quinta-feira, 30 de abril de 2015

Amansa burrinhos

Sempre que não tenho algo melhor para fazer, boto-me a refletir sobre irrelevâncias que me deixam pasmo. A completa falta de utilidade prática e racional de alguns objetos do cotidiano, teoricamente concebidos com o fim de servirem para alguma coisa, foi o tema de uma dessas minhas recentes digressões.
O objeto que ocasionou a elaboração deste breve tratado sobre a inutilidade das coisas está, por ironia, intimamente ligado ao ato de produzir e compreender textos. Refiro-me aos minidicionários, conhecidos como dicionários de bolso, mas dificilmente encontrados nesses lugares que, apesar de popularmente vazios, nunca comportam tal artigo sem comprometer seriamente o bom estado de um ou de outro. Devo deixar claro que não tenho a intenção de questionar a erudição e a competência dos eminentes filólogos que se dedicam à compilação de dicionários, pequenos dicionários enciclopédicos, dicionários de sinônimos e antônimos, dicionários inglês-português (vice-versa e afins), objetos de valor inestimável para a consulta daqueles que desejam bem escrever e/ou bem compreender o mal escrito ou o prolixamente escrito. O que me perturba é a edição dessas miniaturas que servem para bem pouca coisa, não subestimando o seu valor como peso para papeis e porta-xícaras.
Pergunto então, ao leitor amigo: qual seria, a princípio, a finalidade da elaboração de um minidicionário? Respondo: arrolar em um volume de fácil manuseio e preço acessível, uma série de verbetes relativamente pouco usuais, atendendo às necessidades daqueles que não dispõem de uma obra de maior envergadura para tirar as suas dúvidas. Mas apesar da tese, não é o que ocorre na prática com esses livretos que preenchem suas páginas traduzindo o significado de palavras como “cadeira”, “toalha”, “bacia”, “remédio”, “olhar”, em suma, termos que nunca serão consultados por nenhum ser humano, letrado ou não, haja vista que seu significado é de domínio universal.

Claro que o advento da internet e dos dicionários eletrônicos está solapando o destino dos minidicionários impressos, ficando eu aqui a tergiversar sobre anacronismos. Mas espera aí... “Solapando”?... “Tergiversar”?... “Anacronismos”?... Cadê meu dicionário??
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de abril de 2015)

quarta-feira, 29 de abril de 2015

A quem confiar a tristeza

Sempre que sou convidado a dar uma palestra ou a fazer um bate-papo sobre determinado assunto, fico satisfeito com a oportunidade de poder organizar minha própria visão pessoal a respeito do tema enfocado. O mesmo se dá quando paro para escrever a respeito de algum tema específico, pois é na hora de ordenar as ideias, seja por escrito ou oralmente, que interiorizamos e organizamos toda a carga de informações e reflexões que vamos acumulando sobre os mais variados aspectos da vida ao longo da vida. Somos ao mesmo tempo protagonistas e espectadores de nossas próprias vidas e essas pausas para analisar o que está acontecendo, o que somos e o que pensamos, são fundamentais.
Mas não é somente escrevendo ou palestrando que criamos esses hiatos de autoconhecimento, tão úteis especialmente para nós mesmos. Eles podem ser dar no divã do psicanalista, ou nos longos telefonemas semanais para a mãe, ou nas noitadas de conversas com as amigas e os amigos mais chegados, ou na hora do banho, ou à noite se revirando na cama, ou afagando a nuca do bichinho de estimação no sofá, ou uma vez por ano à beira-mar observando as ondas, ou na solidão momentânea do churrasqueiro defronte ao fogo, enfim... Quando vemos, estamos desfragmentando os discos rígidos de nossas sinapses cerebrais e colocando em ordem a casinha da morada de nossos eus, procedimento importante para que sigamos em frente vida afora.

Penso nisso ao ler um singelo conto do escritor russo Anton Tchekhov (1860-1904), intitulado “Angústia”. O texto faz um recorte sobre um momento triste na vida do cocheiro Iona Potapov, que precisa transportar seus clientes a seus destinos na noite nevada enquanto matuta a tristeza profunda decorrente da morte recente de seu jovem filhinho, de febre, no hospital. Com cada passageiro que sobe em seu trenó, Iona procura entabular uma conversação para compartilhar a dor e a angústia que consomem sua alma devido à perda. Mas ninguém lhe dá ouvidos, cada qual mergulhado em suas próprias preocupações. Ao final do conto, Iona desatrela o cavalo no estábulo e, enquanto o animal come sua ração de feno, ele senta-se ao seu lado e, por horas, desfia suas recordações do filho ao bicho. Afinal, ele precisava de alguém a quem confiar sua tristeza. Organizar os pensamentos, nem que seja com um paciencioso cavalo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de abril de 2015)

terça-feira, 28 de abril de 2015

Uma xícara de café

Aprendi a passar café ainda na adolescência, quando morava em Ijuí, na Rua dos Viajantes (quem mais viajava naquela rua era eu mesmo, detentor de um bilhete permanente na classe executiva do bonde da imaginação). Não sei se já existiam as cafeteiras elétricas, mas, como não tínhamos, aprendi a esquentar a água em uma chaleira, colocar o porta-coador de plástico sobre a boca do bule, enfiar dentro um filtro de papel e, nele, despejar algumas colheres de pó de café proveniente de uma lata guardada na terceira porta à esquerda do armário na cozinha ao lado da geladeira.
Depois, era ir vertendo a água fervente devagarinho sobre o pó e observar a magia da transformação daquela argamassa preta em café, com seu aroma característico preenchendo o ambiente da casa e antecipando o prazer do fruir de uma xícara bem quentinha, especialmente no inverno, nos longos e gelados invernos da Rua dos Viajantes. Aprendi também uma dica importante: jamais inundar o filtro direto com água quente, pois isso proporcionaria um café aguado e ralo. O segredo era primeiro despejar a água devagarinho sobre o pó, apenas o suficiente para umedecê-lo e transformá-lo em uma massa compacta, pois esse pequeno truque seria o suficiente para manter ali, naquele bolo, todas as propriedades cafeinísticas que tanto apreciávamos: sabor, aroma, textura. Feito isso, aí sim, ir despejando aos poucos a água fervente e acompanhando o verter contínuo daquele fio preto de café escorrendo para dentro do bule.

Depois era levar para a mesa a fim de aquecer a família depois das refeições, junto a uma barra de chocolate, uma colher de chantilly, um cálice de licor (em noites especiais). Hoje a correria do cotidiano me faz refém das colherinhas de café granulado, que produzem café preto instantâneo diretamente na xícara. Coisa meio sem graça, se comparada ao ritual de antigamente, mas vá lá, café é café. Claro, há também a cafeteira elétrica, que simula o antigo processo manual de passar pó de café, com a vantagem de poder ser programada com antecedência e proporcionar a invasão do aroma de café passado invadindo a casa de manhã cedinho, antes mesmo de sair da cama. Não tem o charme do bule e da chaleira, mas, como eu disse, café é café, e a viagem depende também da disposição interna de cada um. Saúde!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de abril de 2015)

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Chocolate no sofá

Cada pessoa tem seu tempo, seu ritmo para aprender as lições que a vida vai tratando de ensinar. Alguns aprendem mais depressa, outros tardam mais para se dar por conta de noções que, para determinadas pessoas, parecem claras e cristalinas desde sempre. A mesma mensagem enviada na mesma garrafa pode ser decodificada em ritmos e formas diversas dependendo de quem a recolhe na praia. Não existem regras claras para essas coisas. Aprender a ser humano é uma área na qual os manuais não se aplicam. Daí a graça da coisa toda.
Exemplo disso é o fato de que nada cai do céu, exceto chuva e – vá lá – neve, de vez em quando. Eis uma lição importante que se aprenda, de preferência, o mais cedo possível, a fim de que se possa enfrentar a vida, suas dificuldades e as pedras que ela espalha pelo caminho, de forma realista e lúcida. Cada pessoa tem sua própria experiência nesse quesito, sendo que uns aprendem isso de um jeito mais fácil e, outros, só muito levando na cabeça mesmo, mas fazer o que, cada um, cada um e não se pode viver a vida dos outros pelos outros. A consciência disso vai sendo moldada aos poucos e, quando nos damos por conta, percebemos que precisamos trabalhar para conseguir dinheiro (ao menos, de forma honesta) e batalhar duro pela realização de nossos sonhos.
Eu, por exemplo, só fui perceber que creme dental não surge do nada dentro do armário do banheiro quando saí de casa aos 17 anos de idade e fui morar em república de estudantes, em cidade diferente daquela em que nasci, para cursar faculdade. Um belo dia, ao final da segunda semana, terminou o creme dental e tive de atravessar a rua para ir ao mercado, comprar um tubo pela primeira vez em minha vida. Tóin!

Semana retrasada meu afilhado de três anos de idade estava lá em casa, visitando os dindos, e encontrou, por acaso, em uma dobra do sofá da sala, um pedaço esquecido de um ovo de chocolate pascoal, que minha esposa e eu havíamos saboreado ali, na noite anterior. Assim que detectou a guloseima, anunciou para a família o achado e não perdeu tempo em devorá-la. Afinal, chocolate, quando surge do nada nas mãos dele, é para ser consumido. Um dia ele vai aprender que chocolate não brota de sofás da sala (se bem que lá em casa acontecem coisas...). Cada qual com seu processo...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de abril de 2015)

domingo, 26 de abril de 2015

Gol artístico

Existe um personagem humano cuja essência ainda resta cercada de mistérios e incompreensões, especialmente porque as artes, por alguma razão que desconheço, não se debruçaram suficientemente sobre ele até o momento. Sabemos que é por meio das artes que conseguimos estabelecer conexões com as mais diversas facetas da alma humana, conhecendo aspectos essenciais relativos aos outros e a nós mesmos. As artes possuem essa função subliminar e fundamental, que une a sensação do prazer estético, na primeira leitura que oferece, ao processo de apreensão de conhecimento, que se dá de forma nem sempre racional. As artes são vitais para o desenrolar do processo civilizatório e para a permanente transformação dos seres humanos em mais humanos.
Daí que os filmes, as peças teatrais, a literatura, as esculturas, os espetáculos de dança, a mímica, a fotografia, a pintura e as demais manifestações artísticas, quando lançam suas luzes sobre determinada faceta do imensurável espectro humano, aproximam-nos da compreensão daquilo que, por experiência própria, jamais vivenciaríamos. Compreendemos as angústias do palhaço de circo porque já vimos filmes e lemos livros que abordam como personagens os palhaços de circo. Conhecemos a profundidade do sentimento de obsessão levado ao extremo porque navegamos pelas páginas da obra “Moby Dick”, de Herman Melville, acompanhando a caçada insana que o Capitão Ahab empreende pelos vastos mares em busca da baleia branca, motivo do ódio que lhe consome a alma. Conhecemos o horror da guerra ao fruirmos as linhas e as formas criadas pelo pintor Picasso em sua tela “Guernica”. E assim por diante.

Mas, às vezes, a Arte deixa órfãs algumas nuances da aventura humana. Os goleiros, por exemplo. Quem sabe o que lhes passa pela cabeça durante os intermináveis minutos em que ficam parados frente ao gol, observando o jogo se desenrolar no meio do campo? Qual o tamanho de suas angústias ao terem de defender sozinhos um pênalti (o cineasta alemão Wim Wenders é um dos poucos que já se debruçou sobre o tema)? Seriam todos os goleiros filósofos? Pouco sabemos. Mas vale a pena refletir um pouco sobre o assunto, especialmente neste domingo, 26 de abril, Dia do Goleiro (e de rodadas de campeonatos estaduais).
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de abril de 2015)

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Senão você dança

Quem não gostaria de ser bailarina do programa “Domingão do Faustão”, da Rede Globo de Televisão? “Eu não!”; “nem eu!”; ”eu também não!”; “eu, fora!”; ”não!”; “eu não!”! Está bem, está bem, desculpem, comecei esta crônica da maneira errada, admito. Ou até que comecei certo, porém, dirigi a pergunta ao público errado. Ora, Marcos Kirst, perguntar aos seus inteligentes leitores (especialmente às suas inteligentes leitoras) se desejariam integrar o corpo de ballet de um programete televisivo de auditório! Foi mal!
Mas a pergunta era apenas retórica, para introduzir um assunto que me chamou a atenção nas páginas de notícias na internet, ontem. Parece que surgiu uma crise séria entre as moçoilas bailantes que integram o corpo de ballet do programa apresentado por Fausto Silva nas tardes de domingo. Elas estariam indignadas com a decisão da produção, apoiada por Fausto, de criar um reality show (sabe, senhora, esses programas de competições que alavancam a audiência das emissoras para vender mais automóveis) com candidatas a bailarinas do programa. A competição terá eliminatórias regionais e a vencedora levará como prêmio a chance de assinar contrato e ir lá dançar para nós, junto às outras, em frente às câmeras, nas tardes de domingo. Legal, não? Quem não gostaria de... Ops, desculpem de novo...
Mas, então, a tal da crise das bailantes. Parece que as lindas bailarinas (que, cá entre nós, candidatas, se ninguém ainda lhes disse, digo-lhes eu: entre os requisitos, o principal, certamente, é o de ser jovem e bela, belíssima, atordoantemente sarada e bela, para que sejamos hipnotizados pelas coreografias, exato, pelas coreografias). Então, retomando, parece que as bailarinas oficiais (são umas doze ou treze, conforme fiquei contando em uma fotinho do corpo – de ballet - que ilustrava a reportagem) estão revoltadas com a projeção que as novatas vão ter em todo o país, em detrimento delas, que estão lá suando as malhas domingo sim e domingo também. Pode isso?

Bem, pode. Até porque o Faustão, ao ser informado sobre a crise das rodopiantes, disse alguma coisa assim como: “quem quiser, fica, quem não quiser, que caia fora”. Ou seja, primeira lição de reality para as candidatas: nessa vida, ou você dança, ou você dança.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de abril de 2015)

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Prefiro não fazer

Desde que o mundo começou a civilizar-se, é sabido que o cultivo de hábitos culturais é a mola propulsora básica e fundamental para o desenvolvimento de um povo. Uma nação civilizada, que seja propositiva no cenário internacional, que tenha condições de gerenciar-se positivamente, de encontrar saídas criativas e sólidas para a solução de seus problemas, só se constrói de verdade a partir da formação em seu seio de cidadãos plenos. E cidadãos plenos só existem se possuem relação com a educação e com a cultura. Se não, não. Ponto.
Nós, brasileiros, estamos caminhando alegres e céleres em marcha-a-ré na pista da relação entre povo e cultura. Enquanto os povos sérios, desenvolvidos, correm para a frente, nós damos as costas para a linha de chegada e arrancamos com entusiasmo para trás, cada vez mais distantes de qualquer meta minimamente razoável, e o fazemos com a prepotência típica do adolescente inconsequente e dono da verdade, que é o que somos enquanto nação, rumo à catástrofe. Entre civilização e barbárie, optamos claramente pela barbárie, encalhados nos sofás de nossas salas assistindo à televisão, enquanto o tempo passa e a História vai sendo construída do lado de lá de nossas fronteiras.
Exagero do cronista? Vamos, então, aos fatos. A Fecomércio do Rio de Janeiro divulgou, poucos dias atrás, o resultado de uma pesquisa que fez em todo o território nacional, analisando a relação dos brasileiros com os hábitos culturais, e os números apresentados são estarrecedores (apesar de nada surpreendentes, infelizmente). A pesquisa enfoca o que os brasileiros fizeram (ou não fizeram) em termos de ações culturais no ano de 2014. Para começar, 70% dos entrevistados não botaram a mão em sequer um livro para ler. Só isso bastaria, mas tem mais: 89% não assistiram a uma peça de teatro; 73,7% não foram ao cinema; 80,6% não foram a show; 92,5% não visitaram exposições de arte; 91,2% não foram a espetáculos de dança. Ufa! É o quadro do horror.

E por que isso? Por uma simples resposta, também detectada pela pesquisa: falta de hábito ou de gosto. Ou seja: desinteresse puro e simples. E quem é a vedete das horas de lazer dos brasileiros? Fácil: a televisão (programas de auditório, futebol e BBB) e a internet. Ordem e progresso, né? Só na bandeira mesmo...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de abril de 2015)

quarta-feira, 22 de abril de 2015

As metamorfoses

As coisas mudam, nada é eterno. Uma das características fundamentais do universo, da natureza, de tudo, é justamente a existência dos processos, do andar, do fluir, do transformar. Nada é perene, nada é imutável. Até os continentes se movimentam, os oceanos viram desertos, as montanhas se desgastam, sóis fenecem, estrelas nascem, cobras trocam de pele, lagartas viram borboletas, o sertão vira mar e o mar vira sertão. Ideias se modificam, certezas são abandonadas, hábitos evoluem, crianças envelhecem, ruas trocam de nome, refrigerante da infância muda de gosto, deuses morrem, inimigos fazem as pazes. Velhas opiniões formadas sobre tudo dão lugar às metamorfoses ambulantes, que são o substrato vital da História. A única coisa que não muda é o fato de que tudo muda.
Agora, por exemplo, até as partidas de futebol televisionadas tradicionalmente às dez horas da noite no Brasil podem mudar. Já era praxe, a gente sabe: chega a quarta-feira, já deixamos uma cervejinha gelada preparada, desmarcamos compromissos adiáveis (“não, não marque o evento na quarta-feira de noite, que é dia de jogo”) e sabemos que o sofá da sala já está todo felizinho, o rabinho abanando, à nossa espera, para torcer ou secar conosco. Mas isso pode mudar, uma vez que a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) anda analisando junto às emissoras de televisão do país a possibilidade de antecipar os jogos para as 21h30 ou, até mesmo, criar no calendário oficial as partidas de domingos de manhã, tipo 11 horas. E por que não?

Nos países do hemisfério norte, por exemplo, é praxe marcar o início dos eventos noturnos cedo da noite, tipo seis, sete, no mais tardar, oito horas. Isso permite que as pessoas usufruam dos compromissos noturnos (peça teatral, cinema, solenidade, coquetel) e depois ainda tenham tempo de sobra para sair para jantar, ao invés de ter de correr para casa dormir, como ocorre aqui no Brasil, em que os eventos marcados para as oito começam às nove e se encerram perto da meia-noite, matando todo mundo no cansaço. Cerimônia de entrega do Oscar nos Estados Unidos começa às seis da tarde e se encerra às dez da noite, sem torturar ninguém. Mas as coisas mudam. Ah, mudam.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de abril de 2015)

terça-feira, 21 de abril de 2015

Feriado histórico

O feriado de 21 de abril existe no Brasil para que seja celebrada a memória de um de seus mais importantes vultos históricos, Tiradentes, como ficou conhecido o dentista e ativista político líder da Inconfidência Mineira, Joaquim José da Silva Xavier, executado por enforcamento nessa data, em 1792. Por participar do movimento insurgente que desejava a instalação da República no país, foi sentenciado à morte por crime de lesa-majestade (ou seja, de traição à pessoa do Rei de Portugal, que, na época, comandava os destinos da colônia brasileira). Quando o Brasil finalmente virou República, em 1889, Tiradentes foi alçado ao posto de herói nacional.
Mas é interessante detectar como a História gosta de brincar com os significados das datas do calendário. Não bastasse o 21 de abril ser dedicado à memória de Tiradentes, a data marcou profundamente a vida dos brasileiros 30 anos atrás, quando se comemorava o feriado no ano de 1985. Naquela feita, duas personalidades brasileiras ingressariam na história recente do país: uma entrando em cena e a outra saindo de cena.
Três décadas atrás, 21 de abril caiu em um domingo típico de Fórmula-1, quando os brasileiros ainda viviam emoções palpáveis acompanhando as corridas devido à performance vitoriosa de Nelson Piquet e a algumas promessas verde-amarelas que surgiam nas pistas. A prova se dava no autódromo de Estoril, em Portugal, e foi vencida pelo jovem e carismático Ayrton Senna, que subia pela primeira vez na vida ao pódio em primeiro lugar (seria a primeira de sua carreira de 41 vitórias na Fórmula-1). A partir dali, Senna começava a escrever uma das páginas mais brilhantes no capítulo reservado aos ídolos do esporte nascidos em terras brasileiras.

Por causa desse feito, a audiência à noite do “Fantástico” da TV Globo estava batendo todos os recordes de Ibope, pois quem viu a proeza de Senna queria revê-la e quem não viu, queria ver. Porém, os lares brasileiros naquele domingo foram chacoalhados, já próximo das onze horas da noite, com a notícia bombástica de que o presidente Tancredo Neves (o primeiro presidente civil eleito após o fim da ditadura militar), depois de mais de mês lutando pela saúde, acabava de falecer. Nas curvas da política, a história do país também se transformava aceleradamente.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de abril de 2015) 

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Vida simples

Ah, o prazer das pequenas coisas. O grande prazer das coisas pequenas. Pequenas coisas que propiciam grandes prazeres e, por isso mesmo, não são pequenas, mas, sim, grandes pequenas coisas. Pequenas grandes coisas. Como quiserem. O fato é que são coisas fáceis de você proporcionar a si mesmo, plenificá-las de significados e guardá-las consigo como lembranças boas para o resto de sua vida. Basta querer.
Ontem, por exemplo, domingo. Dia bonito, com nuvens esparsas, sem chuva, o sol tranquilo de outono, nem muito quente, nem muito frio, o paradismo das coisas inerente ao epicentro de um feriado prolongado. Aquele despertar sem horário, mas que se dá no horário de sempre devido ao condicionamento do relógio biológico e que acaba sendo uma bênção porque você se vê em pé no meio da sala ainda cedo e com todo aquele domingão lindo à sua mercê, disponível para tudo aquilo que você decide não fazer e locupletar-se de uma rara inércia merecida e benfazeja, como nem sempre é possível. Ah, que bom!
Aí você decide sair para almoçar com a esposa, deixar que cozinhem para você, que sirvam-lhe à mesa, na churrascaria de sua preferência (porque domingo é dia de costela bem passada e de picanha mal passada e granito não, obrigado, um salsichão, sim, baixa esse ali mais torradinho, e abacaxi para ela, eu passo, essas coisas), e vai de tênis e camiseta, aquele ar casual domingueiro que só aos domingos somos capazes de portar, e como o fazemos bem. Daí, costela vai, costela vem, você lambuza os bigodes (tenha-os ou não, trata-se de metáfora válida para qualquer biotipo) e decide dar-se por satisfeito e ir para casa, porque a tevê passa jogo de tarde e você tem de torcer ou secar, dependendo das cores que defende.
E no caminho, decide passear pelas ruas do bairro, entrar nas quebradas, retardar ao máximo a chegada em casa enquanto rola no som do carro o CD contendo músicas geniais arranjadas pelo amigo artista de Nova Petrópolis (grande Selestino Oliveira!) que há anos resolveu musicar letras de poetas caxienses e produzir disco bonito com o qual nos presenteou e que nos faz cantar junto e decorar as letras, felizes, satisfeitos e empanturrados de vida. De vida dominical. Sabendo que qualquer dia de nossas vidas pode se revestir de domingo de outono, como esse de ontem. Basta querermos.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de abril de 2015)

sábado, 18 de abril de 2015

Amiga vegetal

Vejo ao longe, da janela de meu escritório, o balançar dos galhos da frondosa araucária que domina o centro de uma quadra no bairro ainda desprovida de concretos. A árvore ocupa lugar de destaque no centro do cartão-postal que os quadrangulares limites da janela definem sempre que abro-a todas as manhãs, deixando entrar o sol (quando o dia é de sol) ou a neblina (nos dias de nuvens) e as primeiras nuances de mais um dia.
“Bom-dia, bela árvore”, desejo a ela em todos os alvoreceres, ao que ela me responde sempre ao longe com um sutil menear de seus galhos robustos e silenciosos. Às vezes, quando dou uma pausa do trabalho frente à tela do computador, para dar uma folga ao pensamento e deixá-lo divagar, repouso o olhar sobre a imagem da árvore que de lá me faz companhia, e fico a admirar suas formas exuberantes: o longo tronco desnudo que se ergue do solo seguro, forte, para explodir no alto em um punhado de galhos arqueados a ofertarem em cada ponta um circular ramalhete de verdes folhas, como se fosse um doceiro de mil braços a vender algodões-doces vegetais. Elegante design da natureza, criado para encantar os olhos de quem os tem a serviço da pescaria do Belo, onde quer que ele se esconda.
Que idade terá esse exemplar da mata nativa que se exibe em sua exuberância nessas quebradas do bairro? Mais velho do que eu? Contemporâneo? Um irmão mais novo, um tio, um avô? Não sei, não sou cientista, não conheço e não sei capturar os sinais que a árvore certamente emite e que desvelam o tempo de sua existência. Ainda bem. Assim, posso colecionar em relação a ela mais um mistério, porque é de mistérios que se moldam os encantos e não quero perder um milímetro sequer do fascínio que cultivo por minha amiga vegetal solene, impávida, muda e presente.
Ontem amanheceu ventando forte. Acordei mais cedo com o chacoalhar das persianas contra os vidros das janelas e fui descerrar a do escritório para logo saudar a minha amiga araucária. Seus braços de polvo revolviam-se frenéticos pela ação do vento, em um aceno conturbado e tresloucado de galhos a chacoalharem revoltos. Ah, temos mais algo em comum, amiga araucária: esse vento norte também te transtorna! Mas, se ela segue firme, encontro em sua imagem a força para enfrentar também eu mais um dia. Sim, bom-dia para você também, e vamos à luta!

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de abril de 2015)

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Quando chegavam os colonos

Neste ano de 2015 os municípios que integram a região conhecida como Serra Gaúcha, especialmente aqueles originários a partir da chegada de colonos oriundos da Itália, celebram os 140 anos da Imigração Italiana no Rio Grande do Sul. Caxias do Sul, a “Pérola das Colônias”, conforme apelidou-a Júlio de Castilhos (então presidente da Província) na visita que fez ao município em 1897, também se insere na programação de festividades alusivas ao evento histórico.
Que os imigrantes italianos, depois de dias de viagem cruzando o Atlântico, chegaram aqui e tiveram de arregaçar as mangas para transformar a mata virgem em local de sustento, isso a gente sabe. Mas vale a pena, também, para compreender melhor que mundo era aquele do ano 1875, embarcar em uma máquina do tempo e fazer um rápido mundo-tour para ver o que rolava no planeta naquela época. Venham comigo.
No dia 3 de março de 1875, por exemplo, o compositor francês Georges Bizet (1838 – 1875) fazia a estreia de sua ópera “Carmen”, em Paris (Bizet morreria exatamente três meses depois da estreia de sua mais afamada obra). Personalidades importantes morreram naquele ano, como o enciclopedista francês Pierre Larousse, criador de uma coleção de enciclopédias que levava o seu nome; o político e desembargador brasileiro Cândido José de Araújo Viana, que ficou conhecido como Marquês de Sapucaí e o escritor e mago francês Eliphas Levi. Em 4 de agosto, morria em Copenhague, capital da Dinamarca, o escritor Hans Christian Andersen (1805 – 1875), famoso por criar histórias infantis hoje universais, como “O Patinho Feio”, “O Soldadinho de Chumbo”, “A Pequena Sereia” e outros.

Também foi um ano em que nasceu gente que depois alcançaria a fama, como o médico, filósofo e escritor alsaciano Albert Schweitzer (morto em 1965); o compositor francês Maurice Ravel (morto em 1937), autor do famoso “Bolero”; e o mágico e escritor inglês Aleyster Crowley (morto em 1947). Em novembro, no Brasil, era fundado o jornal “O Estado de São Paulo”. Enquanto isso, pelos morros da Serra Gaúcha, centenas de famílias de colonos começavam a transformar em realidade, por meio do trabalho, a meta de construir aqui um lugar propício para viver, trabalhar e moldar sonhos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de abril de 2015)

quinta-feira, 16 de abril de 2015

O alvo Berlim

Exatamente 70 anos atrás, no dia 16 de abril de 1945, começava a ser escrito um dos capítulos mais definitivos, cruéis e sangrentos da história recente da humanidade. Às cinco horas da manhã daquela segunda-feira, o marechal soviético Georgy Jukov, comandante-em-chefe do Exército Vermelho, deu a ordem para que a artilharia começasse o bombardeio da cidade de Berlim, então capital do Terceiro Reich, o império nazista baseado na violência, no racismo, no assassinato e na insanidade que Adolf Hitler instalou na Alemanha e quase conseguiu impor ao mundo.
A data marca o início da Batalha de Berlim, aquele que seria o ato final da Segunda Guerra Mundial no palco europeu, culminando com o suicídio de Hitler em seu bunker em 30 de abril e com a rendição da Alemanha em 8 de maio, sete décadas atrás. A Segunda Guerra ainda se arrastaria por mais três meses devido à continuação do conflito entre os Estados Unidos e o Japão, até a rendição nipônica após as bombas atômicas norte-americanas que dizimaram Hiroxima e Nagasaki, em agosto.
A Batalha de Berlim foi um episódio cruento, em que a capital alemã foi arrasada pela ação das tropas soviéticas, deixando dezenas de milhares de mortos em ambos os lados. No lado alemão, a população civil que ainda residia na cidade sofreu tanto quanto os militares, até porque, àquela altura, Hitler havia transformado praticamente toda a população em combatentes, não poupando mais nem velhos nem crianças da obrigação de empunharem armas para defender o indefensável. A batalha durou três semanas, nas quais a guerra chegou a cada rua, a cada esquina e a cada prédio de Berlim, fazendo literalmente vir abaixo e enterrar-se em ruínas o projeto nazista de controlar o mundo à base do ódio e da discriminação.

O preço pago pelas nações aliadas para combater, enfrentar e derrotar o nazismo foi um dos mais altos já assumidos pela humanidade, em um esforço conjunto para manter vivos os valores éticos e morais que precisam reger as sociedades que se pretendem civilizadas. O mundo que temos hoje, apesar de todas as suas inúmeras imperfeições, é inimaginavelmente melhor do que o doentio pesadelo sonhado e quase concretizado por Hitler. Devemos isso a cada cidadão, anônimo ou não, que deu seu sangue, seu suor e suas lágrimas para enfrentar o mal, 70 anos atrás. E isso não pode ser esquecido.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de abril de 2015)

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Água em Marte

Lá vem a Nasa, de novo, com suas revelações bombásticas sobre as últimas descobertas da astronomia. A novidade desta semana vem de Marte, nosso planeta vizinho logo ali antes de Júpiter, por onde anda perambulando já faz algum tempo a sonda denominada curiosamente de “Curiosity”.
A engenhoca anda para lá e para cá sobre a superfície do “Planeta Vermelho”, obedecendo aos comando enviados da Terra pelos cientistas-pilotos da Nasa, livre, leve e solta, sem precisar respeitar regras de trânsito e nem temer colisões, uma vez que é o único veículo a transitar por todo o planeta. Já pensou você aí, proprietário de carrão, tendo um planeta inteirinho para rodar do jeito que bem entender, sem ter de parar nas esquinas, sem sinal vermelho, sem faixa de pedestres, sem outros veículos no meio do caminho, sem nadinha de nada para impedir suas aceleradas a mais de 200 por hora? Ah, um planeta para chamar de seu deve ser o sonho de consumo dos apressadinhos do trânsito engarrafado daqui da Terra!
Conforme andei pesquisando, há mais boas notícias aos velozes do volante, a respeito das condições de tráfego lá em Marte. Lá, não existe lei seca, tampouco blitze de balada segura com bafômetros engatilhados para flagrar os bebums que gostam de misturar álcool com direção. Lá em Marte não tem nada disso. Quem sabe vocês lotam uma espaçonave e se mudam todos para lá, hein, deixando o trânsito daqui da Terra restrito aos cumpridores das leis? Façam a festa lá em Marte!
Como é? Não querem ir porque lá não terão gelo para o uísque? Não, vocês estão enganados! Pois esta é a nova revelação da Nasa: Marte tem água! A Curiosity descobriu evidências de que há água em forma líquida perto da superfície do planeta. E como a temperatura ambiente média lá em Marte é de cerca de 70 graus Celsius negativos, a água já vem geladíssima. Para virar gelo, é um pulo. Então, o que estão esperando? Vão para lá, correr bastante, ignorar faixas de segurança, ultrapassar sinais fechados, fazer rachas pelas intermináveis areias marcianas. Divirtam-se, em Marte!

A Terra, deixem-na para os terráqueos que se esforçam por fazer esse um planeta um pouquinho mais civilizado a cada dia que passa.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de abril de 2015)

terça-feira, 14 de abril de 2015

Tiro o chapéu

Recebi um telefonema do Pioneiro solicitando que eu comparecesse ao jornal dia tal, horário tal, para renovar a foto de minha cara, que encima esta coluna, porém, desta vez, usando um chapéu típico dos imigrantes italianos. Lá fui e cá estou, devidamente enchapelado, conforme o amigo leitor e a senhora leitora já devem ter percevisto, ali em cima.
Isso de estar de chapéu é algo que soa um pouco estranho para quem nasceu já na segunda metade do século 20, quando o uso dessa elegante peça do vestuário masculino estava em franco declínio. Cresci com a cabeça desprotegida do aconchego dos chapéus, os cabelos loiros (isso no antanho, bem no antanho) a esvoaçarem pelas ruas de Ijuí, os pensamentos a correrem soltos pelos paralelepípedos da cidade, as lições da tabuada e as conjugações no pretérito do subjuntivo fugindo livres e não criando raízes em meu cérebro oco e deschapelado. Sim, porque, além do valor que possui como estética, tenho convicção de que os chapéus cumprem também a importante e educativa função de manter coesas e latentes dentro da cabeça as informações e os temas que estudamos, auxiliando no aprendizado e na memorização. Tivesse eu estudado de chapéu em casa na adolescência, não teria até hoje de mexer os dedinhos na hora de calcular mentalmente quanto é sete vezes oito.
Apesar de charmoso e útil, o chapéu foi perdendo espaço na sociedade devido a uma série de fatores conjugados. Entre eles, por exemplo, o advento do automóvel no cotidiano das pessoas. Sim, porque, uma vez que uma das principais funções do chapéu sempre foi proteger a cabeça dos cidadãos contra as intempéries, as queimaduras do sol e a atividade metabólica das pombas, ele passou a ser supérfluo a partir do momento em que começamos a dispender boa parte de nosso tempo encapsulados dentro dos automóveis, que são bem mais difíceis de pendurar nos cabides dos salões de dança, por sinal.

O movimento contracultural dos hippies nos anos 1960 também teve seu peso, uma vez que a moda passou a ser deixar os cabelos crescerem livres, leves e soltos, impossíveis de serem embalados dentro de qualquer espécie de chapéu, cartola ou sombrero. Assim, foram-se os chapéus e ficaram as cabeças, ocas ou não, ralas ou melenudas. Mas para a criativa iniciativa do Pioneiro, ah, para isso, eu tiro o chapéu!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de abril de 2015)

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Beijo do cronista

Senhora minha leitora, meu amigo leitor, acreditem se quiserem, mas hoje, 13 de abril, é o Dia Internacional do Beijo. Pois é, eu também não sabia, sequer beliscava de longe minha cabeça a ideia de que pudesse haver uma data especial destinada a celebrar essa popularíssima manifestação universal de afeto, mas existe, e é hoje.
Mas antes que você se entusiasme e saia por aí porta afora tascando-lhe beijos a torto e a direito, amparado na desculpa de que um certo cronista da cidade disse que hoje é o Dia do Beijo e por isso “é hoje que você não me escapa”, é melhor puxar o freio e ficar sabendo de algumas coisinhas, para o seu próprio bem. Para começo de conversa, não seja impulsivo, né. Pense antes de fazer as coisas. Bom, pacto feito, sigamos, que temos crônica pela frente ainda.
Fui, então, investigar um pouco sobre essa história de Dia Internacional do Beijo e descobri algumas coisas interessantes (uma delas, para o senhorzinho mais afoito ali atrás, é que são transmitidas, em média, cerca de 250 mil bactérias a cada beijo, portanto, prudência, amigo, prudência). Olhem só: dizem que essa coisa começou no início dos anos 1980, inspirada na lenda de um jovem italiano metido a galanteador, chamado Enrique Porchelo, que se gabava de haver beijado todas as mulheres residentes na vila em que morava. Indignado com aquele diz-que-disse a atrapalhar as missas com os cochichos entre os fieis, o padre resolveu oferecer uma quantia em ouro como prêmio à primeira mulher da vila que se apresentasse afirmando não ter sido beijada pelo carinhoso e beijoqueiro concidadão. Como ninguém apareceu para reivindicar o prêmio, reza a lenda que o ouro segue escondido em algum lugar da Itália. Ou seja, as mulheres da vila preferiam o doce beijo de Porchelo ao punhado de ouro oferecido pelo padre. Eita, Porchelo, hein!

Situação oposta aconteceu em 1439 na Inglaterra, quando o então rei Henrique VI proibiu todo e qualquer tipo de beijo entre seus súditos em todo o reino, devido à paranoia relativa à transmissão de bactérias. Que coisa! Não posso atestar a veracidade de nenhuma dessas histórias que, se não são reais, pelo menos são saborosas. Iguais ao sabor de um beijo sincero, seja do tipo que for. Parafraseando o famoso apresentador de televisão, aqui vai então um “beijo do cronista”!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de abril de 2015)

sábado, 11 de abril de 2015

Vizinhos ETs

Quem viver, verá. Ellen Stofan, a cientista-chefe da Nasa, a agência espacial norte-americana, andou vindo a público afirmar oficialmente que até o ano de 2025 haverá descoberta de vida fora da Terra. “Óóóóin”, diriam meus leitores mais jovens. “Do balacobaco”, diriam meus contemporâneos. “E.T. phone home”, os engraçadinhos. Bah, digo eu.
A notícia é extraordinária (tão extraordinária quanto o fato de ter recebido pouca atenção da imprensa e sido publicada nos rodapés das páginas dos sites noticiosos, mas, mesmo assim, está lá para quem quiser conferir), e vai além: a Nasa afirma ter a tecnologia para procurar vida extraterrestre, sabe onde procurar e, em poucos anos, terá as condições necessárias para encontrá-la. Óóóin! Ou seja, em breve, uma das grandes questões filosóficas da humanidade será respondida: estamos sós no universo? Não, não estamos. Há vida fora da Terra.
Outras questões permanecerão ainda insolúveis e buscando respostas, como “quem sou eu?”, “de onde viemos?”, “qual o sentido da vida?”, “quem veio antes: o ovo ou a galinha?”, “o que querem as mulheres?”, “quem foi Shakespeare?”, “por que perdemos a Copa da França?”, “agnoline ou capeletti?”, coisas assim. Mas, pelo menos, no quesito E.T.s, finalmente colocaremos um ponto final. Ficaremos sabendo que eles existem, sim, e a Terra não é o único lugar do universo brindado com vida. Ou seja, nossa humana empáfia, soberba e prepotência terão de baixar um pouco a crista.
Só que assim, ó, não vai pensando a senhora que a Nasa, ali por 2025, nos apresentará fotos de homenzinhos verdes cheios de antenas, ou seres cabeçudos acinzentados com olhos enormes, essas coisas, não. Trata-se de vida em suas formas mais básicas, tipo bactérias e algas marinhas, tá entendendo? Isso porque sabe-se já que algumas luas de planetas como Júpiter e Saturno são repletas de água, em oceanos imensos, enormes. E os cientistas estão convictos de que há algas e bactérias nadando faceiras lá naqueles oceanos extraplanetários.

Por enquanto, não poderemos trocar receitas com aliens, mas já é um primeiro passo. Mas, se além das algas encontrarem camarões, por exemplo, poderemos comê-los. Opa, esqueci da política da boa vizinhança. Isso não seria simpático. Desculpem, sou humano...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de abril de 2015)

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Não, não acabou

Durante os primeiros anos da década de 1970, o dia 10 de abril revestiu-se como uma data de luto, tristeza e dor para os fãs do rock and roll e da cultura pop ao redor do planeta. Foi na manhã daquela sexta-feira, 10 de abril de 1970, que o músico e compositor britânico Paul McCartney anunciou para a imprensa mundial que ele estava saindo dos Beatles e que a banda, adorada por milhões de fãs em todo o mundo, estava oficialmente esfacelada. Foi uma bomba que devastou almas.
Paul reuniu a imprensa para anunciar, de surpresa (até mesmo para os seus agora ex-colegas de banda), o lançamento de seu primeiro álbum-solo (intitulado simplesmente “McCartney”), contendo 13 faixas totalmente compostas por ele e musicadas por ele mesmo (Paul gravou todos os instrumentos em seu estúdio particular, da bateria aos teclados, ao baixo e às guitarras). E, de lambuja, disse que estava deixando os Beatles. E sem Paul, não haveria mais Beatles (aliás, sem qualquer um dos quatro de Liverpool jamais haveria chance de a banda seguir existindo).
Acabava-se, naquela manhã de sexta-feira, 10 de abril de 1970, um longo sonho que havia embalado a vida de milhões de pessoas. O epitáfio “o sonho acabou”, para referir-se ao fim dos Beatles, foi legado pela genialidade de John Lennon ao lançar seu próprio álbum-solo em 11 de dezembro do mesmo ano, ao final da faixa intitulada “God” (“Deus”). Só que, passado o luto, a vida seguiu em frente, como ela sempre faz, revelando que, na verdade, ainda havia muito a ser sonhado.

Nas décadas seguintes, os quatro ex-Beatles deram asas às suas carreiras-solo, presenteando o mundo com novas pérolas oriundas de suas genialidades criativas, mantendo também viva e sempre acesa a chama da banda que haviam criado e legado à História. A verdade disso tudo é que sonhos podem sempre ser renovados, transformados, reinventados, apesar dos percalços, das pedras no meio do caminho. Passados 45 anos da dissolução da banda de rock mais influente da história, o dia 10 de abril, hoje, configura-se apenas como uma nota histórica imutável, mas o luto em relação a ela passou. O segredo é saber reconfigurar sonhos que fazem de conta que terminaram.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de abril de 2015) 

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Culpa do cachorro-quente

Todo político em campanha eleitoral se esforça ao máximo para se aproximar do perfil de seu eleitorado. Orientados pelos assessores de marketing, eles tentam ir aonde o povo está; tentam fazer as coisas que o povo faz; tentam, nesses dias, se assemelhar ao povo, para que o povo os veja como legítimos representantes daquilo que o povo é, de como o povo pensa e age. Depois de eleitos, claro, os políticos podem voltar ao seu estado natural, configurado, na maioria dos casos, em uma postura bem distanciada da realidade do povo que os elegeu, como todos sabemos, fora as raras exceções de praxe.
Na Inglaterra, esta semana, virou meme na internet uma tentativa desastrada nesse sentido empreendida pelo atual primeiro-ministro britânico David Cameron, que está em campanha para as eleições de 7 de maio naquele país. Tentando passar uma imagem de que ele também é gente comum, compareceu a um evento público em que foi servido churrasco e cerveja, alimentos de pessoas normais como eu e você, sejamos nós brasileiros ou britânicos. Até aí, tudo bem. Porém, a maionese desandou na hora do cachorro-quente (não me perguntem o que tem a ver cachorro-quente com churrasco, mas trata-se dos hábitos britânicos e as notícias dizem exatamente isso), que Cameron se botou a comer com garfo e faca!
Mas quem é que, de sã consciência, come cachorro-quente com garfo e faca? Ora, todos sabemos que parte da graça, do sabor e do ritual de devorar um cachorro-quente suculento reside justamente no ato de comê-lo com as mãos, lambuzando os beiços com katchup e mostarda, salpicando a camisa com batata-palha e ervilhas, esparramando ilhas de milho e maionese nas calças, engordurando a ponta dos dedos e também a orelha que resolve coçar bem nessa hora, sujando os dentes com salsicha e limpando o molho vermelho com cebola da boca na manga da cam... ops, no guardanapo de papel, no guardanapo de papel!

Eu, que me conheço e não pretendo concorrer a primeiro-ministro da Inglaterra, costumo só comer cachorro-quente em casa, posicionado próximo do chuveiro, para onde preciso me dirigir sempre depois que devoro corretamente um cachorro-quente, haja vista o estado lamentável em que fico. É exatamente isso o que me impede de concorrer a qualquer cargo eletivo. Tá explicado!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de abril de 2015)

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Xô da minha mansão!

Pronto, e essa agora! Não poderei chegar perto de nenhuma das duas mansões que o ator norte-americano George Clooney possui na cidade costeira de Laglio, no norte da Itália! O prefeito da localidade estabeleceu uma multa que pode chegar a 500 euros para quem inventar de ultrapassar os limites de distância impostos tanto para a entrada das mansões do astro por terra quanto pela orla marítima. As medidas servem para forasteiros e, como não sou habitante de Laglio, atingem diretamente a mim!
Daqui a alguns dias, Clooney vai celebrar seu aniversário de 54 anos e não quer saber de paparazzi e fãs se acotovelando na frente dos portões de suas duas mansões, e nem de barcos cheios de jornalistas atravancando sua vista para o mar. Quem for lá, vai sofrer sanções nos bolsos e, pior, em euros. Assim, está decidido: eu é que não vou!
O prefeito alega que as proibições se dão por questões de segurança e também por motivos de ordem pública, uma vez que as tais de aglomerações atrapalhariam o trânsito na localidade. Não deve ser fácil ser prefeito em uma cidade escolhida por celebridade de Hollywood para ter mansões nas quais passa o verão e comemora seus aniversários. E, ainda por cima, duas! Duas mansões na mesma cidade! Sei lá, deve ser mais barato comprar mansões em Laglio, na Itália. Vou mandar meu representante imobiliário dar uma checada nisso...
Mas o fato é que gostei da ideia. Vou conversar daqui a alguns dias com o prefeito Alceu e ver o que pode ser feito aqui em Caxias, no bairro em que resido, no a respeito da proximidade de meu próprio aniversário. Também não quero saber de paparazzi e fãs se acotovelando na entrada do meu prédio. Ainda bem que não temos mar aqui em Caxias, as restrições podem se restringir à questão em terra firme, mesmo, facilita para o prefeito. Ninguém passará e, de antemão, já vou deixar os responsáveis pela segurança e fiscalização orientados para que impeçam especialmente George Clooney de chegar perto do meu prédio. Não quero vê-lo nem acenando de longe.
Agora, cá entre nós, Alceu: deve ser uma maravilha administrar uma cidade cuja principal preocupação é afastar paparazzi da mansão de celebridade, hein? Quem sabe a gente se muda para Laglio? O senhor concorre a prefeito lá e eu compro duas, três mansõezinhas...

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de abril de 2015)

terça-feira, 7 de abril de 2015

Kafkiano ou calvinístico

Quinto Anfossi é um ativista intelectual italiano que luta para moldar sua vida no início da década de 1950, em uma Itália que se reconstruía inteira após o fim da Segunda Guerra Mundial. Pouco afeito às coisas práticas, ele gasta seu tempo com alguns amigos projetando a criação de um jornal de cunho político-filosófico, até o dia em que resolve dar uma guinada: em acordo com a mãe viúva e o irmão mais velho, decide entrar em um negócio imobiliário, vendendo parte do terreno da casa da família a um construtor que, depois, vai se revelar um homem inescrupuloso e mal-intencionado.
Ao longo das cerca de 120 páginas do romance “A Especulação Imobiliária”, de Ítalo Calvino (1923-1985), o leitor é levado a acompanhar as idas e vindas de   Quinto e seus familiares na tentativa de desobstruir os percalços que vão surgindo ao longo do caminho de uma transação que se apresenta interminável: ora é uma promissória não paga pelo construtor; ora uma cláusula alegadamente descumprida de parte e parte; ora uma greve de fornecedores de matéria-prima, em uma espiral desconcertante dentro de um labirinto sem saída. Sufoco e angústia tipicamente kafkianos, porém, tratados sob a ótica bem-humorada de Ítalo Calvino. Ri bastante com Calvino.
Lendo as páginas do romance, me lembrei do mesmo sufoco e da mesma angústia vivenciados pelo personagem Joseph K., protagonista da obra “O Processo”, uma das mais famosas do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924). Subitamente, sem motivo aparente, Joseph K. é acusado de alguma coisa (não se sabe exatamente o quê) por não se sabe quem, e passa a transitar sem rumo pelos corredores da burocracia judicial criada a partir da criatividade pesadelística do escritor, gerando uma atmosfera de profunda angústia e desespero. Angustiei-me muito com Kafka.

Tanto o Quinto Anfossi de Calvino quanto o Joseph K. de Kafka veem-se imersos em um pesadelo onírico do mundo prático e burocrático levado ao extremo pela imaginação de seus autores. A diferença é como cada um desses gênios escritores aborda a mesma questão: o italiano, com a leveza do humor; o tcheco, com o peso da aflição e da tormenta. São duas formas de encarar a vida, seus problemas, seus desafios. Eu mesmo, há dias em que acordo kafkiano e dias em que me vejo Calvínico. O segredo está no equilíbrio dessa equação.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de abril de 2015)

segunda-feira, 6 de abril de 2015

História de horror

Tudo, mas tudo, é uma questão de convicção. Estou convicto disso. A convicção é a alma do negócio, tanto nos negócios quanto nas questões de ordem pessoal. O vendedor sabe muito bem disso. Ele sabe que ele não vai convencer ninguém a adquirir um produto no qual ele mesmo não acredita.
É aquela velha história, de ser capaz de vender geladeira para pinguim. Afinal de contas, até pinguem tem o direito de desejar ter sua cerveja bem gelada, dentro do iglu. Como, minha senhora? Pinguim não mora em iglu, quem mora em iglu é esquimó? Dá no mesmo, minha senhora, não estrague minhas metáforas, o importante aqui é a temperatura da cerveja e a vontade do pinguim. O pinguim é meu e faço com ele o que eu bem entender. E vamos adiante, que temos uma reflexão a desenvolver.
Falava eu de convicção. Você tem de estar convicto para conseguir convencer os outros de suas verdades. Além disso, as coisas só vão se transformar em realidade se elas primeiro virarem verdades de dentro de você, em seu íntimo. Parar de fumar, por exemplo. Você só vai conseguir de verdade se primeiro essa vontade (a de parar mesmo de fumar) se transformar em realidade convicta dentro de você. Daí, sim, ela se transformará em verdade no mundo real. Caso contrário, não mesmo. Caso contrário, será aquela procrastinação de sempre, aquela vontadezinha sem muita vontade de verdade, sem convicção, e dê-lhe mais um cigarrinho.
Certa vez, décadas atrás, estávamos reunidos em família ao redor da lareira na casa de meus pais, em Ijuí, em uma fria noite de julho na qual faltou luz. A aconchegante luminosidade do fogo da lareira induzia meu avô a contar histórias e, de repente, minha priminha, de quatro anos de idade, pediu para todos se calarem, porque ela iria contar uma história “de dar muito medo”. Fizemos silêncio e dirigimos nossos olhares a ela, para que desse início á sua história. Ela ali, sentadinha na cadeira, olhou ao redor, começou a lembrar da história em sua cabeça, fez uma careta de horror e começou a chorar convulsivamente, correndo para os braços de minha mãe. Da história, ficamos a ver navios, pois a convicção que ela tinha do horror foi o suficiente para calá-la. Ela tinha convicção daquilo que iria narrar. De minha parte, estou convicto de que aquela foi a história de horror mais assombrosa que eu nunca escutei em toda a minha vida.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de abril de 2015)

domingo, 5 de abril de 2015

Coelhos de antanho

Na outrora de antigamente, naqueles tempos de antanho, quando os cinquentões de hoje ainda eram crianças, vivendo em um mundo analógico desprovido de virtualidades, a aproximação da Páscoa revestia os dias de uma aura toda especial. Ainda se falava e se praticava (mas já não mais com a mesma rigidez do antanho do antanho da infância de nossos pais) o jejum da Sexta-feira Santa e trocava-se os cardápios à base de carne vermelha por peixes.
Frente à algazarra intermitente das crianças, os avós resmungavam e evocavam o antanho do antanho do antanho da infância deles, quando o período pascal impunha a contrição e o silêncio a reinarem dentro das casas das famílias cristãs, em sinal de respeito e dor pela Paixão de Cristo. “Falava-se o mínimo, nem rádio se ouvia. Não se podia rir e nem falar alto. As coisas só normalizavam no dia da Páscoa, que representa a ressurreição de Cristo”, explicavam as avós aos netos (nós) inquietos e excitados com a expectativa da visita do Coelhinho e seus cestos repletos de guloseimas.
Nas cestas, podíamos esperar por no máximo dois tipos de ovos de chocolate: os grandes e os pequenos. Suprassumo da novidade eram os ovos grandes trazendo surpresas em seu interior: balas, bombons ou ovinhos-filhotes. Mas eram raros os ovões “com coisa dentro”. Hoje em dia, ovão de Páscoa sem coisa dentro é quase inimaginável. Difícil, hoje, é imaginar o que NÃO são capazes de inserir dentro dos ovos. Aliás, para minha surpresa, a lógica parece que começa a se inverter. Ao menos, é o que percebi este ano, circulando pelos corredores dos hipermercados atrás de ovos para meu afilhado. As tais das “coisas dentro dos ovos” estão crescendo e saindo para fora, a ponto de os ovos começarem a se tornar os apêndices das tais “coisas”.

Isso criou-nos (a mim e à senhora minha esposa, casal de dindos) um impasse na hora de selecionar o ovo com o qual presentear, em nome do Coelho, o afilhado. Qual levar: o ovo customizado com caneca de Homem-Aranha ou o caminhãozinho de plástico maneiro carregando um ovo (coisas-de-dentro que saíram para fora)? Optamos pelo ovo do Homem-Aranha, uma vez que o afilhado está na fase de adorar o personagem. Como os pais, os tios e avós raciocinaram igual, antevejo meu afilhado este ano enredado em uma ninhada de ovos de Homem-Aranha. Cada um com seu antanho...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de abril de 2015)

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Símbolo e analogia

Eu gosto de símbolos, de analogias, de metáforas. Gosto de me encantar com o poder poético que os símbolos, as metáforas e as analogias exercem ao representarem aspectos da realidade de maneira alegórica, indireta, evocando o raciocínio, a imaginação, a sensibilidade, o espírito, para que façamos a conexão necessária e, em um lampejo sublime, alcancemos a compreensão. “Insight”, resumem os psicólogos; “epifania”, “êxtase”, afirmam os místicos.
 Encantamento e pura poesia, fascino-me eu, evocando mais uma vez o mantra do mestre português da poesia, quando ele pessoanamente diz: “Ah, tudo é símbolo e analogia!/ O vento que passa, a noite que esfria/ São outra cousa que a noite e o vento -/ Sombras de vida e de pensamento”. Como nos ensina o luso poeta, o vento que passa é muito mais do que somente o vento que passa, quando capturado pelo olhar poético. O vento que passa se transforma em símbolo e analogia, podendo significar mil cousas outras, dependendo das sombras que fizermos surgir da vida e do pensamento. O vento que passa é a realidade concreta: é noite, está frio, tem vento. Mas o vento que passa na noite que esfria pode carregar analogias, metáforas, símbolos, transubstanciando-se em sombras de vida e de pensamento. Eis a magia.
Penso nisso nesta Sexta-Feira da Paixão, feriado em todo o mundo cristão em decorrência do martírio a que foi submetido Jesus Cristo há mais de dois mil anos, na Palestina, ao ser pregado e morto na cruz, conforme narra a Bíblia. Não sei se a figura histórica daquele homem denominado Jesus existiu realmente, pois isso é uma questão que cabe aos cientistas debater. Também não sei se, em tendo existido, era mesmo o Filho de Deus, pois isso é uma questão de fé, e a fé de cada um exige e merece respeito. O que sei é que o símbolo dessa saga evocada por esse personagem e pelos eventos que o cercam é muito poderoso e significativo. Em resumo, representa o extremo das consequências enfrentadas por alguém que assumiu para si uma missão super-humana: trazer à humanidade uma proposta de vida embasada no amor recíproco, na paz, na tolerância, na comunhão e no exercício do melhor que temos dentro de cada um de nós.

Uma mensagem revolucionária ao extremo, tão carregada de força mítica, que segue sendo um desafio atual e válido, a ser perseguido por todos. Boa Páscoa!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de abril de 2015)

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Sócio de livros

Foi no início de 1979 - eu tinha 12 anos de idade - quando meus pais, leitores contumazes, se associaram ao Círculo do Livro. Tratava-se de um clube de leitura sediado em São Paulo, ligado a uma editora, que produzia edições luxuosas (com capa dura, mancha gráfica requintada, ótimas traduções e arte de primeira) de obras nacionais e internacionais, disponibilizadas à aquisição dos sócios pelo sistema de reembolso-postal. Naquela época, havia poucas livrarias (especialmente nas pequenas cidades) e nem se sonhava com encomendas via internet, muito menos com a internet em si.
A cada três meses, os sócios recebiam em casa a “Revista do Círculo”, contendo centenas de reproduções das capas e resenhas sobre as obras e os autores disponíveis para a compra no trimestre. Era uma festa. A revista passava de mão em mão lá em casa, cada um assinalando os títulos que lhe despertavam a cobiça, para que integrassem a lista de encomendas. Eu e minha irmã tínhamos direito a pedir um ou dois livros cada um, por trimestre. Que alegria.
O primeiro que solicitei foi “As Aventuras de Tom Sawyer”, de Mark Twain (1835 – 1910), e lembro até hoje, passados quase 40 anos, do momento em que abri o pacote e toquei a linda capa dura de meu exemplar, ilustrado com um elegante desenho a ponta de lápis do artista espanhol Juan Ballesta. À noite, na cama, antes de dormir, saboreei o momento mágico de abrir o livro e dar início ao mergulho naquele mundo diferente do meu, protagonizado pelo personagem criança imortalizado pelo escritor norte-americano. “Tom! – Ninguém responde. – Tom! – Nada. – Gostaria de saber onde anda esse menino. Tom! – Silêncio absoluto”. Assim tinha início a saga de aventuras e travessuras que eu palmilharia noite após noite, página por página, a partir de meu quarto, já transmudado para sempre em um apaixonado leitor.

Elejo este livro para me ombrear na homenagem que faço ao dia de hoje, 2 de abril, consagrado como o Dia Internacional da Literatura Infantojuvenil. Meus parabéns a todos os autores que se dedicam a produzir obras cuja função principal, ao encantar, é justamente formar novos leitores. Caxias do Sul tem o privilégio de abrigar vários autores assim e, a eles todos, meus parabéns e meu desejo de que prossigam nessa boa batalha.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de abril de 2015)

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Paul is dead

A imprensa mundial está em polvorosa com a revelação e não é para menos, afinal, em se confirmando, a notícia seguramente será a maior bomba do século, desmascarando uma farsa que vem enganando o planeta inteiro há quase meio século. O ex-baterista dos Beatles, Ringo Starr, 74 anos, aproveitou os holofotes da divulgação de seu novo álbum, “Postcards from Paradise”, para afirmar que trata-se de uma verdade, e não de boato, o fato de que o músico e também ex-Beatle Paul McCartney teria morrido em um acidente de carro em Londres em 1966, em pleno auge da banda, e foi substituído por um sósia, que está aí até hoje, fazendo-se passar por ele.
A revelação é de arrepiar os cabelos e eu, na condição de beatlemaníaco, estou com os meus eriçados desde ontem, quando li sobre isso na internet. Ringo diz que Paul (nascido em 1942, em Liverpool) teria saído dos estúdios de gravação da EMI em Londres certa madrugada de 1966, irritado devido a algumas discussões com os demais integrantes da banda (John Lennon, George Harrison e Ringo), e, transtornado, teria se acidentado fatalmente com o carro que dirigia. Chocados e temerosos com a reação do público, o que poderia até acarretar o fim da banda, os demais integrantes, aconselhados por seu empresário na época, Brian Epstein, resolveram colocar um sósia em seu lugar durante alguns dias, até que as coisas esfriassem e eles vissem o que fazer e como dar a notícia da morte de Paul ao mundo.
O escolhido para assumir temporariamente o papel de Paul foi William Shears Campbell (o tal “Billy Shears”, cantado na música-tema do álbum “Sgt. Pepper´s Lonely Hearts Club Band”, lançado na sequência, em 1967), que tinha (tem) uma semelhança assustadora com o Paul original, além de ser, como ele, canhoto e também um excelente, genial e criativo artista. Daí, o “falso” Paul foi ficando, ficando... E fui assistir ao show dele, em Porto Alegre, cinco anos atrás! Que mundo assustador é esse em que uma farsa dessas se sustenta por cinco décadas, e mais, que consegue gerar duas pessoas iguais em visual e genialidade, no mesmo lugar e na mesma época?

Ora, trata-se do mesmo mundo que estabeleceu o dia 1º de abril como o Dia da Mentira, e que permite que cronistas como eu apliquem uma dessas em seus leitores. Primeiro de abril, leitor!!! Ally you need is love!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de abril de 2015)