segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Reflexos de um fixo olhar


O bom da vida é que as surpresas sempre estão à espreita a dois passos antes de qualquer esquina, e, para o bom aprendiz, basta estar atento para seguir acumulando experiências e lições de vida com o passar dos anos. Muito mais do que o futebol (que muitos definem como uma representação lúdica do viver), a vida em si é a verdadeira caixinha de surpresas. Algumas assustadoras, outras preocupantes, claro, o fato é que podemos aprender e absorver ensinamentos com todas as espécies de surpresas que o andar da vida nos oferece. Mas óbvio que preferimos sempre as boas e positivas ou, no mínimo, aquelas que ensinam sem grandes dores.
Dia desses fui alvo do estalar de uma dessas surpresas específicas, manifestada durante um prosaico e despretensioso passeio de mãos dadas com minha esposa pelos corredores atribulados de um centro de compras da região, motivados pela necessidade de buscarmos in loco a inspiração necessária para a aquisição dos presentes natalinos com os quais desejamos regalar a lista dos entes queridos presenteáveis, seguindo à risca a tradição. Andávamos a esmo vislumbrando as lojas e as gentes quando, em determinado momento, detectei um olhar mais atento e fixo da esposa sobre minha pessoa. O que havia? O que em mim lhe havia chamado a atenção? Meu cabelo desgrenhado? Não, não deveria ser isso, pois, conforme o costume, ela não perde tempo em externar seu desagrado relativo ao crescimento desordenado de minhas cada vez mais escassas madeixas. Não haveria de ser o cabelo. O que seria, então? Seguimos, eu com a dúvida, ela com os olhares.
Mais adiante, ela voltou a me olhar fixamente, os olhos brilhando, uma luz cintilante iluminava sua face, que na minha repousava. Teria ela sido possuída de súbito por uma irresistível sensação natalina que lhe embevecia a alma, lhe reativava e resgatava uma profunda paixão semelhante àquela dos primeiros anos de relação? Assim, de repente, sob a trilha sonora dos pequeninos sinos de Belém a bater?  Aqueles olhos em mim estariam a revelar um processo de redescobrir no outro os sentimentos mais doces e ternos que às vezes deixamos sufocar devido ao atribular do cotidiano? Olhei de volta a ela, sorrindo, e inquiri: “Que foi, amor”? Ao que ela respondeu: “Fica mais prá trás um pouquinho, pra eu poder ver as vitrines, por favor”.
Lição advinda da surpresa: nos shoppings, deixe sempre a esposa (namorada, companheira, noiva) andar no lado junto às vitrines. Não lhes atrapalhe a vista de encantamentos interpondo a imagem de sua cara batida. E deixe-as felizes. Simples assim.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 24 de dezembro de 2018)

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Grave dilema na hora do chá


Fazia tempo que elas não se manifestavam, achava até que haviam me esquecido ou, na melhor das hipóteses, me perdoado pelos erros do passado, só que não: ela seguem vivas, vívidas, na ativa e atiladas, como sempre, e, ao que tudo indica, sustentando um renovado asco mesclado com ojeriza pelos textos de segunda que pratico aqui neste espaço já há quase uma década, indiferente ao fato, tantas vezes externado por elas, de que não possuem mais o fôlego necessário para acompanhar do início ao fim a extensão quilométrica de alguns dos períodos que me ponho a escrever, permeando intercalações com vírgulas, traços e ponto-e-vírgulas, que lhes sacrificam os pulmões e lhes desatinam a capacidade de compreender que diabos, afinal, eu queria dizer desde o começo da frase. Nem sempre escrevo assim. Mas não adianta: as senhorinhas que se reúnem às tardes de sexta-feira para tomar chá e desancar minhas crônicas seguem firmes no propósito de um dia conseguirem me emendar, e, atualizadas tecnologicamente como são, enviaram-me um whatsApp preocupante, dia desses.
Em poucas e certeiras palavras, informam estarem desasadas com a insistência com que eu abordo aqui, nestas mal-digitadas linhas, a questão (segundo elas, irrelevante e desprovida de interesse sociológico e antropológico) da temperatura ideal para servir e degustar o sagu, essa especiaria típica regional que a maioria dos nativos afirma apreciar em condições quentes ou mornas e que, na prática, é oferecido nos restaurantes frio ou gelado, bem ao gosto explícito deste escriba portador de crônicos maus gostos culinários, temáticos e redacionais. Nas entrelinhas do whats, explicitam um convite (que logicamente não aceitarei, pois que o medroso morreu mais tarde) para comparecer a uma degustação às cegas de sagu, quando disporão à minha frente quatro tigelas repletas com o doce e eu serei instado a definir qual é a que contém sagu frio, qual a que tem sagu gelado, a de sagu morno e a com sagu quente. Tudo muito fácil, mas desconfiei da parte em que elas exigem me colocar uma venda nos olhos. Eu, hein!
Temeroso e prudente, penso em banir o tema do sagu no próximo ano, voltando minhas atenções a questões menos polêmicas como o nível de textura adequado para a obtenção de um bom Chico balanceado ou a quantidade aceitável de grumos na produção de um creme branco razoável. Um bom cronista de segunda sempre é capaz de encontrar temas relevantes que não afetem sensibilidades e papilas alheias. Feliz Natal e saborosos panetones (de chocolate ou com frutas cristalizadas?) a todos!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 17 de dezembro de 2018)

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Ubuntu e a chave do Graal


Que tal, madama, aproveitarmos esta crônica de segunda para iniciar a semana com os pés direitos (o seu e o meu), refletindo sobre o que se pode depreender a partir de um continho alegórico? Sim, a senhora está certa: alegoria é a apresentação de uma ideia de forma figurada, tipo, dizer uma coisa mostrando outra coisa. Isso! Então, vamos lá: nosso continho alegórico evoca as antigas lendas medievais envolvendo um dos mais afamados cavaleiros da Távola Redonda, que eu sei que a senhora gosta dessas coisas de espadas e brumas, e damas e sagas, e galanteios e cortesias, e capas e véus, caras e coroas, escudos e lanças.
Parsifal, nosso destemido cavaleiro andante, perambula pelo Reino de Avalon montado em seu cavalo (cavaleiro mais cavalgante do que andante, mas vá lá) e ensanduichado em sua armadura ataviada com elmo e espada, à procura do Graal. O Graal, como a madama sabe, é o cálice sagrado no qual Cristo teria celebrado a Santa Ceia e que os cavaleiros medievais procuravam incansavelmente nas antigas sagas, com a esperança de, ao encontrá-lo, conquistarem grande poder. Ao longo da jornada, o próprio cavaleiro vivenciava uma profunda transformação interior, independentemente de encontrar ou não a relíquia. Pois bem, Parsifal, em certo momento de sua busca, depara subitamente com o Castelo do Graal (cavaleiro dos mais sortudos) e penetra em seus domínios. Lá, detecta que o reino, apesar de possuir o Graal, está decrépito, caindo aos pedaços, da mesma forma que o soberano encontra-se fraco e adoentado, à beira da morte. Estupefato, Parsifal emudece diante da cena e vai embora, sem fazer a pergunta-chave que restabeleceria o esplendor do reino e a saúde do rei.
Burro, esse menino, pois mais tarde, quando percebe qual pergunta deveria ter feito, não consegue mais encontrar o caminho de volta para o Castelo do Graal e fica vagando por anos em meio às brumas de Avalon. Até que, pimba, reencontra de súbito o Castelo do Graal, penetra lá de novo e, dessa vez, faz a pergunta certa ao rei: “Tio, o que te aflige?”. Agora, sim, o reino volta a ter vida, o monarca se recupera e Parsifal é sagrado o novo Rei do Graal. Tudo porque aprendeu o valor poderoso da empatia, a capacidade psicológica de sentir o que o outro está sentindo e ter compaixão por ele, demonstrando importar-se.  A tradição sul-africana emprega o termo “ubuntu” para designar o sentimento de humanidade para com os outros. Nossos reinos contemporâneos talvez precisem de doses cavalares de ubuntu para evitar a decrepitude a que podem estar sujeitos, não acha, madama?
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 10 de dezembro de 2018)

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

O real valor de um presente


Matheus Monteiro é o nome de um jovem cidadão brasileiro que ganhou as páginas do noticiário na semana passada. Morador da periferia de Bragança Paulista (SP), ele comemorou seu aniversário de 12 anos na quarta-feira, dia 28. Um dos presentes mais significativos que recebeu veio de um tio, que lhe deu a quantia de R$ 35,00 para que ele fizesse o que quisesse com o dinheiro. Matheus não pensou duas vezes e decidiu destinar a verba para seu colega de escola e grande amigo, Iago Oliveira, que não poderia participar de uma excursão promovida pela escola, por seus pais estarem desempregados e não disporem da quantia, vital para a manutenção básica do cotidiano da família, composta ainda por mais quatro irmãos. O valor total do passeio que levará a turma da quinta série de uma escola municipal paulista amanhã, terça-feira, para dois museus em São Paulo, é de R$ 45,00 por aluno. Os R$ 10,00 faltantes na quota de Iago, o pequeno Matheus integralizou solicitando diretamente com sua mãe, que anuiu.
Matheus e Iago, além de colegas e amigos, são vizinhos e caminham juntos de suas casas até a escola todos os dias, há quatro anos. Na quinta-feira passada, um dia depois do aniversário de Matheus, a dupla rumou direto à sala da diretora, com a missão de solucionar a presença de Iago na lista dos alunos que participarão da tão sonhada excursão. Matheus chegou perguntando se ainda era possível inscrever Iago na lista, e depositou os R$ 45,00 em cima da mesa da diretora, em um montinho de notas de R$ 10,00, R$ 5,00, R$ 2,00, retiradas do bolso. A diretora quis saber de que forma Matheus havia obtido o dinheiro e, ao ouvir o relato, inscreveu prontamente Iago na lista, para a alegria de ambos. Dessa forma, Matheus terá como presente de aniversário a preciosa e inestimável companhia do grande amigo Iago nas visitas ao Museu Cultural e Educacional Catavento e ao Museu do Futebol em São Paulo. Isso não tem preço!
Devido a seu ato de altruísmo (e de cidadania, e de humanidade e de coração), Matheus ganhou, na escola, uma Medalha de Atitude Solidária. E também recebeu de volta os R$ 45,00, pois a instituição decidiu custear o passeio de Iago. Os dois estão felizes, e Iago poderá ajudar Matheus, no passeio, a carregar sua mochila, recheada com dez sanduíches de mortadela, que Matheus pediu para sua mãe preparar. Não, ele não é comilão. É para oferecer a algum coleguinha que eventualmente não tenha lanche. Não é preciso inventar crônica quando a vida real ainda se mostra capaz de proporcionar a renovação da esperança na espécie humana.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 3 de dezembro de 2018)