sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Eu e eu

Que, futebol, que nada. Caixinha de surpresas é a vida! Dela, ninguém ganha em termos de capacidade para nos presentear surpresas inimagináveis a cada nova esquina dobrada. Dia desses, por exemplo, descobri que eu sou uma dupla sertaneja. Desdobro-me em dois lá em Goiânia para formar a dupla Marcos & Fernando. “Ora, vejam, só, estou até lançando disco novo”, pensei com os botões dourados de minha camisa desabotoada até o umbigo, sentado na cama, devorando um salgadinho e assistindo ao intervalo comercial do Domingão do Faustão.
Desejoso de saber um pouco mais sobre mim mesmo, saltei da cama espalhando farelos por todo o lençol e fui até o escritório abrir o notebook. Não demorou para eu descobrir que tenho site oficial, que possuo milhares de fãs, que já lancei vários discos e que estou na estrada desde 1999 (15 anos, portanto, de sucesso e nunca tinha ouvido falar de mim mesmo). Li as biografias do Marcos e do Fernando, aprendi muito sobre cada um deles, perscrutei as capas dos discos e me senti preparado para o passo seguinte, o mais importante de todos: conhecer minhas músicas.
Um de meus maiores sucesso  se chama “Cafajeste”. Não quis começar com essa. Cliquei no álbum intitulado “Help”, imaginando encontrar algum canal de comunicação com o universo dos Beatles, mas não. O link abriu e o ambiente do escritório já foi sendo invadido por uma música (??) que dizia assim: “Bará bará bará/ Berê berê berê/ É o Marcos e Fernando/ Fazendo bará berê”. E seguia: “Alô galera, tô na área/ Tudo pode acontecer”. Desliguei rapidamente antes que a coisa prosseguisse. Eu temia por tudo o que poderia acontecer dali em diante.
Fiquei um pouco atordoado. Então eu era isso? Olhei para o pacote de salgadinhos devorado pela metade. Olhei para os farelos sobre os lençóis. Fitei os olhos gritantes do Faustão na tevê chamando... “Marcos e Fernando”! Bom... dizem que duas coincidências já não são mais coincidências. Nesse caso, parecia mais assombração mesmo. Belisquei-me e não acordei.

Não há nada que eu possa fazer. Marcos e Fernando existem e tudo pode acontecer. “Bará bará, berê berê”. É... tem lógica... Bará... Berê... Sempre se pode tirar proveito de algo, pois não? Mas, por enquanto, cansei de surpresas.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de fevereiro de 2014)

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Sempre alertas

Jovens e adultos singulares do mundo inteiro têm, na data deste sábado, 22 de fevereiro, um motivo especial e significativo para celebrar e refletir.  Este dia marca o nascimento do militar britânico Baden Powell (1857 - 1941), que entraria para a história mundial não apenas por seu destacado desempenho a favor do Império Britânico em campanhas nas Índias, mas principalmente por ter sido o mentor e o fundador do Movimento Escoteiro.
Devido à sua vivência no interior de países africanos e asiáticos, acumulou um profundo conhecimento a respeito dos segredos das selvas. A camaradagem com os companheiros militares, seus preceitos éticos, seus valores de cidadania e o respeito ao ser humano e à natureza formaram em seu espírito um cardápio filosófico pessoal que ele logo percebeu ser importante transmitir aos jovens, a fim de compartilhar essa sua visão transformadora de mundo, que passa pela formação e a educação. Destacou-se por suas habilidades de explorador de terreno em uma campanha na região do atual Zimbábue, quando recebeu dos nativos o apelido de “impisa”, ou seja, “o homem que não dorme”, que está “sempre alerta”.
De volta à Inglaterra, Powell adaptou para a formação de jovens os seus métodos de exploração das selvas, de convivência sadia e de educação. Em 1907, realizou um acampamento experimental com cerca de 20 rapazes na Ilha de Brownsea, compartilhando técnicas e conhecimentos por meio de ensinamentos práticos e conselhos repassados em volta de uma fogueira. Surgia aí o Escotismo, que ganharia rapidamente o mundo, chegando ao Brasil já em 1910 e espalhando-se por todo o território nacional.
A partir dos sete anos de idade, crianças já podem ingressar no Movimento no ramo dos Lobinhos, podendo seguir depois para o ramo dos Escoteiros (a partir dos 11 anos até os 14), Sênior (15 aos 17), Pioneiro (18 aos 21) e Escotistas Adultos. O Lobismo tem inspiração nos personagens criados pelo escritor britânico Rudyard Kipling (1865 - 1936) em “O Livro da Jângal”, no qual aparecem, entre outros, Mowgli, o Menino-Lobo; a pantera Bagheera; a serpente Kaa. O principal propósito do Escotismo é auxiliar na formação do caráter dos jovens, transformando-os em cidadãos responsáveis e atuantes positivamente na sociedade a que pertencem.
Mais do que nunca, a sociedade brasileira está precisando de jovens que virem cidadãos conscientes e praticantes dos preceitos éticos que Powell, mais de um século atrás, já detectava como cruciais para a consolidação positiva de uma nação. Para nossa sorte, eles estão sempre alertas.
 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de fevereiro de 2014)

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Olha a melancia

Não tem dia em que o caminhãozinho não passe pelas ruas do bairro onde moro, alternando buzinadinhas de aviso com a voz que, pelo alto-falante instalado sobre o capô da cabine, anuncia, ao vivo, os predicados inigualáveis das melancias que carrega e oferta à vizinhança. “Olha a melancia... biiip biiip biiiip... ooooolha a melancia! Biiip... biiipp... Olha a melancia deliciosa e barata!”. E assim segue durante horas em sua interminável ação publicitária direta, cuja performance meus ouvidos vão detectando à medida em que o som se distancia ou se aproxima de onde moro, revelando que o trajeto praticado é serpenteante, um vai-e-volta contínuo por quadras e esquinas ao sabor da intuição do motorista.
As melancias visitam nosso bairro normalmente na parte da manhã. À tarde, as ruas são percorridas pela van dos picolés. “Olha o picolé geladinho! Três picolés de creme por um real ou cinco picolés de frutas por um real! Olha o picolé! Picolé bom e barato! Três de creme por um real ou cinco de frutas por um real”! Confesso que, nesses recentes dias de temperaturas de forno de micro-ondas que vivenciamos aqui na cidade, flagrei-me diversas vezes tentado a sair correndo prédio abaixo para capturar o “homem do picolé” e experimentar pelo menos a oferta dos três de creme por um real. Fui impedido pela desconfiança de que o elevador não me ofereceria a agilidade necessária para me colocar ao rés do chão em tempo hábil de ainda encontrar a van pelas imediações do prédio, e não estava em meus planos sair perdendo as chinelas pela rua me descabelando atrás do picolezeiro, respingando moedas pela calçada. Já passei dessa fase.

O interessante é detectar que, apesar de envelhecermos e mudarmos de fases, algumas coisas que remontam ao passado persistem vivas e ativas no mundo moderno, como esses vendedores que anunciam seus produtos em alto e bom som diretamente ao público. Na Ijuí de minha infância, havia os meninos-picolezeiros, com suas caixinhas de isopor e as gaitinhas de boca por meio da qual anunciavam o produto gelado que tanto cobiçávamos. Em Santa Maria, nos tempos dos estudos universitários, havia o velhinho que estacionava sua Variant no centro da cidade, abria o porta-malas transmudado em prateleira de livros e gritava, à nossa passagem: “oooooolha a boa leituraaa”! Em nome da nostalgia, talvez amanhã eu desça e capture uma melancia...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de fevereiro de 2014)

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Caprichem no galeto

Em tudo saindo conforme o esperado, Caxias do Sul recebe hoje a presidente da República Dilma Rousseff, que, dando sequência a uma tradição iniciada por Eurico Gaspar Dutra em 1950, prestigiará a abertura de mais uma edição da Festa da Uva. Além de todo o já tradicional e necessário aparato de segurança, de cerimonial e de estrutura que envolve uma visita da dirigente máxima do país, em se tratando de Caxias do Sul, de Serra Gaúcha e de Festa da Uva, existem também certas peculiaridades a serem levadas em conta. Dilma levou-as todas e, exercitando a diplomacia, a simpatia e o conhecimento de causa, manifestou o desejo de almoçar galeto nesta quinta-feira que passará conosco aqui na Pérola das Colônias. Em Roma, faça como os romanos, não é, presidente?
A notícia me causou certa preocupação ontem, por alguns instantes. Afinal, se a presidente deseja comer galeto na terra do galeto, da polenta, do queijo, do vinho e da uva, pois então que sirvam galeto para a presidente. Mas é preciso que seja um bom galeto, e não um galeto qualquer. Não podemos correr o risco de vermos ir-se de volta a Brasília uma presidente que eventualmente tenha sofrido o azar de degustar um galeto mal passado, mal temperado, chamuscado, cru ou borrachudo. Dilma, em explicitando seu desejo de comer galeto em Caxias, precisa necessariamente ser servida com um galeto de primeira, desses que só aqui, na Serra Gaúcha, se sabe fazer.
Mas logo meu temor foi sendo amenizado. Afinal de contas, Dilma estará em boas mãos. Basta ver que a organização desse manjar típico estrelado pelo galeto está a cargo do ministro do Desenvolvimento Agrário Gilberto Pepe Vargas, nosso ex-prefeito. Entre tantos outros assuntos que domina, Pepe, como bom representante da Serra que é, entende de galetos. Saberá determinar todos os detalhes prévios e, em sentando próximo da presidente, não deixará de ajudá-la a pinçar os exemplares mais atrativos.  Porque um bom galeto a gente reconhece de imediato pelo aroma e pelo visual, todos aqui sabemos.

E tem mais: além do fato de Dilma ter em Pepe um confiável cicerone gastronômico, quem é que ousa imaginar que se faça galeto ruim em Caxias do Sul? O bom galeto é uma questão de honra local e não haverá a mínima possibilidade de Dilma sair daqui sem ter seu desejo presidencial gastronômico saciado com louros. Ou, de preferência, com sálvia. Bem-vinda, presidente Dilma, e bom apetite!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de fevereiro de 2014)

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

O bisbilhoteiro impune

Preciso reconhecer e aceitar: sou um bisbilhoteiro irremediável. Dizem que o primeiro passo, certeiro e seguro, para a cura de nossos defeitos, é reconhecê-los e aceitá-los, para, em posse disso, proceder à transformação de seu eu em algo melhor, superior, mais evoluído e limpinho. Pois esse meu eu precisa urgentemente de uma lavagem completa, por dentro e por fora, incluindo motor e passagem de cera nas rodas, e nada daquela meia-boca de lavagem expressa ou mangueirinha.
É que sou um bisbilhoteiro da vida alheia e, se minhas avós estivessem vivas, ralhariam comigo dizendo que eu precisaria tomar jeito. Pensando aqui e agora sobre isso, concluo que esse traço torto de minha personalidade veio instalado em mim desde os primórdios de minha existência. Sim, porque, quando eu era criança pequena lá em Ijuí, com uma altura que já colocava meus olhos ao nível das mesas, eu tinha paixão por circular solto por entre os corredores dos restaurantes, terminada a minha refeição repleta de nacos de polenta frita, para espionar o que estavam comendo os demais clientes do estabelecimento. Devorado o sagu, saía a perambular minha cabecinha de cabelos brancos até estacionar o par de óculos pretos – que eu já portava aos sete anos de idade – junto com o queixo sobre as mesas dos outros para ver o que andavam saboreando e depois fazer relatos detalhados aos meus pais e à minha irmã.
Alguma tia mais condescendente diria que na verdade aquilo não passava de um encantador indício da alma habitada desde pequeno pelo repórter que eu viria a ser um dia, ou do escritor e cronista, afeito a prestar atenção nos detalhes e reportá-los com precisão aos demais. Mas eu acho que tudo isso não passa de bisbilhotice mesmo. Coisa de xereta profissional. Se não, por que é que então agora, na adultice, não consigo resistir à tentação de ficar especulando as mercadorias que as pessoas colocam em seus carrinhos nos supermercados, brincando mentalmente de enquadrar a vida de cada um a partir daquilo que consome?

“Hum, um velhote fazendo estoque de fraldas... certamente é um avô atencioso... Opa, essa moça pegou dezenas de iogurte; deve ser para os filhos, ou é uma gulosa mesmo. Pega menos refrigerante, cara, olha só essa sua barriga...” E assim vou pelos corredores dos supermercados, conduzindo impunemente meu carrinho e minha bisbilhotice, até que um dia algo me contenha.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de fevereiro de 2014)

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

O padre que não era

Somos aquilo que somos, somos aquilo que pensamos, somos aquilo que comemos, somos aquilo que dizemos, somos aquilo que lemos, somos aqueles com quem convivemos, somos o que compramos e o que deixamos de comprar, somos aquilo que desejamos, somos aquilo que sonhamos, somos a forma como reagimos e nos comportamos, somos o lixo que produzimos, somos as músicas que escutamos, os filmes que assistimos, as viagens que fazemos, os ídolos que cultuamos, somos as roupas que vestimos, o jeito como andamos, as coisas que fazemos e deixamos de fazer e somos, principalmente, queiramos ou não, a forma como os outros nos veem. Aí, meu amigo, é que a porca pode torcer o rabo, a vaca ir reto para o brejo, o parafuso apertar.
Dia desses, por exemplo, tive de comparecer a um velório. Estacionei nas proximidades da capela mortuária onde o corpo estava sendo velado, saí do carro e fui andando. Quando já subia os degraus da escada de acesso ao prédio, um menino de cerca de dez anos de idade que perambulava ali fora me abordou, perguntando se eu era o padre. “O senhor é o padre?”, inquiriu ele, me olhando nos olhos. “Não, não sou”, respondi, seguindo em frente e sendo cravejado de alto a baixo pelo olhar desconfiado do garoto, que não se convenceu com a minha negativa. “Padre mentiroso”, deve ter ficado pensando ali, mal, de mim, que, no mínimo, padre é que não sou, por certo.
Não sou, mas pareço. Ao menos, pareci aos olhos do garoto. O que viu ele em minha figura caminhante que o conduziu à quase certeza de que eu encarnava o padre que ele e a família estavam esperando? Tenho jeito de padre? Porte de padre? Confiabilidade irradiante de padre? Voz de padre? Ele só escutou minha voz depois de ter feito a pergunta, mas, ao escutá-la proferindo a negativa, foi aí que talvez tenha se convencido de que eu era padre mesmo. Pode ser que eu não fosse o padre que ele estava aguardando, por isso, deixou-me ir, mas que eu era padre, ah, isso eu era, ficou ele ali, matutando.

Pelo sim, pelo não, imagino que seja positivo andar por aí portando a credibilidade de um padre, reconhecível à distância apenas pelo contato visual. Certa vez, nas proximidades da Câmara de Vereadores, fui apontado por um menino que visitava o Legislativo com sua turma de escola, dizendo: “Olha ali, galera, um vereador”! No meu íntimo, quero crer que fui confundido com vereador e com padre exemplares.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de fevereiro de 2014)

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Como se chama

Lindonjonson é irmão de Julbelânio e os dois são irmãos de Ozeano. Os três rapazes são naturais de Água Branca, na Paraíba, mas moram há anos em Bauru, São Paulo. Eles integram uma família numerosa, composta por 14 irmãos, na qual as moças têm nomes comuns, porém, os rapazes foram agraciados com a criatividade da mãe, que, pelo visto, não tinha limites. Como ela morreu já faz muitos anos, os irmãos perderam a chance de desvendar diretamente na fonte a motivação para a escolha dos nomes, e o pai só sabe dizer que “ela inventava”.
Ah, tem também o Edriano e o Clelço, e fica-se a imaginar quais seriam os nomes dos demais irmãos homens, uma vez que a matéria no site da internet resolve parar por aí mesmo. A partir dos depoimentos, não é difícil detectar as dificuldades que o quinteto vem enfrentando ao longo de suas vidas na hora de soletrar os nomes nas mais variadas ocasiões em que isso se faz necessário. Felizmente, todos levam a situação na esportiva, se divertem mais do que se estressam e nenhum deles sequer cogita em trocar o nome agora na idade adulta, uma vez que isso é possível de ser feito legalmente. Todos preferem honrar e manter a decisão materna, afinal de contas, o nome é elemento fundamental na conformação da personalidade de cada pessoa.
Nenhum deles, portanto, correrá o risco de proceder igual ao personagem de um “causo” que meu avô passa as décadas a contar como verdade. Segundo ele, nos tempos em que era sargento no quartel em São Borja, havia um soldado que tinha vergonha do próprio nome. Ele se chamava Pedro Brinco, e detestava o nome. Tanto foi que, certo dia, conseguiu convencer o chefe do cartório da cidade a fazer a troca, e passou dali em diante a se chamar João Brinco. Suponho que, desde então, viveu mais feliz e reluzente.

A verdade é que essa coisa de nome depende ainda muito da boa vontade do funcionário que recebe dos pais o pedido no balcão do local de registro. Eu, por exemplo, deveria me chamar Marcus Fernando Kirst, com “u” no Marcus, ao invés de “o”. Meus pais desejavam o nome na forma latina clássica, para homenagear um amigo do pai que virou meu padrinho. O funcionário não deixou, alegando que “Marcus” não era forma brasileira de nominar. Ao que tudo indica, o tal funcionário passou longe dos cartórios da Paraíba. E eu, há 47 anos, sou Marcos, mas penso e ajo como Marcus.
(Crônica publicada em 17 de fevereiro de 2014)

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Murro em ponta de faca

Eu estava determinado: dessa vez, eles não iriam me vencer. Para tanto, precisei de semanas de preparativos e empreendi muito esforço mental para conseguir, no final, atingir meu objetivo. Queimei pestanas, singrei madrugadas insones com a mente labutando, pesquisei na internet, consultei livros e especialistas, em resumo: fiz toda a lição de casa. Quando me senti preparado, rumei para a segunda parte dos preparativos: arranjar fotocópias de todos os documentos.
Sim, porque essa é a parte crucial de todo esse processo: ter em mãos, ou na pastinha, ou na bolsa, todas as fotocópias necessárias para levar a bom termo aquele desafio ao qual você se propôs: renovar, ou mesmo, abrir seu cadastro em determinada instituição (ou repartição, ou órgão, ou empreendimento, ou o que quer que seja). Levantei bem cedo naquele dia, antes mesmo do cantar do galo, liguei o motor do carro e fui até o centro, providenciar as fotocópias.
Feito isso, estava pronto para enfrentar o desafio. Cheguei ao local (uma repartição? Um órgão? Uma instituição? Um estabelecimento? Um cabeleireiro? Um Clube de Bridge?), peguei minha ficha e aguardei, o pé chacoalhando ansioso, um risinho no canto da boca, meu eu inteiro tomado por um só pensamento: “vocês vão ver...”. Quando chamaram meu número, lá fui eu, pronto para a batalha. “Carteira de Identidade”, foi logo dizendo a atendente. “Tó”, disse eu, sacando a carteira e já a cópia. “CPF”, ela rebateu. “Já consta na Carteira de Identidade, mas mesmo assim, aqui está”, respondi. “Comprovante de residência”, pediu ela. E eu: pimba! Ela: “Certidão de Casamento”. Eu: pimba! “Certificado de Reservista”. Pimba! “Carteira de Motorista”. Pimba! “Carteira de Vacinação”. Pimba! “Comprovante de que votou na última eleição”. Pimba! “Registro em Cartório de que gosta da cor verde desde sempre”. Pimba! “Em três vias, sendo uma autenticada, senhor”, disse ela, achando que havia me derrotado. Mas eu: pimba, pimba, pimba e pimba! “Atestado de óbito do gato”. Pimba! “Carteirinha de cronista”. Pimba!
Ela desistiu. Pude ver a expressão de derrota no olhar dela. Preencheu o formulário em silêncio, vencida, e, para finalizar o trabalho, estendeu a mão para receber, por fim, as fotinhos três por quatro. Diacho! Eu esquecera as fotos três por quatro! É, não foi dessa vez...

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de fevereiro de 2014)

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Quase um poliglota

Aos poucos, com a convivência, a vivência e muita polenta, eu vou aprendendo mais e mais sobre os costumes e a cultura dos descendentes dos antigos colonizadores dessas plagas serranas que adotei como lar e que tão bem me acolhem há quase 22 anos. Os habitantes de Uvanova, aquela pequena cidadezinha encravada no alto da Serra, vizinha a Tapariu e a Vila Faconda, ficam sempre alegremente impressionados quando me flagram disparando alguma palavra, algum termo ou uma frase quase inteira em “talian”.
As primeiras que aprendi, confesso, foram aquelas relacionadas ao ato de comer (“mangiare”), beber (“bever”), encher a pança, e seus derivados, como alguns pratos e produtos (formaggio, vin, capeletti, vin, sucheta, vin, mandolato, vin, pomodoro, vin...). O que não é de se espantar, pois, precavido como sou, sei de longa data pronunciar a palavra “comer” em dezenas de línguas, pois nunca se sabe o que pode nos acontecer nesse louco mundo em que vivemos, com aviões a caírem por todas as partes do planeta o tempo todo. Assim, se eu despencar na Alemanha, não passarei fome dizendo “essen”; na Inglaterra, “eat”; na França, “manger”; na Holanda, “eten”; na China... bom, na China tenho receio de sair comendo qualquer coisa que me servirem; na Rússia, “yest”; em Uvanova, “demo via mangiare presto”; em Miami... em Miami prefiro não comer nada; em Marte (sim, porque andam querendo levar o sinal do BBB até para Marte), é preciso usar de mímica, o que exige saber imitar três bocas sendo alimentadas por dois pares de antenas, o que é um pouco complicado, mas tenho treinado bastante.
Dia desses, no interior de Uvanova, fazendo uma pesquisa que resultou em livro em parceria com o artista plástico Antonio Giacomin, a ser lançado em abril, aprendi o significado da palavra “slita”, artefato similar a um trenó de madeira puxado por uma junta de bois, usado pelos nativos para transportar pedras para a construção de taipas. Afáveis, alguns uvanovenses aprontaram uma slita numa junta de bois para que tirássemos fotos do engenho em ação. Passamos uma manhã toda naquela coisa de slita para cima, slita para baixo, bois para cá, bois para lá, fotografa daqui, de lá, de acolá. Só depois de termos retornado a Caxias é que percebemos que ninguém tivera a brilhante ideia de entulhar de pedras a dita slita, que foi o tempo todo fotografada vazia.
Daí aprendi o significado da palavra “baúcos”...

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de fevereiro de 2014)

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

O queijo rolante

Minha família é fissurada por queijos. Toda ela. E por todos os tipos de queijos. Essa tara compartilhada por todos os membros de minha família, repassada por contágio aos agregados e eternizada via carga genética de geração em geração, às vezes provoca algumas situações estranhas que talvez devessem nos fazer repensar essa nossa atitude coletiva, porém, não é o que acontece. Nossas papilas gustativas parecem falar mais alto do que nosso senso de conveniência, e assim vamos levando. Às vezes, na cabeça, como se poderá verificar logo mais adiante.
Quando falo aqui em “minha família”, estou me referindo a todos os indivíduos que podem ser incluídos dentro da mais ampla e generosa definição do termo. Além de mim, então, são (os vivos) e eram (os já mortos) maluquinhos por queijo minha mãe, meu pai, minha irmã, meus avós, bisavós, trisavós e tataravós, meus tios (de sangue ou emprestados), meus primos, segundos-primos, minha esposa, meus cunhados e cunhadas (meu sobrinho ainda está em fase de iniciação) e meus sogros.
Os queijos de que gostamos são simplesmente todos. Mas temos preferência especial por queijo prato, queijo lanche, roquefort, camembert, brie, gorgonzola, gran padano, parma, fondue, muzzarela, provolone, cottage, mascarpone, ricota, parmesão, pecorino, gruyére, estepe, emmenthal, gouda, feta, cheddar, catupiry e também aquele feito por minha sogra, ela mesma.
Dia desses, uma tia minha estava de visita à casa de minha mãe e, na hora do café da manhã, perceberam que faltava queijo para o desjejum. Horror! A quase-tragédia foi evitada pela ação rápida e determinada de minha tia e minha irmã, que voaram até a padaria mais próxima e adquiriram uma linda forma inteira redonda de queijo nem sei qual. No afã de retornarem correndo para casa e saborear a iguaria, deixaram escapulir o queijo das mãos em uma esquina, pelo que ele, devido a seu formato redondo, botou-se a rolar loucamente calçada abaixo, sendo perseguido implacavelmente pelas pernas, braços e gritos de minha irmã e tia, que conseguiram capturá-lo com vida e intacto, ao encalacrar-se numa boca-de-lobo. O queijo rolado foi devorado logo depois, uma vez que não se sujou por permanecer rolando dentro do saquinho.

Agora, só querem comer queijo rolado, porque dizem que ficou uma delícia. Eu, que sou da família, acredito e dou fé. Vocês, felizardos leitores, não tentem isso em casa.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de fevereiro de 2014)

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Um escoteiro exemplar

Muitos vão se surpreender com a revelação, mas adoro acampar! Ah, que delícia essa determinação em abandonar, durante um final de semana inteiro, o conforto aborrecido do lar equipado com as traquitanas mais modernas em termos de eletrodomésticos já inventados pelo homem para facilitar a vida dos seus semelhantes, e poder enfiar-se no meio do mato, junto aos mosquitos, às cobras, aos animais uivantes, às aranhas e escorpiões, passando calor, frio e necessidades!
Como é delicioso levantar antes do raiar do dia para atulhar o carro com os apetrechos da barraca que só nessa hora percebemos não ter sido aberta há mais de meio ano e agora está toda cheia de teias de aranha, mofo, terra e as aranhas elas-próprias. Que desafio instigante para o cérebro e para nossa autoimagem essa tarefa de conseguirmos empilhar toda a bagagem dentro do porta-malas, nos pés dos acompanhantes e na capota, com as caixas de isopor cheias de latinhas de cerveja geladérrimas que estarão mornas ao chegarmos e estupidamente quentes ao abrirmos, mais a carne para o churrasco, os sacos de carvão (para variar, esqueceremos em casa os fósforos e é certo que teremos problemas), os espetos que espetam os pés da Aninha do início ao fim da viagem e a fazem reclamar sem parar, enchendo os nossos ouvidos que estavam mais dispostos a escutar o cantar dos pássaros, o trilar dos grilos, o chilrar dos... das... o que é que chilra mesmo? Enfim, para apreciar os sons da natureza.

Depois dos solavancos divertidos proporcionados pelos buracos da estrada cavada no meio do mato e abandonada há anos, mas que você insistiu em pegar apesar dos protestos de todos os outros que agora batem com as cabeças no capô a cada pulo, enfim chega-se ao local escolhido para o camping, que tão divertido será, longe, bem longe do ar-condicionado da sala, do chuveiro com temperatura de água regulável, do vaso com papel higiênico (”Marcos, você lembrou de trazer o papel higiênico, Marcos? Eu não tinha te falado, Marcos...?”), da geladeira repleta de sorvete e cerveja gelada (ah, que alegria uma cerveja morna e sacudida degustada no breu absoluto do mato porque ninguém sabe acender fogueira sem usar os fósforos que permanecem no aconchego da distante e saudosa casa).
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de fevereiro de 2014)

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

O matricida estabanado

Tentei matar minha mãe. Não consegui, haja vista eu continuar solto e serelepe pelas ruas da cidade atrás de assuntos para crônicas que alguns supõem divertidas. Assolado que sou pelos ditames de minha consciência, confesso aqui em detalhes o fato, na tentativa de purgar a culpa que me flagela.
 Aconteceu meses atrás, em um animado almoço comunitário na acolhedora localidade de Mato Perso (‘mato perdido’, em dialeto, e minha mente ali, já maquinando bobagens). Minha mãe, que mora na distante e pacata Ijuí, estava a nos visitar naquele final de semana e a arrastamos junto ao programa sabatino para o qual já havíamos sido convidados por um casal de amigos. Sob o irrecusável argumento de que ali é servido o mais saboroso pien da região, ao lado de uma sopa de capeletti que parece anholine de tão boa e de uma carne lessa de fazer padre ajoelhar, mamãe concordou alegremente em nos acompanhar no passeio. Tadinha dela.
Durante o evento empanturral, um tenor italiano importado especialmente para a ocasião cantava a plenos pulmões enquanto comíamos, o que era ótimo, porque ninguém podia, assim, escutar as mastigadas dos outros à mesa. Quando enfim, devidamente fartos de pien e maionese, resolvemos partir, fui buscar o carro para perto do salão comunitário onde esperavam minha esposa e minha progenitora, e de dentro do qual ainda ecoavam os gritos retumbantes do animado tenor. Estacionei com o motor ligado e, enquanto elas entravam, fui comentando sobre a altura da cantoria, que achei ligeiramente indigesta. Dito isso, arranquei.
E eis que então minha mãe começou a gritar igual ao tenor italiano: “aaaiiia aaaiiii oooo iii aiaiii!”, ao que eu julguei que ela, num acesso de indignação, estava a imitar o turbinado cantor. Nada disso. Eu é que, ogro desatento como sou, arranquei o carro com ela ainda em pleno processo de entrada, e arrastei-a por alguns metros - uma perna dentro, outra fora, o salto riscando o cascalho de Mato Perso -, obrigando-a a disputar com o tenor o vigor de seus pulmões.  Só parei quando minha esposa percebeu e gritou “amor, para!”.

Felizmente, o resultado da desatenção não foi além do susto e de uma ralhada que o filho da mãe aqui não ganhava merecidamente há mais de 40 anos. Moral da crônica: sejam atentos no trânsito; cuidem de suas mães; ouçam suas esposas; experimentem o pien de Mato Perso (quando não houver tenor italiano por perto).
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de fevereiro de 2014)

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

I love me, yeah, yeah, yeah!

Descobri, ao longo de décadas de experiências e de reflexões pessoais sobre o que me acontece nessa trajetória aqui na Terra, que um dos segredos da felicidade na vida é a gente aprender a se contentar com aquilo que se tem e não se frustrar em demasia com o que não se tem. Vou dar um exemplo claro, utilizando a mim mesmo como modelo, como gosto tanto de fazer, se é que já não perceberam.
Sou um aficionado pelos Beatles, esses quatro músicos de Liverpool que, por sinal, foram justamente relembrados na última sexta-feira, dia 7 de fevereiro, pela passagem dos 50 anos da primeira aparição ao vivo do grupo na televisão dos Estados Unidos, fato que originou a beatlemania mundial e alçou a fama do conjunto a todas as partes do planeta. Encantam-me a música deles, a sonoridade dos arranjos, a competência na composição das letras, das melodias, do uso dos instrumentos, as harmonias vocais, a proposta artística e por aí afora. Zero à esquerda que sou na arte de produzir sons que não sejam os involuntários, eu poderia ser um frustrado de carteirinha por não saber tocar como os Beatles, por não conseguir cantar com a voz rasgada de John Lennon, por não conseguir compor canções encantadoras como as de Paul McCartney, por desconhecer o processo de criação de riffs de guitarra que caracterizou George Harrison, por não possuir sequer indícios do carisma de Ringo e de sua capacidade de, na maturidade, transformar-se em um competentíssimo compositor de música pop que seus anos enquanto Beatle sequer indicavam.
Mas não, nada disso me frustra. Primeiro, porque tenho o privilégio de possuir ouvidos que me permitem acessar suas músicas, e depois, por ter sido contemplado por um gosto estético que me proporciona apreciá-los dessa maneira que tanto me dá prazer. E tem mais. Apesar de não cantar como os Beatles, não tocar como os Beatles, não compor como os Beatles, não ter a fama e a fortuna dos Beatles, eu, pelo menos, tenho os gambitos iguais aos dos Beatles!

Não vou mostrar-lhes, leitores, vocês precisam se resignar a acreditar naquilo que escrevo aqui, mas lhes juro: tenho os gambitos dos Beatles! Minhas pernas são compridas, alvas, finas, secas, esqueléticas, iguais às de John, Paul, George e Ringo. Tivesse eu nascido em Liverpool no início dos anos 1940, vocês hoje talvez estivessem curtindo geniais composições da dupla Lennon/McKirstney. Só de sonhar isso, já me contento.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de fevereiro de 2014) 

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Sorvete na cuia?

Não vou revelar onde o fato aconteceu, nem quando e tampouco com quem (e se não parar por aqui com as restrições, corro o risco é de ficar sem contar porcaria nenhuma e acabar me vendo sem crônica, o que seria uma baita bagualada), mas me restringirei à sua essência. Pos me botaram a experimentar sorvete de erva-mate, o que serviu, se não para me refrescar a goela nesses dias mais quentes que chapa de fogão a lenha, ao menos, para fazer brotar alguns pensamentos, que nem urtiga em tapera abandonada.
E não é nada fora da cachola matutar sobre assunto ligado à erva-mate nessa medonha época da história rio-grandense, em que o mais importante produto da cesta-básica gaudéria (sem esquecer, naturalmente, da picanha gorda e da rapadura) anda alcançando valores nunca antes praticados, restringindo o chiar das chaleiras e ressecando porongos do Chuí a Ijuí, do Alegrete a Curumim. A erva-mate está na ordem do dia, o preço do quilo está mais alto que pescoço de garnisé assanhado e, daqui a pouco, para economizar, teremos de começar a passar a cuia que nem copo de caipirinha, cada um dá um gole e quem roncar a bomba paga o próximo pacote. Barbaridade!
Mas assim, índio velho, o que eu queria prosear mesmo é que então me manetearam a experimentar o tal do sorvete de erva-mate, e tchê, vou te contar, não é por nada, mas te falo em coisa que me desceu virada, sabe? Pos não gostei, e isso que me amanso num sorvete que nem terneiro guaxo numa mamadeira de leite. Não gostei do sabor daquele troço, apesar da cor verdinha-clara parecida com erva que nem te conto, e do sorriso faceiro das donas do bolicho, orgulhosas da sua invencionice, como tinha de ser. Mas não, não, sorvete de erva-mate, para mim, não, obrigado, tchê, e para tirar o gosto daquilo da boca já me botei a pescocear em busca de uma chaleira pra cevar logo um mate ou mesmo de um gole de pura pra espantar o sabor.

O fato é que a gente vai serenando as melenas e ficando a cada dia que passa mais aquartelado nos costumes de antigamente, mais teimoso que pai de chinoca nova. Sorvete de erva-mate? Não, tchê, obrigado, essa eu passo, não quero e revido. Me dê é um chimarrão de erva boa mesmo, enquanto o salgado do preço não fizer cócega no fundo da minha guaiaca.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de fevereiro de 2014)

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Uma dieta incomum

Algumas pessoas acusam minhas crônicas de serem divertidas. Desconfiado por natureza canceriana que sou, nem sempre encaro isso como um elogio, afinal, levo muito a sério o ofício de cronicar neste espaço que ora ocupo na condição de interino de Ciro Fabres Neto. E não é por nada que fico com todos os meus pés atrás quando me falam ou me escrevem isso, haja vista aquela antiga questão do grupo de senhorinhas dos chás das sextas-feiras à tarde, que me enviam cartas raivosas após a leitura de meus textos, embriagadas de fel devido aos períodos que elas consideram longos demais antes da benfazeja pausa do ponto, repletos de vírgulas e intercalações, exaurindo-lhes o fôlego e convencendo-as de que eu escrevo dessa maneira com a intenção deliberada de massacrá-las, o que não é verdade, basta ver a curteza exemplar de minha próxima frase. Tenho dito.
Porém, para minha alegria, chega-me agora ao conhecimento o até então inimaginado poder curativo que parecem ter essas minhas tais crônicas divertidas, ao receber correspondência abaixo-assinada por um grupo de moças que me revelam um fenômeno impressionante. Conforme experiências que elas mesmas vêm desenvolvendo entre si, andaram detectando que, ao lerem essas minhas crônicas ditas divertidas e se torcerem de rir, sem economizar na altura e na extensão das gargalhadas, acabam queimando muitas calorias, o que tem colaborado de maneira decisiva para a perda daqueles centímetros a mais nas barriguinhas e nas perninhas que, definitivamente, não lhes pertencem. Elas leem e releem, e riem e riem e riem, e vão assim se desfazendo daqueles quilinhos indesejáveis obtidos por meio de suas relações passionais com sonhos deliciosos, croissants saborosos, sorvetes geladinhos e charmosas tacinhas de espumante com cereja no final da tarde.

Dizem-me na tal cartinha que chegaram até a criar entre elas o termo “A Dieta do Marcos Kirst”, que consiste em guardar minhas crônicas para serem lidas de supetão, uma atrás da outra, nos dias subsequentes a eventuais exageros gastronômicos, a fim de desintoxicar seus delicados organismos. Corro o risco de passar a ter meus textos receitados como dieta de apoio em consultórios médicos, em a coisa seguindo desse jeito. Eu que me cuide com o Conselho Regional de Medicina!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de fevereiro de 2014)

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Eu, menina (!?)


Comentei aqui ontem sobre os esforços bem-intencionados de meus pais, na década de 1970, quando eu era criança, para me proporcionar entretenimento saudável no verão, inscrevendo-me compulsoriamente no programa de colônia de férias oferecido pela milicada do Quartel em minha cidade natal, Ijuí. A julgar pelo tom do texto e pelas entrelinhas, os leitores puderam perceber, sem maiores esforços, que minha relação com aquele tipo de atividade ao ar livre, sob o comando de trombetas e de ordem unida, não era das mais harmoniosas.
Recebi diversos e-mails de leitores e leitoras se solidarizando com meu relato, eles próprios revelando terem também vivenciado experiências similares em suas infâncias (o que, de passagem, denunciava também suas idades). Só tem uma coisa que aconteceu comigo, e que eu não contei ontem, que supera as eventuais más experiências que qualquer um tenha tido com as tais colônias de férias dos anos 1970 realizadas em quartéis.
Foi logo na chegada, no primeiro dia. As Kombis verde-oliva que arrebanhavam a gurizada pela cidade foram despejando meninos e meninas pelo pátio do Quartel, de manhã bem cedinho, e lá saltei eu, oito ou nove anos de idade, cabelinho bem branquinho e cheinho, chapéu de palha na cabeça, calção, tênis e a mochilinha.
Ao saltar, recebi de imediato uma ordem (a primeira delas): “Você, vai para lá!”. Sendo que “lá”, conforme indicava a direção do dedo apontado do milico, significava uma formação organizada de umas dez filas de... meninas! Habituado a obedecer ordens desde cedo, não titubeei e dirigi-me para “lá”, onde uma professorinha me inseriu no grupo, eu de mãos dadas com as demais menininhas. Nem me passou pela cabeça que milico e professora haviam me confundido com uma menina. Fiquei lá, parado, quieto, escutando os risos dos meninos nas fileiras de trás, até que as meninas a meu lado chamaram a professorinha dizendo: “Tia, tia, ele não é menina, ele é menino”.

A mulher veio, me olhou atentamente, convenceu-se do fato e me realocou de fila, junto aos meninos que iniciavam sua colônia de férias rindo à larga... às custas de meu vermelhidão nas faces, esse que me acompanha até hoje mesmo que não tenha passado nem perto de um copo de vinho. Foi bullying não intencional. Depois, tornei-me um perigoso serial killer, mas acho que isso já pode ser fruto de minha imaginação...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de fevereiro de 2014)

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Divirtam-se, já!

Não sou pai, mas posso imaginar que, quando as férias de verão se aproximam, surge sempre o mesmo dilema: o que fazer para entreter as crianças? Hoje em dia, sei que alguns optam pela saída mais fácil (e menos recomendável), que é a de renovar o estoque de joguinhos eletrônicos e de dvds, sem esquecer de reforçar o forro do sofá da sala, onde a galerinha acampará ao longo dos meses que lhes cabem longe dos cadernos (ainda se usa caderno em sala de aula?). Outros, no entanto (e felizmente), se esforçam um pouco mais e buscam alternativas criativas.
Meus pais, nos idos dos anos 1970, quando eu era criança, buscavam essas alternativas criativas, até porque ninguém sonhava, na época, com a existência de joguinhos eletrônicos e muito menos com a possibilidade de assistir a filmes em casa que não fosse sintonizando a televisão na Sessão da Tarde. Pois eis que, então, deu de surgir lá em Ijuí a febre das colônias de férias. “Ah, que boa ideia, arrebanhar a gurizada e jogá-los juntos, o dia inteiro, ao longo de algumas semanas, numa colônia de férias, de onde só saem para virem dormir em casa”, alegravam-se os meus pais e os de outras dezenas de coleguinhas. “Ó vida, ó céus”, pensava eu, arrumando a mochilinha, vestindo o calção e a camiseta, calçando o tênis Bamba (Kichute não, porque entortava os pés) e indo para a frente do portão, aguardar a chegada da Kombi do Quartel que me tiraria de meu quarto, de meus livros, de meus gibis, das histórias em quadrinhos que eu tinha de produzir, para me levar a mais um looooongo e penoso dia de... colônia de férias!
Pois tinha mais essa: a colônia de férias, lá naquela Ijuí de minha infância, era promovida pelo Quartel. Éramos entregues às mãos de sargentos, cabos e soldados que se punham, com aquela didática e pedagogia infantis que se pode muito bem imaginar, a nos enfileirar em ordem unida, a marcharmos à cadência da corneta e do tambor, a dizermos “sim, senhor!”, a rirmos obrigatoriamente da piadinha incompreensível gritada pelo instrutor, a fazermos flexões e polichinelo, a jogarmos futebol (minha tática era sempre correr para o lado oposto da bola), a suarmos feito doidos.

Saudades? Sim, da hora do lanche. Pães com margarina e mortadela, tirados por um soldado boa praça de um enorme e profundo latão, acompanhados por um copão de Toddy bem gelado. E que alegria quando voltavam as aulas!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de fevereiro de 2014)

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Bom trabalho, garotos!

Não tem como não se emocionar com a matéria de capa de ontem do jornal Pioneiro. O ato heroico da dupla de irmãos Daniel (cinco anos) e João Pedro Michelin (três anos), ao salvarem do afogamento na piscina o síndico do prédio em que moram, Armindo Gargioni, 65 anos, em Caxias do Sul, alcançou alta repercussão, e não é para menos.
Trajando os uniformes de alguns de seus super-heróis preferidos dos quadrinhos e da TV, Batman (Daniel) e The Flash (João Pedro), os heróis-mirins estavam à vontade entre os braços agradecidos do amigo que pescaram da morte ao perceberem que se afogava na piscina em que havia entrado para dar um mergulho. O reencontro do trio, ocorrido domingo no quarto do hospital em que o salvado se recupera, foi temperado de emoção e alegria e registrado para a história pelo Pioneiro. Os heróis de carne e osso, sorridentes e orgulhosos, faziam poses dos super-heróis da ficção trajando os uniformes dos personagens, para a câmera do fotógrafo.
 Mas eles não enganam ninguém: todos nós já conhecemos suas identidades nada secretas e admiramos seus feitos, sua índole, sua determinação, seu destemor, sua preocupação para com o próximo, sua empatia, sua consciência cidadã, sua certeza de saber o que é o certo a ser feito. No curso natural da vida, o mais comum é as crianças projetarem nas figuras de seus pais e dos demais adultos que os cercam (professores, parentes, ou mesmo ídolos da mídia) o perfil de heróis em cujos exemplos se espelham. Mas Daniel e João Pedro inverteram essa lógica.
Passamos todos a admirar a duplinha como exemplo de bons cidadãos. Ou melhor, de bons seres humanos. Ou, melhor ainda: de boas pessoas. Aquelas boas pessoas que todos nós já fomos um dia e que esquecemos de continuar sendo quando transformamos o trânsito em um inferno incivilizado, quando adotamos a postura do “eu-por-mim-e-o-resto-que-se-dane”, quando furamos fila, quando nos achamos os mais espertos, quando agimos daquelas maneiras horrorosas que nos fazem cair dentro do enorme grupo dos “folgados” que o colunista do Pioneiro Gilberto Blume tanto (e tão bem) identifica.

A atitude dos nossos pequenos Batman e The Flash nos enche de esperanças em relação a um futuro melhor a ser construído por quem nos sucederá no palco da vida. E esses protagonistas já estão em ação. Tomara que sejam maioria.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de fevereiro de 2014)

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Em defesa da sombrinha

Qualquer um que precise gastar sola de sapato pelas calçadas da cidade por motivos profissionais ou quaisquer que sejam, nesses inclementes dias veranis, sabe muito bem que o sol não anda para peixe. Estranhou a comparação? Pois experimente deixar um peixe ao sol sobre a calçada em plena Sinimbu, para ver o que acontece.
Estamos a vivenciar aqui, nessa nossa (até então) sempre fresquinha Serra, calorões dignos de concorrer com o clima da mormacenta Porto Alegre, da abafada Santa Maria e de outras quenturas mais tradicionais do Estado. Pingando sob a concorrida sombra das marquises das lojas na Avenida Júlio de Castilhos, fico a imaginar se a neve com que o mês de agosto do ano passado nos brindou não teria sido uma alucinação coletiva. Se visto uma camisa vermelha para perambular rumo a uma reunião, me sinto como se fosse um picolé de picanha a verter água pelo centro da cidade. Se me enfronho em uma camisa preta, tenho a sensação de ter me travestido em um carvão de churrasco ambulante.
Via de regra, ao sair de casa apressado catando óculos escuros, carteira, chaves, pasta, caneta e moedas, acabo esquecendo de lambuzar braços, pescoço e rosto com o protetor solar, o que me rende certeiros queimões do sol e justas xingadas da esposa (ambos me deixam corado). Nessas ocasiões, derretendo impunemente e a olhos vistos em público, fico a me perguntar por que diabos não trouxe junto o guarda-chuva, para me proteger da insolação?
Por que cargas d´água a população contemporânea abandonou o uso das sombrinhas nos dias de sol de camelo, uma vez que o apetrecho já foi tão usual e útil em décadas passadas? Afinal de contas, o nome do artefato revela seu uso: sombrinha. Ou seja, foi criada exatamente com o intuito de proporcionar uma sombra particular e ambulante, que acompanha a cabeça do proprietário por onde quer que ele perambule, sem ter de ficar disputando centímetros de alívio sob as marquises ou as árvores, essas cada vez mais escassas em nossos centros urbanos.

Faço aqui o lançamento de um libelo (sempre quis escrever “libelo”) a favor da volta indiscriminada das sombrinhas ao nosso convívio urbano. E que sejam usadas indiscriminadamente por homens e mulheres que não desejam ter seus miolos fritando a qualquer circuladinha de nada pela Praça Dante. Quem me vir, verá...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de fevereiro de 2014)