segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

O cheiro da água

Meu afilhado, de quatro anos de idade (quase cinco), tem cheiro de água. Não sou eu quem está dizendo. Quem afirma é ele, convicto. E, frente a uma convicção, sempre é difícil rebater. Quando ele disse isso, precisei frear meu ímpeto de imediatamente cheirá-lo, até porque, estava dirigindo e não cabia, naquele momento, estacionar para efetivar a conferência olfativa. “Será que ele cheira a água”? Fiquei refletindo sobre o fenômeno enquanto enfrentava o trânsito e ele tergiversava ali atrás, no cadeirote. Felizmente, logo tratou de municiar-me com mais informações capazes de amenizar meu estranhamento e conduzir a bom termo meu entendimento sobre as coisas.
“Sim, dindo, eu tenho cheiro de água. Sempre que minha mãe passa protetor solar em mim, eu fico com cheiro de água. É por isso que os gatos não chegam perto de mim. Gatos não gostam de água, e eu tenho cheiro de água”. Aahh! Tudo sempre tem uma explicação, afinal de contas. Mas... E os cachorros? Fiquei preocupado com a questão dos cachorros, afinal, ver-se discriminado pelos gatos em função do cheiro, mesmo que seja de água, me pareceu bem grave, sendo crucial um paliativo zoológico urgente. “Os cachorros, só um pouquinho”. Uhm... Certo... Mas... “Só um pouquinho” o quê? (Convenhamos, sou um dindo muito lentinho, reconheço). “Os cachorros não gostam só um pouquinho, dindo”! Ah, tá! Ok! Entendido, captei.
Ter cheiro de água não deve ser uma condição muito corriqueira, especialmente aos quatro anos de idade, quase cinco. Ainda mais se, em função disso, gatos passem a não gostar de você e cachorros, só um pouquinho. Mas deve haver uma saída, um consolo. Ah! E os peixes? Peixes gostam de água! Os peixes, então, devem gostar de você e de seu cheiro de água! Silêncio no banco de trás. Ahá! Ele não havia pensado nisso! “Você gosta de peixes?”, pergunto. “Sim, gosto”. Resposta não muito entusiasmada. “De quais peixes”? Insisto. “Mariscos”, informa, distraído.
“Mariscos”? Opa, estamos entrando em terreno estranho. Evoquei o “gostar”, na questão dos peixes, pensando em afetividades, tipo as caninas e felinas, que estabelecemos com bichos de estimação. Mas a resposta me pareceu gastronômica. E nem imaginava que ele conhecesse a palavra “marisco” no alto de seus quatro anos de idade (tá, quase cinco). Será que já comeu mariscos? Eu já comi mariscos? Por que respondeu “mariscos”?

Assim não dá. Estaciono, espicho o corpo e grudo meu nariz no pescoço dele. Tem cheiro de afilhado de quase cinco anos de idade. Não sabia que água cheirava tão bem. Ligo a ignição. Em frente!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro" em 27 de fevereiro de 2017)

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

O desandar da maionese

“Cada um com a sua fissura”, como já dizia o Keith Richards. Eu, hoje, vou falar sobre a minha, com a licença da madama leitora e do cavalheiro leitor, que devem ter também as suas, mas quem sou eu para pedir que revelem, até porque isso aqui não é divã de psicanalista, mas tão-somente uma croniqueta de segunda (de segunda-feira, que fique claro e se evitem os mal-entendidos, que de mau entendedor já bastamos eu certos senadores que assinam coisas sem ler pela aí, né, madama minha?). Pois, como eu ia dizendo (e não ia, porque o texto não engrenou de primeira devido aos parêntesis e às intercalações que tanto caracterizam este prolixo escriba que certos alguéns gostariam de des-caracterizar pro-lixo, mas, avante!). Como eu ia dizendo, direi a partir do segundo parágrafo, se ainda houver audiência.
Então, as fissuras. A minha, é por maionese. Sou fissurado por maionese. Maionese que, no meu entender de descendente de alemães oriundo de Ijuí, deve ser traduzida por salada de batata. Minha fissura de verdade, então, é por aquilo que chamo (e como) como salada de batata e que por essas plagas serranas define-se (e come-se) como maionese. Para mim, maionese é apenas um dos ingredientes utilizados para compor as irresistíveis saldas de batata, nas quais se utiliza batatas, maionese e penduricalhos que lhe vão acrescentando sabor e fazendo a diferença, tipo pepinos, azeitonas, rodelas de ovo cozido, salsa picada, crem (como, madama? Crem não? Ah, então crem não se usa em tudo? Cronicando e aprendendo. Crem não, então). Mas, classifiquem como maionese ou salda de batata, não importa. Minha fissura emerge das entranhas de minha gula e eu ataco sem dó nem piedade.

Sou um potencial candidato a vitimar-me por salmonela, porque basta disponibilizarem, em qualquer boteco, um pratinho de maionese ali no canto da mesa que meu radar detecta e eu crau! Quero nem saber, foi! Sei lá, devem ter metido maionese na minha mamadeira quando eu era pequeno, para ter se entranhado em mim essa fissura tão essencial pelo prato. Questionei minha mãe, dia desses, a respeito, e ela ficou me olhando de lado, em silêncio. Esse olhar dela sem responder pode significar coisas. Um: que ela fez mesmo isso, mas não ousa revelar. Dois: que só eu mesmo para imaginar uma sandice dessas. Três: que apesar de ser uma sandice, ela de fato o fez, mas não vai revelar. Claro que já estou viajando na maionese. Mesmo sem ser senador, basta colocarem um prato de maionese na minha frente que eu assino qualquer coisa. Não votem em mim, que a maionese desanda!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul,em 20 de fevereiro de 2017)

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

O despertar do vindimeiro

Uma coisa é obter conhecimento sobre as nuances do mundo pela leitura de livros. Outra coisa é vivenciar uma experiência que proporcione o conhecimento antes apenas vislumbrado nas palavras impressas. O exposto confirma a antiga sabedoria helvética de que “uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa”. Também ilustra a relação dialética conhecida como “práxis”, pela qual a teoria orienta a prática que, quando posta em prática, aprimora e calibra a teoria, e assim por diante. Considerações que evocam à lembrança o símbolo do Tai Chi, aquele círculo dividido ao meio por uma linha serpenteada, um lado preto, outro branco, contendo em seus extremos bolinhas pretas e brancas, a branca no preto, a preta no branco, simbolizando o fato de todo o processo final conter em si a semente do novo processo que se inicia, permitindo-nos concluir que uma coisa pode não ser outra coisa, mas sempre remeterá a um vislumbre da coisa outra que ela ainda não é, mas que poderá virá a ser. Entende?
Pois é, filosofar por conta e risco, sem ajuda especializada, dá nisso: a mente vira um pião tresloucado batendo contra as paredes de um labirinto em Creta enquanto se busca a saída antes que o Minotauro nos agarre e solucione o jantar (o jantar dele, por suposto). Compartilho esses devaneios com a estimada leitora e o paciencioso leitor após ter vivenciado, em Uvanova, dia desses, a experiência da vindima. Para mim, nascido em urbanidades distantes nas quais acreditava-se que leite dava em saquinhos em prateleiras de supermercado e salame nascia em árvores, tive a oportunidade de meter a mão na massa (sentido figurado) e auxiliar no processo de transformação de uva em vinho.
Até então conhecedor apenas da etapa final do ciclo vinífero (a arrancada da rolha e o verter do líquido perolado nos cálices), esfolei os dedos embaixo do parreiral cortando os cabinhos dos cachos que lotaram cestos de vime depois transportados para o porão da casa dos sogros. Lá, alcei ao topo de um escorregador de madeira as 37 cestas repletas de uvas que iam sendo mastigadas por um moedor pilotado pelo cunhado. O sumo disso era erguido em latão pelo irmão do sogro ao alto de um mastel onde se posicionava o próprio sogro, manuseando um coador, a fazer com que para dentro do mastel jorrasse somente o líquido das uvas que, em breve, magicamente virará vinho em nossas mesas.

Vinho que, dessa vez, ajudei a fazer, na prática. Entusiasmado, já anunciei que, ano que vem, quero ajudar a plantar e a colher a bela polenta. Por alguma razão, me sugeriram voltar aos livros...
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul,em 13 de fevereiro de 2017)

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Moedinhas no bolso

Não se trata de sparagnar (“poupar”, “economizar de forma avarenta”, cujo significado logo aprende, a partir do dialeto “talian”, todo imigrante moderno que venha habitar estas plagas serranas), mas, sim, de saber utilizar até o final a capacidade operativa que proporciona qualquer produto que se tenha adquirido com o soldi (“dinheiro”) advindo do fruto do seu lavoro (“trabalho”). Depois de alguns anos residindo em Uvanova, em Tapariu ou mesmo Vila Faconda, a gente descobre que há sabedoria no ditado dos antigos, ao alertarem que “qui sparagna el gato magna” (“quem economiza, o gato come”, em tradução livre e mescolada deste lavoroso cronista), admoestando aqueles que pensam que vão enriquecer mantendo a mão fechada a qualquer custo, sendo que, conforme as nonas (e as irmãs das nonas, que, para todos os efeitos, são as tias), da vida só se leva a vida que se levava e moeda em bolso de defunto não ilumina parede de caixão (essa inventei agora, ao sabor do entusiasmo). Mas, apesar disso, esbanjar desmesuradamente sempre foi, é, continua sendo e sempre será pecado. Certas as nonas.
Penso nisso sempre que chega ao fim um pote de xampu no banheiro. Reluto em aceitar o advento do esgotamento absoluto e irreversível do conteúdo daquele recipiente de artigo capilar. As informações na embalagem prometem 200 ml de produto. Mas, será que havia mesmo tudo isso ali dentro? E, se sim, consumi de fato tudo em meus a cada dia mais esparsos cabelos? Acabou? Morreu? Não mais xampu? Terei de abrir outro? Custo a acreditar. Destampo a embalagem e meto um pouco de água dentro, embaixo do chuveiro. Tampo com a mão, chacoalho com força para que a água lave as paredes do tubo e extraia os resquícios de xampu que nelas ainda se agarram. Ah, varda só (“olha só”, um híbrido ítalo-brasileiro), ainda rende mais uma ensaboada. Alora (“então”), mãos à obra, ainda consigo mais uma lavada. Afinal, salame não dá em árvore, como descobriram já na chegada os primeiros imigrantes que vieram para cá com o sonho de conquistar a cucagna (“fortuna”) e acabaram dando de cara com banhados de pissacán (“pissacán” é pissacán mesmo, lamento).

Não quero sparagnar, mas também me recuso a esbanjar. É por isso que bebo até a última gota da garrafa aberta de espumante, mastigo até a última migalha do pão assado na palha, chupo a casquinha do pistache (onde reside a maravilha do sabor) antes de colocar fora. Ah, e levo sempre umas moedas no bolso. Pois vai que brilhem no caixão. Afinal, o seguro morreu de velho. Morreu, como todos, é verdade. Mas de velho.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro" em 6 de fevereiro de 2017)