sexta-feira, 29 de julho de 2016

Nem as órbitas são eternas

O dia de hoje marca um choque astronômico de que fui vítima, exatos 11 anos atrás, e do qual ainda tento me recompor. O 29 de julho de 2005 entrou para a história da humanidade quando astrônomos internacionais anunciaram que, a partir daquele momento, Plutão perdia seu status de planeta e estava sendo rebaixado à categoria de planeta-anão. “Ah, não!”, exclamei, do sofá da sala de casa. Fiquei astronomicamente chocado com a perda de um planeta no Sistema Solar e tento me recuperar disso até hoje. Até ontem, na verdade, quando obtive mais informações a respeito do caso.
Vamos por partes, como sempre me aconselha um amigo londrino. Desde menininho, lá em minha distante Ijuí natal, eu sabia de cor citar os nove planetas do Sistema Solar, e ainda por ordem de proximidade do Sol: Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e Plutão. Sempre com a cabeça metida a rodopiar no mundo da lua, sabia detalhes sobre as características de cada planeta e conseguia, com a ajuda do pai e do avô materno, identificar as majestosas presenças de alguns deles nos céus estrelados da infância. Os nove planetas me eram sagrados e o desbancamento de Plutão mexeu com as estruturas do firmamento de minhas certezas celestes, em 2005. Nada é certo e seguro nessa vida, nesse mundo; nem mesmo no espaço sideral. A qualquer momento, seu status pode ser chacoalhado e cair por terra (ou ficar flutuando pateticamente em órbita mesmo).
Ontem, lendo pela aí, fiquei sabendo que, na verdade, em 2005, os astrônomos descobriram a existência de um outro corpo celeste orbitando o Sol, adiante de Plutão. Acharam que era um novo planeta, o décimo do Sistema Solar, e batizaram-no de Éris. Afoitos, anunciaram ao mundo o aumento da família de planetas de nove para dez. Pouco depois, pesquisando melhor, descobriram que Éris tinha características diferentes dos demais planetas do Sistema e aí criaram uma nova categoria, a de planeta-anão, para enquadrá-lo. E, nessa, perceberam que teriam de incluir também Plutão, o que lhe custou o status de planeta.

Resumo e moral da história: durante muito tempo, Plutão, um planeta-anão, passou vendendo a imagem de planeta, que ele não era. Bastou a tecnologia avançar e detectar, à sombra dele, Éris, feito à sua imagem e semelhança de planeta-anão, para que Plutão fosse desmascarado. Ou seja: farsas não duram para sempre; um dia, a máscara cai e a samambaia aparece. Quem vende aquilo que não é precisa tomar cuidado com a sombra de Éris, aliás, a deusa mitológica da discórdia. E daí, a farsa vai para o espaço.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de julho de 2016)

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Mais chuva e menos gritos

Faça de conta que você é candidata (ou candidato) a Miss Alguma Coisa. Vamos lá, você consegue, trata-se apenas de um exercício de imaginação. Não importa se você é leitor ou leitora, tampouco se acredita já ter passado da idade de se candidatar a Miss Qualquer Coisa Que Não Seja Colecionador de Velinhas de Aniversário (eu disse “velinhas”, sem “h” no meio, madama, leia de novo). O que importa é o exercício em si. Venha comigo, farei companhia nesse jogo mental.
Somos, então, candidatos a Miss Qualquer Coisa, combinado? Ok. Não, o senhor não precisa trancar a respiração e encolher a barriga, vamos pular a parte dos desfiles de maiô, fique tranquilo. Ah, a madama já estava toda faceira, né? Mas não, madama, lamento, passaremos direto à fase das perguntas e respostas, porque, como sabemos, hoje em dia, nesses concursos, a parte intelectual das candidatas conta muito, e é aí que quero chegar nesta mundana de hoje. Preparados? Vamos lá.
Teremos de responder a duas perguntas. Lá vai a primeira: qual o som de que você mais gosta? Precisa responder assim, na lata, porque uma Miss Alguma Coisa necessita provar capacidade de raciocínio rápido e convicção de ideias. Então? Qual o som de que você mais gosta? Ah, eu sabia: o barulhinho da chuva! Ótimo, estamos indo bem (respondi a mesma coisa), a faixa começa a se aproximar de nossos peitos. Agora, vamos ao desempate. A segunda pergunta. Qual o barulho que você mais detesta? Difícil essa, né, madama? Ei, amigo candidato, não esqueci de você, apesar de tê-lo livrado do maiô. Responda lá! Qual? Rápido, seja um Miss Talentoso! Qual a resposta? Gritos! Sim, o som que você mais odeia é o de gritos! Respondi a mesma coisa, novamente!
Pois é isso, madama miss leitora, cavalheiro miss leitor... As respostas certas a essas duas perguntas são “chuva” e “gritos”. Ao menos, é o que pude concluir ao assistir, noite dessas, pela televisão, à transmissão de um disputado certame dessa natureza, em que as candidatas me surpreenderam com o teor de suas respostas. Das dez finalistas, dez responderam dessa maneira às duas perguntas. Eram as respostas certas, pelo visto, e, a julgar pela unanimidade, uma deve ter colado da outra, só pode. Tive pena foi dos jurados. O desempate precisou ser decidido por meio da avaliação das polegadas a mais ou a menos acomodadas dentro (e fora) dos maiôs.

Quem ganhou, eu não sei, porque, após a prova intelectual, desliguei a tevê e fui me preparar para concorrer. Afinal, possuo os pré-requisitos básicos: adoro chuva e odeio gritos. Como todas as misses.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de julho de 2016)

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Onde está o pulo do gato

“Amor, me ame mesmo. Você sabe que eu amo você. Eu sempre serei sincero, então, por favor, me ame mesmo”. Essa é uma. Outra é assim: “”Enquanto eu escrevo esta carta, envio meu amor para você. Lembre-se que eu sempre estarei apaixonado por você”. Tem ainda uma assim: “Vamos lá, vamos lá, por favor, agrade-me como eu agrado a você”. Em tradução livre por conta deste cronista mundano, são assim, em essência, as letras dos três primeiros sucessos que os Beatles compuseram e lançaram nos anos de 1962 e 1963 (por ordem de citação: “Love me do”, “P.S. I love you” e “Please, please me”), lançando as bases para o surgimento da mais importante banda de rock de todos os tempos.
Olhando em retrospecto, é interessante detectar a superficialidade das letras das primeiras canções criadas pela dupla Lennon/McCartney, que integram as faixas dos dois primeiros álbuns da banda (“Please, please me” e “With the Beatles”, ambos de 1963), em contraposição com a complexidade que eles logo alcançaram poucos anos depois, resultando em dezenas de pérolas como “Something” (esta de George Harrison), “Penny Lane”, “I am the Walrus”, “A day in the life” “The fool on the hill” e tantas outras. O que se fica pensando é: onde está o pulo do gato? O que aconteceu para eles se transformarem de repente em bons compositores? Qual foi a mágica? Às vezes, surgem algumas pistas, e o que vou relatar a seguir pode ser uma delas.
Ainda nos primórdios da carreira, no início de 1963, após lançarem como singles as três canções singelas que citei na abertura, os Beatles criaram “From me to you”, composta pela dupla Paul McCartney/John Lennon. A composição não avança muito além do que vinham fazendo até então, porém, dessa vez, havia uma história sendo contada, um enredo com começo, meio e fim, e John e Paul ficaram orgulhosos dela, considerando-a um avanço (o que de fato era, em relação a eles próprios). No entanto, a recepção da imprensa e da crítica não foi tão calorosa assim e um jornal londrino chegou a classificar a música como “abaixo da média”. Isso gerou frustração e raiva na banda, porém, a partir dali, os Beatles começaram a melhorar cada vez mais. O que houve?

Anos depois, em entrevistas, John Lennon, referindo-se ao fato, revelou que, a partir daquilo, ele se deu conta, pela primeira vez, “de que você tem de melhorar sempre”. E foi o que fizeram, transformando em mantra característico da banda a busca incessante pela excelência. A mágica foi essa: tomada de consciência interior e opção pelo esforço árduo. O sucesso não chove no colo de ninguém.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de julho de 2016)

terça-feira, 26 de julho de 2016

O azar de amar Nastenka


A história é pungente e me chegou ao conhecimento narrada por um amigo, a quem chamo Fiódor. Por que classifico a narrativa como “pungente”? Ora, porque, conforme ensinam os dicionários, ela causa “uma impressão muito viva e dolorosa”. Trata-se de uma história de amor. De amor não correspondido. Uma história de amor não correspondido, ainda mais quando bem narrada, tem o poder de plantar em nosso íntimo uma impressão viva e dolorosa. Portanto, pungente. Mas o que mais marca o conto é a frase com que meu amigo encerra a narrativa, intitulada “Noites Brancas”. Chegaremos a ela.

A ação se passa em meados do século 19, na cidade russa de São Petesburgo. O protagonista, cujo nome Fiódor não nos revela, é um jovem sonhador de poucos recursos que luta pela sobrevivência enquanto idealiza um amor que nunca lhe aparece. Certo dia, depara na rua com uma bela moça a caminhar desatinada, visivelmente abalada por algum motivo, desnorteada, a chorar. Ele se aproxima, aborda-a, oferece um amparo que prontamente é aceito pela fragilizada desconhecida. É o que basta para o início de uma conversação que logo se transforma em forte amizade, com ambos trocando confidências e compartilhando suas histórias de vida.

A bela e chorosa moça se chama Nastenka. Ela está sofrendo de amor porque há um ano espera pelo retorno de seu noivo, que fora a Moscou fazer fortuna e lhe prometera retornar naqueles dias, procurá-la e casar com ela. Ela esperou pacientemente pelo prometido. Porém, agora, sabe que ele está na cidade há três dias, mas não a procura. Terá casado com outra? Esqueceu-a? Abandonou-a? Não a ama mais? Oh, como sofre Nastenka! O rapaz promete ajudá-la. Levará carta dela ao amante desleixado e aguardará resposta. Em meio a essas tratativas, o inevitável acontece: ele mesmo se apaixona por Nastenka, cujo coração é de outro. Ao final, como o noivo poltrão não aparece, ela chora nos braços de nosso enamorado protagonista, que lhe revela seu amor por ela.

Nastenka, então, entrega o coração a seu jovem protetor, já que nada mais lhe resta. Ele vibra. Casará com ela! Será feliz! Já o é, neste preciso instante! No entanto, em meio à comoção, o tal noivo, enfim, surge, e Nastenka, com um grito de emoção, se desprende dos braços do protagonista e desaparece nas brumas com o antigo amado. Decepção! Horror! Tristeza! Mas o moço consegue encontrar consolo em suas próprias palavras, com as quais meu amigo Fiódor Dostoievsky encerra o conto: “Meu Deus! Um instante de completa felicidade, não basta já para uma vida inteira?”. Boa pergunta...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de julho de 2016)

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Um dia fora do tempo

A gente vai envelhecendo a aprendendo, não é assim que as coisas são, madama? Como? “Envelhecendo, quem”? Eu, madama, eu! Calma! Estou me referindo a mim mesmo, abaixe essa sombrinha! Estava apenas tentando encontrar na senhora uma interlocutora para um início de tetxo mais filosófico, para passar a impressão de que, apesar de reconhecidamente mundano, o cronista aqui também cultiva lá seus momentos de reflexão profunda sobre as nuances da vida e deseja compartilhar o fruto de suas observações. Pois veja bem.
Compartilho então com a madama minha surpresa ao descobrir, a partir de meandros indecifráveis pelos quais as mais estapafúrdias informações me chegam, que hoje, 25 de julho, é o Dia Fora do Tempo, conforme o Calendário Maia. A senhora sabia disso? Não? Tampouco eu, madama, mas, mesmo assim, tenho o prazer de, pela primeira vez em minha decana vida, desejar a alguém um feliz Dia Fora do Tempo, e desejo-o à senhora, madama! Não, madama, não desejo a senhora; é “à senhora”, com crase. Mas vamos adiante, senão, essa crônica afunda no atoleiro dos mal-entendidos e não temos tempo nem espaço para firulas, mesmo estando a vivenciar este inusitado Dia Fora do Tempo maia.
Apresso-me e explico, pois que já vislumbro o fim do texto logo abaixo. Os maias habitaram, séculos atrás, áreas da Colômbia e de outros países da América Latina, gerando uma civilização adiantada em vários aspectos, entre eles, a astronomia, criando calendários precisos de medição da passagem do tempo. O ano solar maia era medido pelas fases da lua, dividido em 13 ciclos lunares de 28 dias, o que perfazia 364 dias. Era necessário mais um para fechar os sabidos 365 e esse dia era conhecido como o Dia Fora do Tempo. A transposição do calendário maia para o calendário gregoriano utilizado pelos europeus colonizadores das Américas (e que usamos até hoje) fez com que esse dia especial coincidisse com o nosso 25 de julho. Hoje!

Qual o significado desse dia? Os maias consideravam o Dia Fora do Tempo como um convite para refletir sobre a existência das coisas, do universo e de si mesmo frente à vida. Dia dedicado a reciclar propósitos, pensamentos, decisões. Dia para a meditação pessoal, para deixar de lado um pouco o correr inexorável do tempo e vivenciar uma experiência fora dele. Difícil fazermos isso imersos nas demandas de uma sociedade moderna que vive a era da informação, da correria, da falta de tempo. Mas não custa tentar parar a ampulheta uma horinha que seja, em homenagem à sabedoria dos antigos maias. Tempo é bem mais do que dinheiro.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de julho de 2016)

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Em Plutão, crem não há

Depois do sagu, que andam querendo pela aí que eu deguste quente, recém saído da panela e tirado de cima da chapa do fogão a lenha para os potinhos de sobremesa, coisa que resisto em fazer porque venho de Plutão (que alguns afirmam não ser nem planeta) e prefiro comê-lo gelado (heresia gustativa imperdoável aos olhos de uvanovenses e arredores), agora querem que eu me deixe seduzir pelos encantos do crem. “Querem”, nesse caso, refere-se às intenções da senhora minha esposa, notória apreciadora dessa especiaria típica dessas plagas serranas e que tanto foge aos limites de meus sabidamente curtos poderes de compreensão.
Que é o crem? De onde vem? Onde nasce? Crem o produz? Por que comê-lo? Como comê-lo? Quando? Com crem? Com o quê? A qualquer hora do dia? Faz mal antes de dormir? Possui poderes curativos e/ou preventivos? Surgiu antes ou depois do sagu quente? Quem não come crem, é ruim da cabeça e bom sujeito não é? Não sou um bom sujeito? Sim, porque, além de evitar sagu quente, ainda por cima eu também não como crem! Torço o nariz sempre que a senhora minha esposa brilha os olhinhos ao espichar uma colherada de crem sobre um (até então) lindo e saboroso naco de churrasco. Também diz ser um ótimo acompanhante para sopas, caldos e cremes. Afirma que deixa delicioso tanto um prato de sopa de agnoline quanto um de capeletti.
Sempre que pode, ela surge (nem imagino de onde) com um pote entupido até a boca com crem, que guardará na geladeira e devorará todo sozinha, apesar dos insistentes apelos para que eu a acompanhe nessa orgia de sabores que afirma apreciar. Ah, pobre cavaleira solitária empunhando bandeira vencida contra as paredes do velho e tosco moinho de vento. O velho e tosco moinho de vento, no caso, sou eu, madama, como a senhora muito bem já percebeu. Pois que não adianta, não como crem. Não como, mesmo sabendo que trata-se de uma espécie de raiz forte, um tubérculo tipo mandioca, que é ralado e imerso em vinagre para conservação. Mesmo assim, não como.

Alguém, eu sei, vai me perguntar se pelo menos alguma vez eu já experimentei o crem. E responderei que já, sim, mas consegui me desamarrar logo depois e escapei antes que viessem com a sobremesa de sagu quente. E não é que eu seja chato e manhoso para comer, não, senhora. Sou, sim, chato e manhoso, é verdade, mas jamais para comer, pois que de bom grado e de estômago aberto já adotei a carne lessa, o pien, o struffoli, a polenta com queijo, a fortaia, o pissacán e tantas outras iguarias. Mas preciso manter sempre um pé em Plutão. Assim sendo, crem, não!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de julho de 2016)

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Sorriam, pés, lá vai a foto!

Sempre que navego por perfis alheios nas redes sociais, eu me lembro de Horácio. Sabe o Horácio, madama? Hein? A senhora diz aquele bichinho verde e cabeçudo criado por Mauricio de Sousa, nos gibis da Turma da Mônica? O bichinho é um dinossauro, madama, mas não, não é esse o Horácio a que me refiro. Falo do Horácio amigo de Hamlet, personagens criados por William Shakespeare na peça teatral afamada, da qual algumas pérolas singram firmes os mares do tempo e permanecem significativas até hoje, como “ser ou não ser: eis a questão”, “há algo de podre no reino da Dinamarca” e outras.
Entre as outras, salta-me à mente, sempre que navego por perfis alheios nas redes sociais, uma frase que Hamlet dirige a Horácio na Cena 5 do primeiro ato da peça: “há mais coisas entre o céu e a terra do que julga nossa vã filosofia, Horácio!”. Por meio da fala inspirada, Hamlet compartilha com o amigo a sua estupefação frente às coisas do mundo que escapam à nossa mais afinada capacidade de tentativa de compreensão. Não tenho, a exemplo de Hamlet, nenhum amigo chamado Horácio a quem eu possa invocar nesses momentos de estupefação, portanto, evoco o Horácio de papel mesmo sempre que minha vã filosofia se vê pequena diante das coisas que vejo nas redes sociais.
Selfies de pés, por exemplo. Depois das selfies de si mesmos (e viva o pleonasmo!), dos rostos sorridentes se sobrepondo a cartões-postais famosos como a Torre Eiffel, Machu Picchu, o Monumento ao Imigrante etc, o terceiro posto no ranking das fotos mais repetidas nas redes sociais é ocupado pelas selfies dos próprios pés dos internautas. As pessoas tiram férias, assentam-se à beira-mar ou à borda da piscina e pimba! Tascam uma foto de seus pés observando o mar, refletindo sobre suas vidas pedais deitados em uma esteira, olhando o movimento, essas coisas que pés fazem quando não estão pisando. São as “pesfies”. Antes delas, grassam nas redes sociais as selfies de espelho, resultantes do impulso que as pessoas cultivam de fotografar a si mesmas e nas quais o que realmente se sobressai é o aparelho celular ofuscando o rosto do (da) vivente, dando a impressão de existirem celulares andantes providos de corpo e pernas (móveis, de fato). São as “celularfies”.

Selfies, celularfies e pesfies infestam os perfis das redes sociais, Horácio, atordoando nossas filosofias, por mais vãs que elas sejam. “Ó, tempos! Ó costumes”, já dizia Cícero em Roma, tão aparvalhado quanto Hamlet, Horácio e eu, frente ao que não entendia ao seu redor. Ao menos, sinto-me bem acompanhado em minha estultícia.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de julho de 2016)

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Páginas com poder de vício


Compartilho com grande parte da humanidade essa mania – que poderia ser esquisita, mas não o é devido à incidência – de passar a vida escutando infinitas vezes aquelas músicas de que mais gosto. Não me canso de ouvir certas canções dos Beatles, dos Rolling Stones e de outros tão cotados quanto eles no rol das minhas preferências musicais e levo os CDs para o carro a fim de que essas já decoradas e batidas melodias me acompanhem em viagens, ou aumento o som do rádio quando deparo com uma delas ofertada pela generosidade do programador musical da emissora, ou levanto da cama pela manhã deliciosamente assombrado por outra delas e vou fazê-la tocar de imediato no aparelho de som da sala. Nisso, assemelho-me ao geral das gentes e sinto-me humano.

Os estranhamentos aparecem quando percebo que estou a exercitar o mesmo pendor do vício da repetição exaustiva em outra área das artes: a literatura. Cada vez mais, gosto de revisitar periodicamente textos que considero saborosos, ou geniais, ou pungentes, ou líricos, ou marcantes, ou apenas divertidos e deliciosos. Na conta desses últimos (os divertidos e deliciosos), enquadro já faz tempo uma crônica de Rubem Braga (1913 – 1990), escrita em meados da década de 1950, intitulada “Meu ideal seria escrever”. Nesse texto, em que o autor esbanja seus sobrenaturais poderes de criação poética e abordagem lírica do mundo, ele confessa ao leitor o desejo íntimo de um dia conseguir escrever uma história que fosse muito engraçada e levasse alegria aos corações das pessoas que a lessem, iluminando assim, ao longo dos fugazes instantes da leitura, o mundo das gentes ao menos um pouquinho.

“Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse – ‘ai meu Deus, que história mais engraçada!’”. Leio e releio essa pérola de texto há anos e sempre renovo meu prazer de saborear as linhas do mestre dos cronistas brasileiros. Mas esses dias, no sofá da sala de casa, fui tomado por um incontrolável acesso de riso ao ler uma crônica de Fernando Sabino (1923- 2004), intitulada “As coisinhas do poeta”. Ri à larga com as desventuras do ébrio personagem no velório de um primo (felizmente, me encontrava na discrição da intimidade de meu lar e não em público) e imaginei que aquela, sim, poderia ter sido a tal da “crônica muito engraçada” que o Braga gostaria de ter escrito. Sabino o fez, na década de 1960. E eu ganho mais um texto para alimentar a sequência desse meu vício.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de julho de 2016)

terça-feira, 19 de julho de 2016

Sorriso não revela intenção

Quem vê cara não vê coração, reza o surrado ditado. E ditados, quanto mais surrados, parece que mais revigorados se põem, repletos de sabedoria e significância para as pequenezas e também para as grandezas de nossas vidas cotidianas. Eu, mundano cronista que tem como pretensão secreta (agora revelada devido aos anseios irrefreáveis da vaidade) fundar ditados novos e assim conquistar meu lugar na posteridade entre os grandes ditadores, quer dizer, entre os grandes inventores de ditados, ponho-me aqui a criar e ofertar mais um ao julgamento dos leitores: quem vê sorriso não vê intenção.
Hein? Não entendeu direito, madama? Ok, explico-me, afinal, é compreensível o mundano cronista retornar de férias ligeiramente desconectado da sutil teia de compreensão mútua que já havia estabelecido com sua legião de leitores, acostumados a descortinar as significâncias residentes nas entrelinhas de sua autoria. Assim, explico-me. “Quem vê sorriso não vê intenção”. As aspas surgem aqui já na intenção de consolidar o dístico como voz corrente, apesar de ser de minha autoria, mas “tudo é questão de marketing e estratégia” e eis que acabo de criar outro (estou prolífico hoje, não perdi de todo a mão e nem o mundanismo).
Mas o sorriso e a intenção. Digo-o assim porque a senhora minha esposa (zeladora de minha imagem) costuma sugerir que eu abra a boca e mostre os dentes sempre que poso para alguma fotografia. Diz-me ela isso porque tenho a mania de sorrir de boca fechada. Meu sorriso é de dentes para dentro porque não consigo manter durante muito tempo a boca aberta a exibir os dentões da frente, pois que sinto-me como se fosse um coelho farejando cenoura. Sinto-me (e pareço) artificial com os dentes à mostra no sorriso de fotos posadas, portanto, sorrio de dente pra dentro, espicho para os lados os cantos da boca, forçando o surgimento de pequenas rugas nos cantos dos olhos e projeto para a frente o grosso lábio inferior a formar um biquinho. Estranho, sim, mas menos estranho do que meus sorrisos dentuços.

Sorrio assim, desajeitado mas verdadeiro, porque estou feliz e meus olhos sorriem em sintonia com minha alma. Afinal, quem vê meu sorriso pode não estar vendo minha intenção. Daí a criação do novo dito, a servir de legenda implícita para essa espécie de sorriso introvertido que porto, e sei que não sou o único. A verdade, madama, é que o valor do sorriso reside na luz com que ele envolve seu dono, sem importar se sorri com dente pra fora ou dente pra dentro. “O valor do sorriso está na sua luz”. Ahá, eis o ditado! Sorrio e registro!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de julho de 2016)

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Gatos não são todos pardos

Quem tem ou já teve gatos está careca de saber que cada gato é um gato. Eu já tive gatos e estou careca de saber disso (careca também devido à queda capilar decorrente do avançar da idade, só que isso já é outra história, né, madama, restrinjamo-nos hoje aqui à questão dos gatos, para que ninguém saia escaldado). Quem diz que os gatos são todos iguais, evocando a insensata frase “todos os gatos, o gato”, é porque nunca vivenciou a experiência transformadora de ter em sua companhia mais de um felino (ao mesmo tempo ou sucessivamente, tanto faz), o que basta para desmantelar o tolo tabu e comprovar que nem todos os gatos são pardos à noite, se é que a madama saca a tentativa de metáfora do mundano cronista aqui. Ah, a senhora também é gateira e concorda comigo? Que bom, madama, gatemos algo em comum.
Pois então a senhora e eu podemos afirmar com segurança aos demais leitores (já que hoje a senhora está irmanada a mim na delicada tarefa de convencer os demais vigilantes destas diárias mal digitadas linhas a respeito das proposições nelas explicitadas, exceto quando se trata de abordar a temperatura ideal de servir e consumir o sagu, o que também é outra história e já deu suficiente guardanapo para manga aqui nesse espaço, e deixemos disso, pelamordedeus) aos demais leitores que os gatos não são todos iguais: cada um deles possui nuances de comportamento, de gostos e quereres que os difere entre si e lhes confere características únicas de personalidade. É por isso que batizamos nossos gatos com nomes diferentes, porque um Rodilardo é diferente de um Fips, que em nada se compara a um Pretinho ou a um Tigrinho, diametralmente opostos a uma Selina, a uma Lucy, a um Bioy. Cada gato, um gato.

Mas e qual é a explicação para esse fenômeno tão característico e determinante dos seres que integram essa espécie felina? Ora, sou apenas um mundano cronista, nada sei de psicologia gatina, apenas, ao longo dos anos, vivenciei, em vários momentos, o privilégio de ter em meu cotidiano a companhia de alguns exemplares da espécie. A partir disso, teci minha teoria, que reside no seguinte: os gatos possuem vida interior. Os gatos pensam sobre eles mesmos e sobre o mundo que os cerca. Desse acúmulo sucessivo de sensações, de experiências e de vivências, junto ao hábito de refletir sobre elas, eles vão tirando as suas conclusões e isso vai moldando em cada um deles uma personalidade única, especial, irrepetível. Gatos não são boiada. Não vão para o brejo seguindo a manda. Cada gato é um gato. Para alguns de nós, eles piscam o olho.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de julho de 2016)

sexta-feira, 1 de julho de 2016

E nos bufês, o sagu é frio

Não, eu não sou masoquista e não, eu não sou apreciador de ficar levando paulada (nem literal e nem metaforicamente). Mas sou teimoso. E é movido pela mais pura e genuína teimosia que insisto em voltar a abordar aqui nestas mal digitadas linhas a questão (até então inimaginavelmente polêmica) da temperatura ideal para se degustar um bom sagu. Como estou entrando em férias e só volto daqui a duas semanas, trago de novo à tona a batata quente e desapareço pela porta dos fundos, porque já vi que, em terras serranas, forasteiro se meter a desautorizar a temperatura ideal do sagu é mexer em vespeiro sem botar máscara, é entrar no canil com gato no bolso, é puxar a trança da menina sem planejar a rota de fuga.
Podem me xingar, que só vou ficar sabendo na volta, quando o sagu já tiver esfriado e se apresentar bem geladinho, pronto para ser degustado como se deve: frio, gelado, e tenho dito! Sustentei ao longo de duas crônicas passadas meu espanto ao descobrir que, aqui pela Serra, essa terra que me adotou e que admiro com verdadeira paixão, os nativos preferem saborear essa delícia típica, o sagu, em temperaturas que transitam do morno ao quente, chegando, em alguns casos, ao extremo do quentérrimo fumegante. Coisa que muito me causa impressão, pois que, conhecedor que sou de sagu desde a mais tenra infância, prefiro consumi-lo frio, gelado, quase ao ponto de picolé. Abriu-se, então, uma polêmica que o mundano cronista jamais sonhara estar latente, quente como uma tigela de sagu. Fiquei praticamente sozinho em meu gosto, aqui tão alienígena, perdendo de lavada para os adoradores do sagu quente e sendo visto como um ser mais estapafúrdio do que realmente sou.

Teimoso, não me resignei tão fácil ao senso imperante e fui investigar, pois que aqui nesta alma reside também um repórter investigativo. Telefonei para 20 restaurantes da cidade: dez que servem comida a quilo, cinco galeterias e cinco churrascarias. Em todos eles, a sobremesa está incluída. Todos servem sagu no bufê de sobremesas, porque é uma das preferidas dos clientes. E servem o sagu de que forma? Frio! Frio!! Frio!!! Sempre frio! Nenhum estabelecimento gastronômico na cidade serve sagu quente nos seus bufês de sobremesa. Não há réchaud mantendo o sagu aquecido, como se faz com as comidas. O que obriga, então, todos os apreciadores de sagu quente a comerem-no devidamente frio nos restaurantes, ou a torcerem-lhe os narizes e passarem reto rumo ao pudim de gelatina. Quero ver agora o que me dizem. Mas só na volta. Ah, se já esfriou, me passa o sagu. E me fui!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de julho de 2016)