segunda-feira, 25 de março de 2019

Patos e ratos pela Dante


Que eu saiba, Patópolis nunca teve uma via chamada Rua dos Viajantes, como aquela que sediava meus sonhos de infância na altura do número 119, em Ijuí. Pavimentada com paralelepípedos irregulares, a curta rua abrigava o processo de modelagem desse ser apaixonado pelo universo dos livros e das leituras em que muito cedo me transformei. Patópolis, a cidade imaginária onde vive boa parte dos personagens das histórias em quadrinhos de Walt Disney, fazia parte desse processo, e minha rua inteira parecia ser absorvida por aquele ambiente mágico de patos e ratos falantes sempre que as páginas dos gibis eram abertas, convidando-me ao mergulho na leitura.
Assim como muitos da minha geração, alfabetizados na década de 1970 do século passado, tive nas revistinhas do Pato Donald, Mickey, Zé Carioca e companhia, um suporte crucial no processo de consolidação do hábito de ler. Minnie, Pluto, Pateta, Margarida, Lampadinha, João Bafo-de-Onça, Maga Patalógica, Ronrom, Huguinho, Zezinho, Luizinho, Peninha, são apenas alguns dos personagens que desfilam na avenida de minhas lembranças hoje, da mesma forma como pareciam desfilar e fazer suas estripulias pela Rua dos Viajantes de meus dias de criança.
Mas as fronteiras da imaginação não se vergam a limites de nenhuma natureza. Nem nos meus mais absurdos sonhos infantis eu conseguiria imaginar que, anos depois, já adulto e vivendo da escrita profissional (como jornalista, escritor e cronista de segunda) em Caxias do Sul, eu passaria a habitar a cidade-sede da editora que publica, no Brasil, a linha de gibis Disney que tanto me foram (e ainda são) significativos. Esse sonho doce se concretiza agora, quando chegam às bancas as edições de estreia de cinco títulos Disney pela caxiense Editora Culturama, que assume a missão deixada pela Editora Abril, a casa Disney no Brasil de 1950 até 2018.
Quac! Então, agora, Patópolis é aqui, mesmo, com sabor de polenta e frango ao primo canto! O Mancha Negra que se cuide com o Orco e o Sanguanel! O Tio Patinhas, imagino, ficará à vontade, ao descobrir que já temos uma Caixa-Forte (“A Patada” fará concorrência ao “Pioneiro”?)! A torta de maçã da Vovó Donalda passará a integrar o menu local de sobremesas, ao lado do sagu gelado que tanto aprecio? A Praça Dante à noite será vigiada pelo Morcego Vermelho em seu pula-pula? O Pato Donald terá paciência para circular com seu conversível placas 313 pelo trânsito engarrafado da Sinimbu nos horários de pico? Seja como for, benvenuti a tutti, Mickey, Pato Donald e toda a galera! Que nos tragam bons sonhos.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 25 de março de 2019)

segunda-feira, 18 de março de 2019

Semana regida por Calíope

Abrimos esta crônica de segunda com a poesia “Sonhos”, do escritor norte-americano Langston Hughes (1902 –1967): “Agarre-se aos sonhos/ Pois se os sonhos morrerem/ A vida é um pássaro de asas quebradas/ Que não pode voar./ Agarre-se aos sonhos/ Pois quando os sonhos se vão/ A vida é um campo estéril/ Congelado com a neve”. Significativo por si só, o pequeno grande poema foi evocado ano passado pela diretora-geral da Unesco, Audrey Azoulay, em sua mensagem especial no Dia Mundial da Poesia, instituído pela entidade desde 1999 e que se celebra em 21 de março (próxima, quinta-feira). Ao chegar a data, saberemos que excerto de que poeta a diretora escolherá este ano para direcionar as atenções a essa arte que embala os sonhos e ressignifica a realidade das gentes ao redor do mundo.
Bons poetas e poemas é o que não falta no menu da nobre arte para a escolha da dirigente da Unesco. Claro que ela será inspirada na missão pelas tramas de Calíope, a primeira das nove musas gregas (ao lado de suas irmãs Érato, Clio, Euterpe, Melpômene, Polímnia, Tália, Terpsícore e Urânia), a quem cabe reger a poesia épica e a eloquência. Independentemente dos versos que vierem à luz este ano, o certo é que serão evocados com a missão de lembrar o mundo de que a Poesia integra o rol das necessidades vitais do ser humano em sua busca pelo sonho de uma vida plena. A Unesco entende que a existência humana só atinge a plenitude quando, junto às urgências básicas (alimento, abrigo, saúde, trabalho, educação, segurança etc), também se busca saciar as premências do espírito, cuja fonte reside nas artes e na cultura. Poesia, portanto, é vital, e feliz do povo que acolhe e abriga seus poetas, os guardiões dos sonhos.

Caxias do Sul, por exemplo, porta credenciais suficientes para suster o título de comunidade tocada pela poesia, já que por aqui exerceram o ofício poetas (natos e adotados) de envergadura capaz de embevecer até mesmo Calíope. Um desses nomes é o de Vivita Cartier, nascida em Porto Alegre em 1893 e que adotou a Serra Gaúcha como cenário para travar batalha contra a tuberculose em seus anos derradeiros. Um século atrás, em 21 de março de 1919 (antecedendo o Dia Mundial de Poesia em oito décadas), Vivita morria, aos 25 anos, em Criúva, onde está sepultada. Porém, o mito de sua persona sobrevive ao tempo. Sua curta e intensa trajetória de vida e a qualidade de sua obra ganham luz neste sábado, com o lançamento de sua biografia, assinada por mim, na Galeria Municipal de Arte, das 14h às 18h. A entrada é franca e estão todos convidados para a concretização desse sonho poético.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 11 de março de 2019)

segunda-feira, 11 de março de 2019

Entre ferros, com postura


“Postura, Marcos, postura! Observa a postura!”, costumam exclamar meus instrutores de treino na academia, onde passei a ser uma presença inesperadamente regular. “Tchau, até o próximo treininho”, abanam eles, sorridentes, sempre que concluo mais uma sessão de exercícios elaborados com a intenção de me resgatar das profundezas maléficas da movediça e afundante areia do sedentarismo. “Treininho” para eles, claro, habituados que estão a puxar aqueles ferros com a ponta do dedo mindinho e a carregar os halteres de lado a lado com a mesma desenvoltura e naturalidade com que eu troco de lugar os livros de minha biblioteca. Atento e disciplinado, vou suando e aprendendo.
Aprendo, por exemplo, que de nada adianta fazer três sequências de dez erguidas de peso se eu não fixar corretamente os pés no chão, com as pernas bem separadas e o corpo ereto como quando procuro melhor visualizar, por sobre as cabeças da multidão, o carro das rainhas no Corso Alegórico na Rua Sinimbú. Para obter o resultado ideal do treino, é preciso não só seguir a sequência e puxar os ferros, mas fazê-lo com a postura correta. “Postura, Marcos, postura!”. Tudo é uma questão de postura, e estão certos a Renata e o Eduardo, meus atentos e dedicados treinadores, em constantemente me puxar as orelhas enquanto puxo eu os ferros. Má postura gera más consequências e, além disso, revela, em sua origem, uma relação precária com as coisas, de desleixo, de desatenção ou de desconhecimento. É preciso estarmos sempre atentos à postura, porque ela também dá indícios sobre quem somos, o que e como somos.
Até as galinhas no aviário dedicam-se à postura, diria algum cronista mundano de segunda disposto a fazer gracinha. Nós, aqui, que somos sérios, pensamos além e evocamos a importância da postura também nas relações pessoais, no trabalho, na sociedade, em público, em casa, em família, nas redes sociais virtuais e reais. Nossa postura, tanto a física quanto a comportamental, expressa as nuances de nossa essência, nos define e diferencia. Qual a sua postura, por exemplo, frente à morte súbita de uma criança de sete anos de idade, descendente direta de um político controverso? Há aqueles que, movidos pela empatia humana que aflora frente às tragédias, se condoem e se solidarizam. E há os que desdenham e politizam a desgraça, aprofundando a desumanização de uma sociedade doente. A postura fala e revela, desmascara e escancara. “Postura, Marcos, postura!”, repetem a Renata e o Eduardo. Estão certos. É preciso atentar à postura, tanto na academia de musculação quanto na academia da vida.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 11 de março de 2019)

segunda-feira, 4 de março de 2019

A reincidência dos vândalos


Bamiyan é uma cidade do Afeganistão situada a 240 quilômetros da capital Cabul e reconhecida como uma das regiões mais sagradas do mundo para os budistas. A Unesco elenca aquele vale como Patrimônio Cultural Mundial por situar-se na antiga Rota da Seda, que no passado interligava o comércio entre o Oriente e o Ocidente, e por abrigar diversos mosteiros budistas milenares. Encravadas nas rochas arenosas da região, os antigos monges esculpiram, entre os séculos IV e V d.C., as duas maiores estátuas de Buda em pé no mundo, uma medindo 38 metros de altura e a outra, 55 metros. As duas maravilhas arqueológicas eram consideradas Patrimônio Cultural da Humanidade até o ano de 2001, quando foram destruídas por integrantes do grupo radical islâmico Talibã, que as bombardeou ao longo de 25 dias. Um atentado deliberado, cruel, sádico, estúpido e irreversível contra a Cultura, contra a Arte e contra o maior patrimônio humano, que é o fruto de seu talento criativo.
A “Cidade Eterna” Roma, centro pulsante de um império que dominou o Mundo Antigo por séculos, também sentiu na carne o poder irrefreável da ânsia de destruição dos bens culturais e dos agentes de cultura ao ser submetida meia dúzia de vezes aos ataques de invasores bárbaros. Gauleses, visigodos, vândalos, hunos e ostrogodos sucederam-se, ao longo dos séculos, nos atos de saquear e destruir Roma e seus monumentos, suas estátuas, sua cultura em geral, até culminar na queda absoluta do Império Romano. O pouco que restou (frente ao que existia) encanta turistas do mundo inteiro até hoje. Os nazistas, ao tomarem o poder na Alemanha, já no século XX, não fizeram por menos e também logo elencaram a Cultura e seus artífices como inimigos a serem combatidos e destruídos. Disso resultaram atos como a queima de livros em praça pública, a perseguição a artistas e intelectuais e a ordem de Hitler de implodir os monumentos históricos de Paris quando os Aliados se aproximavam para libertar a “Cidade Luz” (então ofuscada pelas trevas do terror que a dominava), em 1944. Felizmente, não foi atendido por um oficial minimamente lúcido (o general Dietrich Von Choltitz, então comandante alemão da cidade), e a Torre Eiffel e o Arco do Triunfo seguem em pé, irradiando História.
Sempre há quem resista às ondas de ações anticivilizatórias, pois que os vândalos retornam em ciclos dispostos a fazer terra arrasada da Cultura, das Artes, dos artistas e das tradições que dão sentido, permanência e identidade à existência dos povos. É preciso zelar, afinal, os talibãs estão sempre à espreita.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 4 de março de 2019)