sábado, 27 de novembro de 2010

A coisa não anda


Esqueceram de fabricar mais ruas, esqueceram de plantar mais vagas de estacionamento, não sabemos o que fazer com os automóveis que finalmente realizamos o sonho de adquirir! O trânsito pelas principais vias da cidade não flui mais; ele tosse, sacode a espasmos. Primeira, segunda, debriagem, freio, pausa, espera, espera, espera, primeira, segunda, freio, pausa, espera, espera, espera, primeira, pausa, freio... isso não é fluxo de tráfego, isso é estertor terminal.
A superpopulação de veículos que infesta nossas vias urbanas e também as estradas assemelha-se ao desequilíbrio natural decorrente do descontrole populacional de pragas silvestres como o javali, por exemplo. Com a diferença de que, no caso dos javalis, o Ibama libera sazonalmente a caça como medida para tentar controlar o recrudescimento do problema. Não estou defendendo aqui que o Daer promova a abertura de uma temporada de abate de veículos, cruz-credo, longe disso! Mas que as tripas infindáveis de automóveis, caminhões e ônibus atravancados pela urbe se assemelham a manadas estáticas de búfalos e elefantes disputando uma beiradinha na lagoa para saciar uma necessidade vital, como a gente vê no Discovery Channel, ah, isso se assemelha.
Ponto positivo nisso tudo (tem de haver sempre um ponto positivo, para que não reine a desesperança), que ninguém ainda percebeu, é a economia que se fará com a suspensão do fabrico de placas indicativas de limite de velocidade a 40 km/h. Com a oficialização do caos no trânsito, atingir os 40 km/h em uma via urbana está se transformando no segundo sonho de consumo dos motoristas brasileiros, após a realização do primeiro, que era o de adquirir um carro.
Eu, de minha parte, ando vasculhando as seções de classificados dos jornais em busca de uma alternativa. Desequilibrado como sou, nem cogito a opção das bicicletas, e fico de olho mesmo é nas ofertas de cavalos. Procuro um bem equipado, de baixo consumo e fácil manutenção (de preferência, flex, movido a milho e aveia). A cor pode ser básica mesmo (malhado, baio, branco) e não exijo air-bag, mas sim um pelego de primeira. Sem falar no chicote, que será de serventia para abrir caminho...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26/11/2010)

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A palavra que começa com "c"

Há uma tendência sórdida pairando nos ares do país nos últimos tempos, e seria conveniente a gente prestar atenção a isso e dar um pára-te-quieto enquanto ainda é tempo, antes de o caldo entornar e antes que derrame-se o leite. Trata-se das tentativas de resgate da censura, que vêm sendo impetradas de norte a sul no país, em diversas esferas, movidas pelos mais diversos agentes, sempre em nome de uma discutível questão ética.
Só para ficar em exemplos recentes, vale lembrar da tentativa de censura do livro “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, que deveria ser banido das salas de aula por “conter conteúdo racista” em suas páginas. Fica mais fácil para os pseudo-guardiães da ética promover o exílio da obra do que aproveitá-la justamente para estimular em sala de aula o debate sobre a intolerância e a evolução dos conceitos morais e éticos, e de como uma ideia equivocada pode influenciar até mesmo os grandes talentos de determinada época. Mas nada de discussão, o que defendem é a censura pura e simples.
Agora andam querendo aplicar censura a filmes como “Tropa de Elite 2”, retirando a recomendação de faixa etária (“não-apropriado para menores de...”) e simplesmente impondo restrição ao acesso mesmo, ou seja, censura. Em nome da preservação dos menores de 16 anos às cenas de violência do filme. Ora, tem graça. Esses mesmos que defendem a censura ao filme devido às cenas de violência, que movam então seus esforços para banir a prática da violência na vida real, que está à solta nas ruas, nas escolas, nos shoppings, na internet, no mundo todo.
Sou contra a violência. Sou contra o racismo. Sou contra a erotização precoce. E sou violentamente contra a censura. As mazelas da sociedade, soluciona-se com debate, com discussão, aclarando as mentes, não tapando sóis com peneiras. A censura é o instrumento dos nazistas, dos fascistas, dos golpistas, dos ditadores, dos intolerantes, da Ku-Klux-Klan e de outros malfeitores históricos.
Vivemos a Era da Informação. Não dá para fazer de conta que não existiu e não existe racismo ou violência. São males que existem. Devemos conhecê-los, identificá-los, nos proteger deles, combatê-los e transformá-los. Com debate, com discussão aberta, com consciência, com informação irrestrita. Censura me causa comichões. Me dá náuseas. Me faz lembrar de José Sarney, que conseguiu censurar o último filme no Brasil, “Je Vous Salue, Marie”, de Goddard, por motivos religiosos, na década de 80. Uma atitude abestalhada e de triste recordação. Mas tem gente com saudades daquela época, como pode-se perceber.
Depois não sabem por que ranjo os dentes à noite...
(Crônica publicada no jornal Informante, de Farroupilha, em 26/11/2010)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Dica para vender livros

Publicar livros nos dias de hoje ficou relativamente fácil. Pululam concursos literários e leis de incentivo dispostos a bancar os custos de edição de sua obra. As editoras, que antes de qualquer outra coisa são um negócio, abrem subdivisões (novos selos) por meio das quais oportunizam qualquer cidadão que se julgue escritor a editar e publicar seu livro, desde que arque ele mesmo com os custos. Os valores não são exatamente baixos, mas ficaram acessíveis, viáveis, próximos aos de um carro popular usado. Para quem acalenta o sonho de ver seu nome impresso como autor na capa de um livro, é um investimento possível de ser concretizado.
O problema vem na sequência. Livro escrito, obra publicada, sessão de lançamento feita (você conseguiu uma notinha de rodapé em um ou dois jornais da cidade, sua mãe e cônjuge marcaram presença e não o deixaram lá abandonado e com cara de suricato perdido no deserto), uma ou duas livrarias oferecendo o título à venda... só falta uma coisa. O leitor! Quem vai lê-lo? Eu digo, quem, além de sua mãe, seu cônjuge e um ou outro amigo de fé e irmão camarada? Quem? O que fazer com todos os outros 995 exemplares que você pagou para virem à luz (ou os outros 495, se você desde o início é alguém que tem mais do que meio pé fincado na realidade)? Até quando vai ser obrigado a dormir em cima deles, a conviver com a tiragem toda roncando debaixo da sua cama?
Bom, gostaríamos que eles fossem lidos pelas pessoas, não é isso? Pois é, e aí, o que fazer para que isso aconteça? Qual é a fórmula? O que é que motiva, afinal de contas, o leitor comprador de livros a invadir a livraria com dinheiro na carteira e, entre o título de Marcos Fernando Kirst e o mais recente romance espetacular de Dan Brown, optar por este último? Afinal de contas, ele ainda não leu nem um e nem outro. Ambas as leituras são igualmente virgens e repletas de promessas de prazer e satisfação (literários) para ele. Então por que ele opta pelo Dan Brown? Por quê? Por quê? Por quê? Hein?
Pois eis a resposta milagrosa: por causa do marketing. O que vende livros é o marketing feito em cima deles. Aliás, sabão em pó e esfregão de aço também vendem assim. Boas campanhas de marketing. Você compra o Dan Brown porque todo o mundo está comprando o Dan Brown. Porque você ouviu falar na tevê, porque leu na revista e no jornal, porque está nas vitrines das livrarias, porque todo o mundo está lendo, porque foi feito um filme. Então você também lê, e ajuda a engrossar as estatísticas.
És autor desconhecido e queres ser lido? Invista em marketing. Invista pesado. E venda tudo o que mandou imprimir. Faça igual ao Luan Santana, o cantor dos jovens corações apaixonados: surja do nada já bombando como se tivesse uma estrada de décadas nas costas. Só tem uma coisa: cuide da qualidade daquilo que você alardeia ao público, porque marketing de produto meia-boca tende a jogar contra, com o passar do tempo. A maionese desanda rapidinho, se você não apresentar de fato a qualidade que andou alardeando. Só cuide disso.
(Publicado na seção "Planeta Livro", da revista Acontece, edição de novembro de 2010)

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Um paradoxo

Você não pode ter tudo o que deseja na vida. Essa é uma lição que a gente recebe cedo dos pais e dos educadores, o que não significa que seja uma lição que a gente consiga apreender também tão cedo e tão facilmente. Muitas vezes, descobrimos a veracidade absoluta desse vaticínio após duras quebradas de cabeça, já na adultice mesmo. Bom é quando, enfim, aprendemos a verdade contida na sábia sentença e conseguimos nos resignar a essa nuance da existência, redirecionando nossa trajetória pessoal a partir da realização de sonhos possíveis.
“You can’t always get what you want”, diz o refrão de uma canção famosa dos Rolling Stones, e que pode ser interpretada, a partir de uma tradução livre, mais ou menos como “você não pode sempre ter o que quer”. Uma variante do mesmo conceito que abriu o texto, ali em cima. É brabo admitir que Mick Jagger tem razão. Especialmente quando, desde pequenino, você acalentava o desejo de crescer e ser rico e famoso e mandar em todo o mundo e viver sem fazer nada e não ter mais de obedecer aos seus pais e ir pra cama na hora que bem entende e tomar bem mais do que só dois copos de Coca-Cola no almoço. Você vai crescer e, talvez, perceber que, entre tudo isso, só conseguirá mesmo obter é a liberdade de tomar mais do que dois copos de Coca-Cola no almoço. Fazer o que...
Pensava nessas coisas semanas atrás enquanto assistia ao show do Paul McCartney, em Porto Alegre. Teve gente que fez malabarismos para conseguir ir ao espetáculo e teve gente que, apesar dos malabarismos, não conseguiu ir, por um ou outro motivo. Mas alguém já pensou na situação do Paul McCartney? No paradoxo que ele vive? Sim, porque, afinal de contas, ele é o único ser humano do planeta que já compareceu a absolutamente TODOS os shows do Paul McCartney e, ao mesmo tempo, é o único ser humano do planeta que JAMAIS poderá assistir ao vivo a um show do Paul McCartney (cunhei isso como “O Paradoxo Paul McCartney”).
Já pensou nisso? O que será que Paul McCartney não daria para assistir ao vivo a um show do Paul McCartney? Bem, Paul, conforme-se... nem você pode ter tudo o que deseja na vida. O detalhe é que ele faz parte do seleto grupo dos que chegam ao “quase tudo”...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19/11/2010)

sábado, 13 de novembro de 2010

Brilhantes amigas


Gostava quando faltava luz à noite nos idos tempos da adolescência porque isso me permitia sair para fora de casa e admirar a estamparia de estrelas que tomava conta do céu. Não que as estrelas só aparecessem nessas ocasiões, mas era só assim, com as luzes apagadas da cidade, dos postes, das casas e dos edifícios, que era possível vislumbrar e admirar o brilho dos astros, que, no mais das vezes, fica ofuscado, como todos bem sabemos, ou não sabemos mais, ou esquecemos ou jamais soubemos. Gostava daquele ritual, pois me proporcionava uma sensação de pertencimento universal a alguma coisa que nunca soube o que era, e sigo não sabendo direito.
A tecnologia da distribuição de energia elétrica parece ter evoluído com o passar das décadas, uma vez que, hoje em dia, tenho a impressão de que a luz falta bem menos do que no passado. Que bom. Assim, temos garantida nossa novela das oito (que não sei por que diabos começa depois das nove), nossa internet navegante, nosso filme locado, nossa vida eletrônica. As estrelas, vai saber, correm o risco de até nunca terem sido vistas em grandes grupos por olhos de gente mais jovem, mas espero mesmo estar errado nesse pensamento triste.
Dia desses estive numa cidadezinha da Serra e faltou luz por volta das onze da noite, enquanto parte da turma assistia ao Fantástico e eu lia livro num canto distante da voz do Zeca Camargo e dos joelhos da Patrícia Poeta. O adolescente que hibernava em mim me arremessou para fora de casa, para o espanto dos outros. “Que faz aí, Marcos?”, quiseram saber. Respondi, esticando pescoço e olhando para o alto, que aproveitava para rever velhas amigas, quase esquecidas. E não é que estavam todas elas lá? Zilhares delas, piscantes, exibidas, belas. Algumas talvez nem estejam mais lá de verdade, mas suas resplandecências permanecem ali, recompondo o céu de minha lembrança.
Resgatei da memória lições astronômicas de um avô apreciador do céu e revisitei as raras constelações que sei reconhecer lá em cima. Estavam lá ainda todas elas, tanto no céu quanto nas profundezas de minhas lembranças. Resgatei alguma coisa naquela noite de pouca luz e muito brilho.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12/11/2010)

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Um show de elegância


O eterno beatle Paul McCartney protagonizou show histórico em Porto Alegre domingo passado e encantou a todos os que tiveram qualquer tipo de contato com ele (próximo ou de longe mesmo, na plateia) devido à gentileza com a qual ele trata as pessoas, os seres humanos, gente em geral. A imprensa não cansa de se espantar a respeito de como pode ser tão gente boa, tão simpático, tão agradável e gentil uma celebridade como ele, que, segundo consta, teria tudo para exibir a maior empáfia do mundo, afinal, ele é exatamente quem ele é: ninguém menos do que Paul McCartney.
Concordo com tudo, até porque fui ao show e presenciei o cavalheirismo dele, expressado no palco pelo esforço bacana de procurar se comunicar com o público, na maior parte do tempo (e que tempo: o show durou quase três horas), falando em português. Uma grande gentileza, sem dúvida. Mas vamos dar um passinho adiante nessa questão: por que é que a extrema simpatia e despretensão de um astro encanta tanto, marca tanto, impressiona tanto? Isso não deveria ser a atitude mais óbvia das mais óbvias das atitudes em se tratando de relações humanas? Bom, a resposta é não, não é, né. Aí é que está.
A soberba, a empáfia, a deselegância, a grossura, a falta de bons modos, a antipatia são os aspectos que regem a maioria das relações sociais entre os seres humanos. E o engraçado é que é muito mais fácil encontrar essas características no comportamento dos Joões e das Marias Ninguéns que desfilam por aí, se achando grande coisa. Em grande parte das vezes, quanto mais pequena coisa um qualquer é, mais grande coisa se acha, e pior se comporta. Não é assim? Pois é, é assim. É por isso que quando surge entre nós um verdadeiro João Alguém, como Paul McCartney, a gente se impressiona com a aula de boas maneiras e de civilização que dele emana naturalmente. Que coisa, né?
Detectei isso in loco também durante a Feira do Livro de Caxias do Sul, realizada entre 1º e 17 de outubro, da qual tive a honra de ser patrono. Entre minhas tarefas, estive envolvido na recepção e no contato direto com diversos escritores. E que interessante perceber que os verdadeiros bambambans da literatura nacional são gente finíssima, tranquilos, acessíveis, aconchegantes e acolhedores. E como são insuportáveis, na proporção diretamente inversa, os coiozinhos que não são ninguém e se acham.
Paul McCartney trouxe bem mais do que o melhor rock and roll do mundo a Porto Alegre no histórico dia 7 de novembro de 2010. Com suas atitudes, escancarou para todos como é que se faz para ser realmente gente de primeira classe. “Muntcho oubrigadiu”, sir Paul. Tua linguagem realmente é universal. Espero que te entendam pelos mais variados rincões...
(Crônica publicada no jornal Informante, de Farroupilha, em 12/11/2010)

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

História de pescador

Brincar é fundamental para que as crianças treinem situações que vão pautar suas vidas adultas. Conforme os pedagogos, os jogos infantis preparam o caráter e instrumentalizam os pequenos a atuarem mais tarde como adultos aptos a enfrentar as dificuldades que vão aparecendo feito pedras no meio dos caminhos de suas existências. Assim, correr loucamente junto com os amiguinhos em torno da mesa dos doces da festa de aniversário da Aninha, que deveria ser mantida intacta até o momento de cantar os parabéns, é uma atividade que engendra de alguma forma a capacidade de futuros CEOs de multinacionais a tomarem as mais abrangentes decisões estratégicas um par de décadas mais tarde.
Muito cuidado, portanto, ao reprimir seus filhos (sobrinhos, afilhados, alunos) quando eles escalam os galhos mais finos do pinheirinho da esquina e balançam perigosamente lá em cima. Você pode estar represando o perfil arrojado de um futuro Eike Batista. Nunca se sabe até onde pode ir a importância de uma brincadeira de cabra-cega (ainda se brinca de cabra-cega?).
Eu, por exemplo... Quando é que iria imaginar que a habilidade que desenvolvi até os dez anos de idade, de conquistar pequenos prêmios nas “pescarias” de peixinhos de madeira enterrados na areia, em parques de diversões e festas comunitárias, iria me ser útil aos 44 anos de idade? Pois estávamos em família tomando chimarrão na sacada do apartamento de meu avô em Ijuí quando o chinelo do pé esquerdo de minha esposa, entontecido de tanto ser chacoalhado pelas pernas que ela cruzava enquanto impacientemente aguardava sua vez na roda do mate, despregou uma pirueta no ar e foi estatelar-se na laje do primeiro andar lá embaixo, aos olhos estupefatos de todos e longe do alcance dos braços de qualquer um. Destemido e criativo, não tive dúvidas: peguei um barbante, amarrei na ponta um gancho e pesquei o chinelo, para o aplauso dos familiares e os olhares renovadamente encantados de minha esposa.
Ponto para mim, para minha infância de pescador de quermesse e para todos aqueles que não reprimiram essa habilidade nata na criança que fui. Tudo é aprendizado, viu, Pedri... desça já daí, menino!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5/11/2010)

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Cadê a graça?

Percebo que o ser humano, assim como os veículos automotores, é composto por peças que possuem durações de vida diferentes entre si e algumas vão deixando de funcionar antes do que as outras, exigindo manutenção, substituição ou pura e simples conformidade por parte de seu proprietário. Acontece comigo, naturalmente. Dia desses percebemos, minha esposa e eu, que encerrou-se o prazo de validade do dispositivo que me permitia sentir cócegas e rir arrepiadamente, contorcendo-me em incontroláveis espasmos, ao toque suave de dedos doidos na planta dos pés, nas pernas ou embaixo dos braços. Constatamos, consternados, que estou desacocegado.
Assim como as zonas erógenas, o ser humano é composto por vastas áreas epidérmicas nas quais está suscetível às cócegas, aqui chamadas de zonas cocegógenas. Sempre as tive, em abundância, até porque minhas pernas são compridas e minhas patas tamanho 41 oferecem amplo latifúndio para a prática do coceguismo. Mas agora, de uma hora para outra, fiquei imune ao estímulo. Por mais que se tente, o toque que antes resultava em risos agora produz em mim a mais absoluta indiferença.
Preocupados com a possibilidade de que o furo fosse mais embaixo, e de que houvesse, na verdade, se extraviado a minha capacidade de rir, decidimos submeter-me a alguns testes. Minha esposa vasculhou na programação de tevê os horários dos principais programas de humor e me impôs uma rígida dieta de uma semana de doses cavalares frente ao aparelho, com a missão de anotar e contabilizar a frequência e a intensidade de meu riso. Foi pior. O histrionismo, o exagero e o mau gosto dos textos de todos os programas não só pouco estimularam meus músculos risais como, em efeito colateral, amplificaram minha dolorosa saudade de programas realmente criativos e bem-humorados de décadas passadas.
Para nosso consolo, atribuímos o segundo problema à incompetência da televisão, e não a meu suposto defeito recém-adquirido, uma vez que voltei a rir à larga relendo trechos do Dom Quixote, de livros do Ítalo Calvino, da coleção do Asterix e outras boas leituras. Alívio total, pois já andava achando que eu tinha perdido a graça.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29/10/2010)