sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Raízes enfermas

Uma das lições que o episódio do soterramento dos mineiros chilenos nos deixou é a compreensão de que o furo pode ser sempre bem mais embaixo. Nas duas últimas semanas, escrevi aqui sobre minha constante preocupação com alguns fenômenos sociais cada vez mais presentes em nosso cotidiano: os maus motoristas, os maus pedestres, as pessoas que só pensam em si próprias, integrantes de um movimento que batizei de “eucomiguismo” (pessoas que só pensam e agem de acordo com o “eu comigo”).
Mas a partir das manifestações dos leitores a respeito do assunto, refleti um pouco mais e percebi que, na verdade, tanto os maus motoristas quanto os maus pedestres, e outras criaturas congêneres, são todos frutos podres de uma mesma raiz adoentada, denominada mau cidadão. A partir do momento em que o sujeito (ou a sujeita, porque elas, tanto quanto eles, engrossam as fileiras dessa categoria humana, infelizmente) tem, em sua essência pessoal, o vírus da má cidadania a conduzir suas atitudes, todas as manifestações sociais que decorrerem de seus atos irão se enquadrar no amplo espectro do “eucomiguismo”. Nossa sociedade está cada vez mais engarrafada de maus cidadãos, transformando a convivência social em um suplício diário.
É o mau cidadão quem produz o mau motorista e o mau pedestre. Assim como é o mau cidadão quem produz o mau vizinho, o mau aluno, o mau professor. O mau cidadão são os maus pais, as más mães, os maus filhos. Vêm das raízes enfermas da má cidadania os frutos azedos dos maus chefes, dos maus patrões, dos maus funcionários, dos maus colegas. Mas não “maus” sob o aspecto da pouca competência para tais atribuições, e sim “maus” pelo quesito ético mesmo. É a condição de mau cidadão a nascente dos rios de maus políticos e de maus eleitores, de maus profissionais e de maus clientes, e ainda de maus comerciantes e de maus empresários, de maus servidores públicos e de maus profissionais privados.
Basta olhar ao redor. Os maus cidadãos estão a dois passos, muito perto. Às vezes, dentro de sua própria casa. Pior de tudo é quando ele aparece todas as vezes em que você acessa um espelho. Reconhecê-lo, talvez, seja o primeiro passo para exorcizá-lo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de janeiro de 2011)

sábado, 22 de janeiro de 2011

Fora de circuito


Já faz anos que abandonei o saudável e saudoso hábito de ir ao cinema. Larguei de mão. Eliminei de minhas opções de lazer o prazeroso ritual de escolher um filme pelo qual aguardava, encontrar agenda na semana para dedicar ao espetáculo, combinar o evento com a boa companhia (sempre a esposa, cinéfila como eu), reservar os trocos para a indispensável pipoca e, dependendo do horário, também para o jantar temperado a comentários e impressões derivados da película. Não mais. Desisti. E explico as razões.
Primeiro, não é porque eu seja uma das “viúvas dos cinemas de rua”, como aqueles que derramam lágrimas hollywoodianas até hoje pelo fato de o andar da modernidade ter decretado o falecimento das tradicionais casas de cinema, que se transformaram em templos religiosos ou salas de bingo, e direcionou o público para dentro dos shopping centers. Quem chora por isso são aqueles que não conseguem se converter aos ganhos inequívocos da evolução das coisas, pois as modernas salas são mais confortáveis, mais organizadas, o som é melhor, a projeção normalmente eficiente, o climatizador costuma funcionar. A questão não é essa.
Também não é devido ao fato de eu residir em uma cidade na qual não existam mais salas de cinema disponíveis, nem as antigas de rua, tampouco as de shopping centers, como Farroupilha. Eu resido em Caxias do Sul, na qual há salas em número suficiente para atender às demandas nessa área, tanto em shopping quanto em locais culturais que exibem programação alternativa (na Universidade de Caxias do Sul e no Centro de Cultura Ordovás, por exemplo). E mesmo que morasse em alguma cidade da região próxima, bastaria, para suprir a eventual necessidade cinéfila, fazer um prazeroso passeio até Caxias ou Bento e incrementá-lo com a ida ao cinema. Também não é isso.
Tampouco, leitores, minha decisão deriva do fato de eu ter subitamente empobrecido e andar pelas sinaleiras das nossas ruas com um cartaz nas mãos mendigando esmolas, igual ao ex-radialista norte-americano com o vozeirão tonitruante, que todos vimos nos noticiários. Cessem as doações, tudo vai bem, o salário milionário que recebo escrevendo aqui supre todas as minhas necessidades.
O que me afastou para sempre das salas dos cinemas são as pessoas que vão às salas dos cinemas. Que vão para lá lotá-las com o objetivo não de assistir aos filmes, mas de papagaiarem sem parar durante toda a projeção, de sacudirem as poltronas de quem está na frente (e eu sempre estava na frente de algum joelho incivilizado), para disparar e receber torpedos, para falar ao celular. Não dá. E pior é que essas pessoas podem fazer tudo isso em outros lugares, de graça, sem pagar a entrada da sessão. Não entendo, não compreendo, não aceito, não suporto, não tolero. Transformei a sala de minha casa num cinema particular. Até a pipoca é boa. Abandonei os cinemas, mas não o hábito de cultivar minha cultura e minha tranquilidade, mesmo que ao preço do auto-segregacionismo.
(Crônica publicada no jornal Informante, de Farroupilha, em 21/01/2011)

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

A era do eu comigo

Movido pela mais vil e inconfessável egolatria, decidi tomar uma atitude que vai me assentar definitivamente em um lugar de destaque na história daqueles que colaboraram para enriquecer a Língua Portuguesa e, por que não, o estudo dos (maus) costumes de nossa civilização. Para tanto, farei um ato aparentemente simples: vou cunhar (eu preferiria dizer “fundar”) um neologismo. Como todos sabem, “neologismo”, conforme o Aurélio, é “uma palavra ou expressão nova numa língua”. Eu estou, neste exato momento, fundando (e, portanto, me apropriando de todos os royalties) a expressão e a palavra “eucomiguismo”, e já trato de ir explicando.
O eucomiguismo (já está fundada, não precisa mais de aspas) é uma palavra que deriva do conceito de “eu comigo”, expressão usada para designar uma atitude decorrente de egocentrismo, de egoísmo, de individualismo exacerbado, cada vez mais comum neste nosso mundo civilizado. Toda a vez que uma pessoa pratica um ato por meio do qual pretende tirar vantagens para si própria, sem pensar nos demais que a cercam, ou mesmo, na maioria das vezes, até prejudicando os seus próximos, ela está exercendo o eucomiguismo, porque estará pensando única e exclusivamente nela mesma, agindo “eu comigo”, desconsiderando a existência dos demais, atropelando os direitos dos outros, desejando que todos se explodam etc.
É o eucomiguismo, por exemplo, que faz as pessoas circularem pelo centro da cidade em dias de chuva e, ao andarem pelas calçadas, optarem pelo lado de dentro com seus guarda-chuvas abertos, exatamente sob as marquises dos prédios, empurrando para o lado de fora, em plena chuva, todos os demais que, por azar, esqueceram seus aparelhos em casa. Ora, rezaria o bom-senso que quem está com guarda-chuva que vá para o lado da chuva, deixando as marquises a proteger as cabeças dos mais desprevenidos. Mas não, é cada um por si, mesmo.
Os exemplos seriam vários para ilustrar os casos de eucomiguismo que enfeiam nossa vida em sociedade. Cada um que faça a sua lista. E que procurem banir a necessidade de vigorar um neologismo como este que acabo de, infelizmente, precisar criar.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de janeiro de 2011)

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Ás no volante ou asno volante?


Dia desses, neste janeiro que nos revisita a cada início de ano, tive um novo insight atrás do volante do meu automóvel, transitando pelas ruas dessa Pérola das Colônias. Meses atrás escrevi uma crônica em que expressava minha indignação com a situação caótica do trânsito na cidade, engarrafada por um volume crescente de veículos enquanto vê-se impotente com uma infraestrutura incapaz de dar vazão ao fluxo necessário para que a coisa, em resumo, ande. Vituperei contra a lei da Física que impede a ocupação de um mesmo espaço por mais de um corpo ao mesmo tempo e estive a ponto de propor uma emenda que a revogasse, mas resignei-me a imaginar que conseguiria abrir alas em meio à estagnação transital por meio do uso de um chicotinho.
Pois, tudo errado! Esqueçam o que eu escrevi, porque constatei que o furo é bem mais em cima, ali no banco do motorista mesmo. Motivado a trafegar mais amiúde pelas ruas centrais de Caxias neste período veranil em que as férias escolares e as férias coletivas de parte das empresas locais resultam na diminuição da população circulante pela urbe, tirei o carro da garagem e fui-me faceiro às ruas, imaginando que, pelo menos durante algumas semanas, transitaria com paz. Ledíssimo engano, esse meu!
Apesar da óbvia redução do número de veículos em trânsito, fui fechado por bólidos costurantes, freei abruptamente devido a veículos que param em fila dupla, quase fui alvejado por carros que queimam o sinal vermelho, escapei de colidir contra imprudentes que saem do meio-fio onde estavam estacionados e lançam-se sem olhar à pista de rodagem, enfim, a selvageria em nada mudou.
Qual a conclusão óbvia disso tudo? Ora, uma só: o motorista caxiense é um troglodita. O problema não é o volume crescente de veículos em circulação. O problema é a incivilidade, a deseducação, o egocentrismo, o bestialismo, o terceiro-mundismo cultural de nossos (pseudo) motoristas. Não se trata de leis de trânsito ou de investimento em infraestrutura. Trata-se de mudança pessoal de atitude mesmo. E aí, não há buzina capaz de solucionar a situação. Por mais que o pisca-alerta esteja dado...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de janeiro de 2010)

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Livros na tomada


A evolução tecnológica, que tantos bons frutos proporciona, traz consigo seus poréns, como bem sabemos todos que eventualmente temos de trocar um pneu furado (mas que maravilha os automóveis!), substituir a resistência do chuveiro (mas que conforto uma ducha quentinha!) ou mesmo aguentar os debates sobre o assassinato do Totó (mas que espetáculo a televisão!). Semana passada, enquanto vituperava contra o azar de ver-me um turno inteiro desprovido ao mesmo tempo dos serviços de telefonia fixa, internet e tevê a cabo devido a um problema técnico, fui brindado pela súbita compreensão de que os temores que alguns intelectuais sofrem frente ao pesadelo do possível desaparecimento dos livros impressos são completamente infundados. Pelo menos, enquanto dependermos de energia elétrica e de provedores externos para animar a grande maioria dos brinquedinhos que a tecnologia nos oferece.
Cheio de serviço como eu estava naquela fatídica manhã em que não podia acessar a internet, nem telefonar para minhas fontes e tampouco relaxar assistindo ao Multishow, o que foi que eu me vi fazendo? Lendo um livro. Não que eu somente pegue um livro para ler nas raras ocasiões em que a minha aparelhagem tecnológica dá xabú, longe disso. O que estou querendo dizer é que o objeto livro, como defende Umberto Eco na obra “Não Contem Com o Fim do Livro”, é uma invenção acabada, pronta, tão genial quanto a colher e a roda, e não tem mais para onde avançar; não existem “melhorias tecnológicas” a serem efetuadas sobre ele.
Os Kindles e os iPads, aparelhinhos ultramodernos que permitem baixar livros (e-books) pela internet, acumular uma biblioteca inteira na memória e transportá-la com facilidade, não representam nem a evolução e tampouco a morte dos livros impressos. Representam outra coisa, outra invenção, outra plataforma de comunicação, que vai encontrar o seu lugar no mundo. Os livros da minha estante não precisam de bateria e nem de energia elétrica para serem acessados. Posso lê-los longe de uma tomada, e, se faltar luz, ligo uma lanterna ou acendo uma vela e sigo a leitura, da mesma forma como meu bisavô fazia. Mesmo assim, não vejo a hora de adquirir meu iPad...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de janeiro de 2011)

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O tolo e o gênio


A história deu-se mais ou menos assim: o sujeito arrastava as botas cheias de areia pelo deserto de Góbi (existem mais desertos no mundo além do Saara para ilustrar uma história dessas) quando, de repente, chutou sem querer um artefato que fez pléin e voou longe, reluzindo ao sol escaldante. Convencido de que não se tratava de uma miragem, uma vez que já fora acometido nas últimas três horas por miragens que se apresentavam na forma de Giseles Bündchens dançando tchá-tchá-tchá e que se esvaneciam no ar quando tentava tocá-las, nosso herói desviou-se de seu tortuoso trajeto em ziguezague e foi ao encalço do objeto que, ao enlaçá-lo entre as mãos, percebeu tratar-se de uma lâmpada típica daquelas que costumam conter gênios encantados nas histórias que se passam em desertos sob sóis escaldantes e climas tórridos.
Ato contínuo, pôs-se a esfregar a lâmpada como se a lustrasse, pois que nosso herói era suficientemente letrado em histórias em quadrinhos e em televisão para saber que um gênio só é expelido de lâmpadas mágicas após um vigoroso lustre. E não deu outra: subitamente, pof! Surgiu o gênio da lâmpada maravilhosa, ofertando ao até há instantes desafortunado e agora sortudo herói de nossa história a realização de três desejos, quaisquer que fossem, mas que pedisse rápido porque ele próprio desejava retornar ao interior aconchegante da lamparina e retomar seu sono milenar, porque justo agora aparecera em sonho Gisele Bündchen dançando tchá-tchá-tchá.
Nosso herói não titubeou um segundo sequer e tascou-lhe o primeiro pedido: “Desejo uma garrafa de Tota-Tola que nunca esvazie, por mais que eu beba”. O gênio fez assim com o dedo e puftluf! Lá estava na mão de nosso sedento herói a garrafa do refrigerante, que ele esvaziou em uma dezena de goles. Instantaneamente, zupt! A garrafa estava novamente cheinha de Tota-Tola, conforme ele pedira. Restavam dois desejos, e nosso intrépido andarilho não teve dúvidas: pediu mais duas garrafas intermináveis de Tota-Tola!
É uma piadinha tola, eu sei. Todos os que a escutam riem-se (quando riem) da tolice do herói, tido como o símbolo, a encarnação e o resumo da estupidez humana. Já eu vejo a fabulazinha sob outro viés, claro, e é por isso que escrevo. E se, ao invés de ser ele o maior tolo da Terra, nosso herói for, na verdade, um símbolo de generosidade e desprendimento? Sim, porque, ao pedir ao gênio outras duas Tota-Tolas intermináveis, quero crer que ele pensava em presentear duas pessoas queridas com aquela maravilha! Ele é, isso sim, uma boa alma, seu bando de perversos. A moral da história seria tipo assim: fuja do senso-comum, busque ver as coisas sob um novo viés, sempre que possível, sacou?
Mas que ele podia ter usado um dos pedidos para sair daquele deserto, ah, isso eu concordo que podia...
(Crônica publicada no jornal Informante, de Farroupilha, em 7 de janeiro de 2011)

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Nem com Báskara

Que desafio! Entre os integrantes da comissão de organização da festa de final de ano do escritório, coube ao Zacheu e à Rebeka a tarefa de comprar as salsichas e os pãezinhos que resultariam nos cachorros-quentes para a turma, que era de 20 colegas. Foi consenso de que três cachorros-quentes per capita bastavam, o que resultaria em 60 unidades completas do quitute (pãozinho mais salsicha). O problema surgiu quando detectaram que só havia no mercado embalagens díspares, as de pãezinhos com 12 unidades e as de salsichas com dez unidades cada. E agora?
“Eu acho que é fácil de resolver. Basta aplicarmos a regra de três”, arriscou Zacheu, coçando a cabeça. “Sim, mas onde é que colocamos o xis?”, quis saber a Rebeka, dedo indicador no lábio superior. “Pois é. Eis o xis da questão. Acho que é regra de três composta”, devolveu Zacheu. “E se aplicássemos a fórmula de Báskara?”, tentou de novo Rebeka. “Claro! Finalmente deverá servir para alguma coisa a fórmula de Báskara! Como era mesmo? Xis é igual a menos bê mais menos raiz quadrada...”. “Não, Zacheu. É menos mais bê mais menos dois xis, iximaria!”, desesperou-se Rebeka. “Acho que Báskara não resolve nada. Vamos ter de usar a cabeça”. “Eu não sei onde anda a minha”, confessou baixinho Zacheu. Rebeka fez que “sim” com a dela.
“E se fizéssemos uma busca Google?”, iluminou-se Rebeka. “Boa, Rebeka. Mas como formulamos a questão?”, complicou Zacheu. “Eis a questão...”. “Iximaria!”. “Acho que temos de usar a lógica”. “Meu avô dizia que o jogo de xadrez exercita a lógica”. “Então vamos jogar xadrez”. “Vamos! Há um tabuleiro na gaveta do Eudes”. Armaram o jogo na mesinha do café e começaram a pensar. Logo, estavam ambos dormitando, mas acordaram de súbito, acossados por um insight. “Eu...”, gritou Zacheu. “...reka!”, completou Rebeka. Zacheu sonhara que adquiria cinco embalagens de 12 cavalos de xadrez e Rebeka sonhara que comprava seis pacotes de dez torres. Ambas resultavam em 60 unidades cada. Era a dica onírica para solucionar o problema.
Cada um foi às compras, mas, no dia da festa, Rebeka chegou com cinco embalagens de dez salsichas e Zacheu com seis embalagens de 12 pãezinhos. Logicamente, teve gente que passou fome...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 31 de dezembro de 2010)