domingo, 29 de maio de 2011

Versado em tocar almas





(No alto, o cronista cronicando. Abaixo, o maestro maestrando)


(O jornal Pioneiro convidou a mim e à também colunista Maria Helena Balen – os dois mais recentes Patronos da Feira do Livro de Caxias do Sul – a passarem a manhã do feriado de Caravaggio, 26 de maio, acompanhando a romaria no Santuário em Farroupilha e produzindo uma crônica sobre o que mais chamasse a atenção de cada um. Meu material, publicado na edição de final de semana – 28/29 de maio -, é o que reproduzo abaixo. As fotos são de Juan Barbosa, fotógrafo do Pioneiro)



É sabido desde sempre que a música eleva a alma. O espírito fica mais leve quando cantamos, e não é por acaso que essa forma de manifestação figura em todas as religiões como um canal para louvar e comunicar-se com o divino, quase no mesmo patamar da oração e da meditação. O poder da fé que eu presenciei no Santuário de Nossa Senhora de Caravaggio na manhã da última quinta-feira, durante o feriado dedicado à santa, me emocionou justamente por meio da musicalidade que arrebatava a incontável multidão de fiéis que ignoravam o desassossego do tempo para acompanhar a missa celebrada pelo bispo dom Paulo Moretto.
No altar montado ao ar livre defronte ao santuário, grudei meus olhos no coro de quase 40 pessoas posicionadas ao fundo, atrás do bispo e dos sacerdotes que desenvolviam os ritos eucarísticos. Delas emanavam as vozes puxando os cânticos que em seguida eram acompanhados pelos romeiros, inexplicavelmente renovados no fôlego após a longa caminhada de vários quilômetros que grande parte fez ao longo da manhã para unirem-se ali naquele momento devocional. O canto coral é uma manifestação artística que evoca em mim lembranças remotas, dos tempos em que meu pai e meus tios integravam o Coral Municipal de Ijuí, minha cidade natal, e eu, com seis, sete anos de idade, era levado para acompanhar os ensaios nos sábados à tarde. Desde então, conjuntos de vozes humanas cantando sempre me causam uma emoção telúrica incontrolável, remetendo-me aos primórdios de minha própria existência.
Mergulhava eu na fruição desse meu estado particular de graça ali em Caravaggio, ouvindo as palavras do bispo Dom Paulo, quando deparei com uma surpresa. O homem de cabelos grisalhos que esgrimia o ar com gestos bailados, a comandar o andamento do coro, ao virar-se para a plateia, revelou ser ninguém menos do que o mastro Alcides Verza, o mesmo que, quase 40 anos atrás, regia o Coral Municipal de Ijuí, em minha cada vez mais distante infância. Alcides Verza me persegue. Na verdade, quem me persegue é a obra de Alcides Verza. Sou perseguido para o resto de minha vida pelo poder de emocionar a alma que Alcides Verza plantou no barro mais profundo de minha alma, com a regência que faz de vozes humanas, um dos dons divinos que mais me extasiam.
Verza, a pedido do padre Volmir Comparin, Reitor do Santuário, criou o Coral do Santuário de Caravaggio em outubro de 2007, justamente o coro que ele regia ali, na manhã da última quinta-feira. Para a ocasião da missa rezada pelo bispo, o maestro elaborou um repertório de canções que pudessem ser acompanhadas facilmente pelos fiéis, irmanando-os no canto. “Ensaiamos apenas duas vezes antes, pois são cantores muito qualificados. Foi um momento histórico, de muita emoção, em um dos últimos atos oficiais do bispo”, revelou-me mais tarde o maestro, em um agradável reencontro. No currículo, o Coral de Caravaggio já possui um CD gravado (em 2008) e agora prepara outro para as celebrações dos 50 anos do atual santuário, previstas para 2013.
Eu também amansei minha alma naquela manhã de fé em Caravaggio. Mais uma vez, por meio da música. De novo, por herança do Verza. Nunca sabemos o alcance de nossos atos e de nossas obras. Mas não tem dúvida: há algo de divino nisso.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Liberdade linguistica

Agora tô feliz. A melhor notícia que apareceu nos últimos dia nas televisão, nos jornal e nas rádia foi essa de que não tem mais que se preocupar em escrever certo e nem em falar certo, porque tá tudo liberado, desde que o Ministério das Educação aprovou e tá distribuindo uns livro didático dizendo que não pode ter discriminação linguística e que cada um pode se fazê entendê do jeito que bem entendê, entendeu? Mas que maravilha! Isso é que é país das liberdade, salve, salve! Temo agora até liberdade de expressão total. Isso sim é que é liberdade de expressão, pois não?
Já faz tempo que temo liberdade em outras área, só tava faltando na de expressão mesmo. Tipo que isso de liberdade é esse conceito, né: cada um fazê como bem entendê. Pois que no trânsito já temo liberdade faz tempo, cada um faz o que qué. Na segurança também, cada um faz o que bem entende. Nas política, então, nem se fala, temo liberdade faz um tempãozão. Só faltava mesmo nisso das escrita e das falança. Agora, cada um se faz entendê nem que seja no socão. Uita, beleza de liberdade!
Nem sei por que motivo ficaram tantos ano queimando pestana fazendo reforma tortográfica, e tanto tempo perdido nas escola torturando nóis com analise sintática, e concordâncias nominal, e concordância verbals, nas qual eu sempre levava bomba. Pra que, se depois tanto faiz quanto feiz, e cada um pode agora, conforme o Ministério das Educação, escrevê e falá como bem entendê, causo contrário tá sofrendo preconceito linguístico? Eita, país bão, sô!
Melhor que agora o editor aí do jornal não precisa ficar tacando a mão nos meus texto, sob pena de estar insfringilindo a lei, e fazendo as discriminação linguística contra nós, os cronistos. Agora é assim; escreveu, leu, publiqueu. O mais melhor ainda de tudo é que nós fumo e vortemo e pensemo que tem ainda outra vantagi: a rapideiz que fica agora escrevê essas crônica do jeito que bem entende! É deiz minuto e tá escrita! Antes, precisava escrevê, e lê, e corregê, e lê de novo, e correge daqui e acorrege de lá. Agora, dá pra fazê crônica de roldão. Fica tudo mais fáciu.
Munto obrigado, seu ministro!!
(Crônica publicada no jornal Informante, de Farroupilha, em 27 de maio de 2011)

domingo, 22 de maio de 2011

Uma dica econômica

Vou ensinar-lhe um truque, leitor, que, se bem aprendido e aplicado, será capaz de produzir uma grande diferença (a seu favor) em seu orçamento doméstico ao final de cada mês. Basta observar com atenção os passos que indicarei a seguir. Decore as regras, mentalize-as e, se necessário, imprima o texto e leve-o consigo sempre que a ocasião o exigir, até que, devido à repetição, seu cérebro absorva as informações e as transforme em uma nova postura de vida.
Faça assim: primeiro, dirija-se da maneira usual (a pé, de ônibus, lotação, automóvel ou bicicleta – seria chique dizer metrô, porém, ainda estamos na Caxias do Sul do século 21, e infelizmente não somos mais íntimos de trilhos...) ao centro da cidade, ou ao Camelódromo, ou a algum shopping ou centro comercial de sua preferência. Faça tudo naturalmente, como sempre, sem alterar nenhum aspecto de sua rotina de cidadão e de consumidor.
Chegando ao destino (que fica à sua livre escolha), pegue suas mãos (“pegar as mãos”, aqui, é obviamente uma metáfora – ninguém “pega” as próprias mãos, trata-se apenas de um recurso de linguagem usado para incentivar uma atenção maior a essa parte de seu corpo) e encolha todos os dedos, transformando-as em punhos fechados. Siga caminhando por entre as lojas, as lancherias, os restaurantes e afins enquanto desenvolve os procedimentos aqui descritos. Pegue agora seus punhos (já aprendemos a conotação simbólica do verbo “pegar”, pois não?) e meta-os dentro dos bolsos das calças (isso se você estiver trajando calças; outra opção é enfiar os punhos cerrados cada um sob a axila transversa do lado oposto do corpo, como em um cruzar de braços).
Feito isso, circule livremente pelo tentador ambiente dos templos do consumo, entre vitrines repletas de liquidações, ofertas, novidades, saldos, financiamentos, prazos, descontos, sem jamais tirar para fora as mãos e os dedos, aprisionados na forma de punhos que, impossibilitados de alcançar a carteira com os cheques, os cartões de crédito e o dinheiro, se transformam em um verdadeiro “Personal Procon”, a melhor e mais segura forma de você, consumidor, conseguir proteção contra si mesmo. Fará diferença no final do mês.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de maio de 2011)

terça-feira, 17 de maio de 2011

Agora está na cara



“Bom dia, o que o senhor deseja?”, disparou por entre um largo sorriso a moça do balcão, assim que adentrei a loja. Travei na frente dela e fiquei girando a cabeça para a esquerda, para a direita e para trás, procurando com o olhar o suposto velhinho que deveria ter entrado no estabelecimento junto comigo e que, por uma questão de civilidade para com a terceira idade, recebia da funcionária a preferência das atenções. Porém, não havia ninguém ali além da atendente sorridente e eu. Era a mim mesmo, portanto, que ela dirigia não só o sorriso, mas especialmente o “bom dia” acompanhado do estapafúrdio “senhor”.
“Senhor, eu?”, espantei-me em pensamento, julgando, àquela altura de meus trinta anos, que tal forma de tratamento só deveria ser aplicada a pessoas com pelo menos uns 15 anos a mais do que eu. Certamente foi o mesmo pensamento que motivou a atendente, que não deveria ter mais do que 18 anos de idade e que, pelo exercício da mesma lógica, encontrava-se defronte a um já provecto cliente: minha pessoa. O fato deu-se há cerca de 15 anos, e não foi o primeiro a marcar (para não dizer traumatizar) as consequências inadministráveis da passagem dos anos sobre meu ser. O primeiro mesmo ocorreu não muito antes, quando eu exuberava meus 23 jovens anos pirilampeando por Santa Maria, e um menino de rua me abordou pedindo “Tio, me dá um troquinho?”... “Tio, eu???????”, espantei-me já daquela vez, até então habituado a desempenhar somente o papel de sobrinho.
Agora, a apenas dois passos dos 45, fui ao oculista e recebi receita para encomendar um óculos para a “vista cansada”. A partir da semana que vem, desfilarei pelos ambientes da casa com a cara aparafusada num daqueles oclinhos que se equilibram perigosamente na ponta do nariz quando enfiamos o rosto num livro ou na tela do computador, exatamente como faziam e fazem meus avós e meus pais e todos os que conheço que possuem 15 anos a mais do que eu: aqueles senhores e senhoras, aos quais, definitiva e inexoravelmente, me irmano. Com um par de óculos dessa espécie, não tem jeito, a idade passa a estar na cara.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de maio de 2011)

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Arma de brinquedo também mata

Está de novo na ordem do dia a questão sobre o desarmamento da população brasileira. Na metade da década passada, promoveu-se uma campanha nacional nesse sentido, em que o cidadão comum foi convidado a trocar as armas que tinha em casa por um ressarcimento simbólico em dinheiro, entregando-as nas delegacias de polícia. A intenção que move os proponentes e defensores da ideia é a melhor possível, uma vez que se embasa na teoria (ou na esperança) de que menos armas em circulação produzem, por conseqüência direta, menos violência e mais segurança.
Os contrários contra-argumentam apresentando o crescimento incessante dos índices de violência em todo o território nacional, com ou sem campanha de desarmamento, e o processo ininterrupto de obtenção de armas justamente pelos criminosos, que as usam contra os cidadãos indefesos e contra os agentes da lei, da segurança e da ordem. A verdade é que as armas chegam às mãos dos criminosos por meio das brechas que eles encontram e criam dentro do sistema legal, a partir do contrabando, da corrupção e do roubo de armamentos. Ou seja, é justamente a falha do Estado nessas áreas que permite o armamento da bandidagem. Necessário é, pois, investir mais nos mecanismos de controle de fronteiras, de combate ao contrabando e na erradicação da criminalidade, ao invés de tentar curar a doença do pé ampliando o problema da mão, liberando geral o uso de armas pela população.
Eu concordo com a tese de que, quanto menos armas às voltas, menos tiros; e quanto menos tiros, menos mortes e menos violência. E vou além. Concordo com todas as iniciativas de legisladores que defendem a erradicação das armas de brinquedo. Alguém será que consegue me demonstrar onde está a ludicidade e a pedagogia da manipulação de uma arma de brinquedo por uma criança? Quem brinca com arma brinca de fazer o quê? Ora, de dar tiros. E dar tiros de mentirinha evoca o que na vida real? Ora, violência. Desejamos nossos filhos brincando de serem violentos? Brincando de mirar na cabeça do amiguinho e dizer “pá, pá, pá, você morreu”...? Brincando de invadir a casa de Bin Laden e crivá-lo de chumbo? Ou de invadir a escola e metralhar todos os ex-colegas e professores? Não é esse o tipo de brincadeira que desejarei estimular em meus filhos, quando eu os tiver.
Eu tive revólver de espoleta quando criança, nos anos 70, quando brincava de mocinho-e-bandido. Tive também espingarda de pressão, com a qual assassinei alguns passarinhos quando tinha dez anos de idade, e hoje me horrorizo com o que fiz, na aparente inocência da infância. Envergonho-me desse episódio em minha biografia, e não me perdoo quando o recordo. Analisando em retrospecto, o que posso perceber é que arma, de qualquer espécie, mata. As de verdade, matam gente. As de brinquedo, matam a inocência. Precisamos cultivar uma nova geração mais consciente em termos de ecologia, de convivência cidadã e pacífica. Para o bem da continuidade da espécie.
(Crônica publicada no jornal Informante, de Farroupilha, em 13 de maio de 2011)

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Vácuo nas estantes




É de menino que se torce o pepino, conforme já dizia minha avó, nos meus tempos de menino. Nunca vi, literalmente, ninguém torcer pepino algum. No entanto, o aforismo é um dos mais certeiros e criativos que já escutei, especialmente devido ao infinito grau de aplicabilidade que apresenta, servindo, inclusive, para fins de discussão sobre a importância da literatura na vida e na formação dos cidadãos, como se poderá ver aqui nessa coluna, esta vez.
Fiquei muito impressionado com os dados que li em uma reportagem publicada na imprensa nacional, em março deste ano, a respeito de um levantamento feito pelo do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) de 2010, que envolveu 65 países ao redor do mundo. O objetivo da pesquisa foi detectar o grau de intimidade que os estudantes dos países avaliados demonstram com o objeto livro, e o Brasil, como infelizmente já era de se esperar, conquistou o pior desempenho possível. Os brasileirinhos lideram o ranking quando o assunto é medir a população de livros existentes nas casas em que eles moram. Lideram no quesito “estantes vazias”.
Ou seja, no Brasil, 39,5% das crianças e adolescentes disseram haver, no máximo, uma dezena de títulos em sua residência. Outros 30,4% admitiram que o número não supera os 25. Somente 8,1% convivem com mais de cem obras dentro de casa. São números que revelam a baixíssima intimidade que nossas crianças possuem com o artigo livro em suas moradas. É mais fácil haver aparelhos de televisão, DVDs, bolas de futebol, videogames etc do que livros dentro de casa. E isso por um único e preocupante motivo: seus pais não leem. Seus avós não liam. Seus tios e padrinhos também não leem. Os amiguinhos não leem. Os vizinhos não leem. E o que é pior de tudo: tampouco seus professores leem.
Não há como torcer o pepino se ninguém souber o que é um pepino, e se pepinos não forem levados para casa. Se nem mesmo os professores são leitores (e quando digo “leitores”, refiro-me à leitura sistematizada, contínua e habitual de literatura mesmo, não de livros técnicos), como é que vamos imaginar que pais e alunos o sejam? Ou o seu professor de matemática é leitor de Borges? Tomara que sim, tomara que sim...
Na fria, gélida, longínqua e pequena Islândia, conforme a pesquisa, mais da metade dos estudantes vivem em casas que possuem mais de cem livros em suas estantes. Já os índices brasileiros são piores do que Tunísia, México, Panamá, Quirguistão, Colômbia, Peru, Jordânia e Uruguai, para citar só alguns. Claro que apenas a simples presença de livros na estante não significa nada. Porém, a insistente inexistência de livros nas estantes dos lares brasileiros significa a certeza de que não formaremos gerações de leitores nem que a vaca tussa, ou que a porca torça o rabo, tudo antes de as vacas tossintes irem para o brejo na fazenda desprovida de pepinos torcidos.
Ainda bem que a pesquisa envolvia apenas 65 países. Ficamos na 65ª posição. Espero que não ampliem o leque dos países pesquisados no próximo ano. Mas ninguém precisa se envergonhar de nada. A pesquisa só foi publicada em jornal e por aqui ninguém lê nada mesmo. Problema que não é visto não incomoda, certo? O pepino não nos diz respeito, não é mesmo? E vamos lá, que logo chega nova versão do Playstation....
(Texto publicado na seção "Planeta Livro", da revista Acontece Sul, de Caxias do Sul, edição de maio de 2011)

sexta-feira, 6 de maio de 2011

A vida supera Borges

A vida imita a arte, já disse alguém, embasbacado com situações do mundo real que melhor se encaixariam em obras de ficção. Mas a imaginação dos criadores de histórias dificilmente consegue superar em originalidade a vida como ela é, para deleite e espanto de quem tem sensibilidade para detectar os estranhamentos que se dão ao seu redor, em sua esquina, dentro de si mesmo, muitas vezes.
Dia desses, por exemplo, fiquei grilado com uma notícia vinda do México. Ela dizia que o idioma ayapaneco, falado há séculos por tribos indígenas mexicanas, está em vias de extinção, uma vez que só existem ainda duas pessoas que dominam com fluência o idioma, ambas já longevas. Até aí, nada de estranho, uma vez que o fenômeno do desaparecimento de línguas indígenas é algo que tira o sono de antropólogos, sociólogos e linguistas há muito tempo, desde que a humanidade evoluiu do simples massacre das culturas para a compreensão de que é necessário preservá-las.
O surpreendente reside no fato de que a língua, na verdade, já está essencialmente morta, apesar de ainda viverem as duas únicas pessoas que a conhecem, pela simples razão de que elas se recusam a conversar uma com a outra. Manuel Segovia, 75 anos, e Isidro Velázquez, 69, moram a 500 metros um do outro mas não se falam e não explicam a razão do desafeto que há entre eles. Isso para desespero dos pesquisadores, para quem a língua ayapaneco já é uma morta-viva, uma zumbi das línguas. Há um antropólogo norte-americano envolvido no projeto de criar um dicionário de ayapaneco, antes que Velázques e Segovia morram e enterrem com eles o tesouro linguístico.
Conforme o americano, Segovia tem um temperamento facilmente irritável enquanto Velázquez é mais fechado e reluta em sair de casa. Ambos negam a animosidade, porém, concordam que não possuem nada em comum que os leve a conversar um com o outro. Nem mesmo Jorge Luis Borges conseguiria imaginar uma situação semelhante em sua rica obra literária calcada em estranhedades. Só mesmo a Vida, essa autora original, geradora de roteiros únicos a cada esquina, a apenas dois passos do alcance de nossas sensibilidades. Como se diz “até a próxima”, em ayapaneco?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de maio de 2011)

domingo, 1 de maio de 2011

Delete o exagero

Nem tanto ao Céu, nem tanto à Terra, já dizia não sei quem não sei onde, e eis que sigo impune empilhando aforismos populares anônimos, para o horror daquele grupo de velhinhas que tomam chá da tarde às sextas-feiras e insistem em continuar me lendo, na esperança de que algum dia eu escreva algo menos indigesto, de preferência em frases mais curtas que não lhes exijam pausas a cada vírgula para recuperar o fôlego e emendar o raciocínio. Mas o que me toma a atenção dessa vez é a questão levantada pelo deputado estadual Raul Carrion e sua nova lei, que pretende regular o uso de expressões estrangeiras no Estado, supostamente em defesa da moral e dos bons costumes da língua pátria.
O tema é polêmico e instigou o embate entre as vozes contrárias e as favoráveis à regulamentação do uso de estrangeirismos no cotidiano. Mas ninguém se colocou contrário à defesa do patrimônio cultural que é a língua portuguesa. Criticou-se, sim, a forma de preservá-la, por meio da força de uma lei em essência difícil de ser aplicada e fiscalizada. Aí é que se encaixa o aforismo que abriu este texto, sugerindo que coisas assim se solucionam ao natural. Línguas são entidades vivas que se retroalimentam pelo uso cotidiano de seus termos, permitindo o surgimento de neologismos e a absorção natural de expressões importadas. É assim desde sempre, e seguirá assim sendo enquanto as velhinhas do chá levantarem a mão para chamar o garçom (“garçon”, que é “rapaz” em francês, todas elas sabem).
Claro que prefiro “deletar” frases ruins que escrevo ao computador, ao invés de “eliminá-las”, afinal, o programa que utilizo para escrever chama-se “word”, e não “palavra”. Mas há exagero, sim, quando a loja pinta uma frase em inglês em sua vitrine dizendo que “se as mães fossem flores, eu as colheria”. Quem vai entender? Isso atrai clientes? Isso torna a loja mais chique? Ou não passa de esnobismo terceiro-mundista? Será que as funcionárias terão capacidade de me atender em inglês, uma vez que a vitrine me convida a adentrar ali exercitando um idioma estrangeiro?
O caminho do meio é sempre o mais sábio, já dizia outro alguém, em outro lugar. As velhinhas do chá devem saber quem era...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de abril de 2011)