oficialmente) nas brumas do tempo, repudiada pelo processo civilizatório. Hoje, escravagismo é crime e configura um anacronismo deletério.
A questão está justamente aí: em identificar e combater as tentativas de ressurgimento de anacronismos deletérios, e nessa esteira pode-se elencar vários deles que não cansam de teimar em recolocar a fuça para fora do lodaçal ao qual já haviam sido condenados pelo bom senso e pela civilização. Discriminar pessoas por sexo, raça, gênero, opção sexual, ideias, identidade de gênero, posição política, status social, forma física, é anacronismo. Fumar em ambientes fechados, beber e dirigir, também estão saindo de moda. Assediar e oprimir sexualmente outrem, já era. Julgar-se proprietário do outro em relacionamentos é postura anacrônica. Ah, defender revolução armada é coisa do século passado. E imaginar que intervenção militar pode ser a solução para problemas sociais e políticos, então, é anacronismo dos mais preocupantes (e deletérios). Estejamos alertas.


(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 11 de junho de 2018)

segunda-feira, 4 de junho de 2018

A bordo da nau de Bosch


Cem anos atrás, em 1918, o Museu do Louvre, em Paris, passava a incorporar em seu acervo uma tela significativa e importante pintada por um renomado artista holandês medieval. O pintor, autor da obra-prima, chamava-se Hieronymus Bosch, nascido em 1450 e morto em 1516. O nome esquisito não era nome de batismo, mas, sim, um pseudônimo inventado por Jeroen Van Aeken, provavelmente para esconder sua verdadeira identidade e escapar das garras da Inquisição, uma vez que o conteúdo temático de grande parte de suas obras costumava retratar de forma alegórica e crítica os excessos do clero europeu e o comportamento bárbaro da sociedade de sua época. Previdente e esperto esse Von Aeken, conhecedor de técnicas básicas de segurança e sobrevivência quando se está imerso em tempos intolerantes e insanos, como eram aqueles dias.
A tela em questão, acolhida desde então pelo Louvre (o quadro segue lá, pendurado na parede, para quem quiser e puder conferir de perto), é conhecida pelo título “A Nau dos Insensatos” e mostra um grupo de pessoas desprovidas de juízo e de lucidez reunidas em um festim luxurioso a bordo de uma pequena e frágil embarcação. A atmosfera resultante da interação dos inconsequentes personagens retratados na cena pintada pelo talento de Bosch (aliás, um dos precursores do movimento Surrealista que, no século XX, teria Salvador Dalí como um dos maiores expoentes no âmbito das artes plásticas) induz o observador à incômoda sensação de estar testemunhando um triste, perigoso e suicida processo de desagregação social que conduz direto ao caos. O caos, por sinal, é o único destino plausível de ser alcançado por uma nau composta por uma tripulação de insensatos (pleonasmo gentil para “loucos” mesmo, ou “desmiolados inconsequentes”).
O que esperar de uma embarcação dessa natureza? Ora, que eles próprios, os insensatos a bordo que usurparam o leme, atendendo à cegueira ensandecida de seu surto indomável, acabem furando o fundo do barco e com ele naufraguem, tragados ao abismo revoltoso para o qual conduziam seu destino desde que se deixaram levar pelos instintos incivilizados que os dominavam. Com essa tela contundente, Bosch procurava advertir, de forma burlesca, contra a perda dos valores éticos e civilizatórios que abre as portas para a barbárie e leva a sociedade ao caos. É estranho: 500 anos se passaram desde que ele pintou o quadro e eu aqui, do outro lado do mundo, em pleno século 21, me vejo balançando e sentindo enjoos como se estivesse, repentina e inadvertidamente, a bordo da dita nau. Que insensatez!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 4 de junho de 2018)