sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Vida no vídeo


Noite dessas assisti a um programa interessante e inteligente na tevê a cabo (ei, leitor, volte aqui, não estou sacaneando). Foi no Canal Futura (ahá, começou a acreditar, né?), no qual não há novelas, nem programas de auditório, tampouco (i)reality shows. O que há lá então? Há justamente isso: programas inteligentes e interessantes, que lhe proporcionam alguma coisa útil em troca do precioso tempo vital que você mansamente oferta ao tubo (hoje nem há mais tubo) durante as horas de lazer nas quais opta por ficar anestesiado no sofá da sala.
Tratava-se de um programa britânico em que a produção retirava durante alguns dias uma família (composta pelos pais e quatro filhos) de sua casa e transformava a habitação em um típico lar do início dos anos 1970. O ambiente foi remodelado para receber de volta os moradores, que seriam monitorados durante um mês vivendo ali restritos apenas às facilidades propiciadas pela tecnologia existente na época. Que tortura, especialmente para as crianças, viver 30 longos dias sem internet, sem computador, sem Playstation, sem telefone celular, sem mp4 e toda a parafernália eletrônica que ocupa o espaço vital dos seres humanos desse milênio. A cada três dias, o “relógio do túnel do tempo” avançava um ano, permitindo a família acompanhar a evolução da tecnologia da época por meio de “presentes” vindos da produção, como um freezer, um televisor preto e branco, uma máquina calculadora, um toca-fitas.
Mas, muito além da questão tecnológica, a família é colocada em contato com um estilo de vida diferente, que se esvaiu com o passar dos anos e ficou plasmado em uma época que, a bem da verdade, nem está tão distante assim. O que fazer quando falta energia elétrica na casa (bem, convenhamos, temos disso até hoje), por exemplo? E como conviver em família sem se trancar no quarto para atualizar a página do Facebook? Algumas reflexões ficaram para os protagonistas da aventura e também para os telespectadores, em termos da necessidade urgente de resgate de valores de convivência, que, se permanecerem relegados aos tempos da calça boca-de-sino, seguirão nos conduzindo aceleradamente rumo ao precipício da nossa própria desumanização.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de setembro de 2012)

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

O lado ocre da vida


(Ocre, bem ocre, igual ao ocre pintado na lareira da Rua dos Viajantes)

Vamos direto ao assunto, sem meios-tons. Você conhece o ocre? Pois o ocre surgiu em minha vida no longínquo ano de 1975, quando meus pais resolveram reformar a casa em que morávamos na Rua dos Viajantes, em Ijuí, e pintaram a parte externa da lareira da sala com uma cor estranha, que identifiquei como sendo marrom. “Por que pintaram de marrom?”, perguntei, engarupado na curiosidade insaciável que definia a essência de meus nove anos de idade (a julgar por isso, jamais saí dos nove anos de idade). “Não é marrom, guri, é ocre”, responderam meus pais, causando-me espécie, porque respostas surpreendentes sempre me causaram espécie (essa indecifrável expressão, aliás, também me causa uma certa espécie).
Assim, com o surgimento do ocre no meio do caminho, deu-se uma ampliação na paleta das cores que até então figuravam em meu restrito universo cromático, delimitado pelos 12 matizes existentes na minha caixinha de lápis-de-cor (que traiçoeiramente incluía os lápis preto e branco, o que eu julgava uma sacanagem do fabricante). Extasiado com a descoberta daquela insuspeitada cor cravada ali na nossa casa, não perdia a oportunidade de aproveitar a visita de parentes e adultos em geral para apresentar-lhes a estrutura da lareira apontando com o dedo e perguntando: “Ó, sabe que cor é aquela? É ocre”, pelo que me olhavam de canto de olho e, mudos, consolidavam suas suspeitas de que eu não era mesmo desse mundo.
Porém, nem tudo era cinza. No amplo quintal da casa (houve um tempo na história da humanidade em que as crianças interagiam juntas e ao ar livre nos quintais das casas), às vezes brincávamos de uma variação do “pegador” (ou “pega-pega”), que consistia em formar um círculo ao redor do líder, cuja incumbência era gritar aleatoriamente o nome de uma cor, ao que os demais saíam em disparada tentando encostar-se em algo colorido naquele tom, a fim de ficarem imunes à pegada. Na minha vez de ser líder, gritava “ocre”, deixando todos paralisados e pasmos, tontos como baratas, sem saber para onde correr, o que me propiciava abater um a um com minha inclemente pegada. Desde pequeno aprende-se a usar o conhecimento a nosso favor, mesmo que seja o ocre.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de setembro de 2012)

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Protagonistas e coautores


Por que o escritor escreve? Por que o músico compõe? Por que o pintor pinta e o escultor esculpe? Por que, enfim, os artistas colocam em ação a imaginação para criar elementos que originalmente não existem no mundo que os cerca? Questões como essas costumam vir à tona quando se debate a origem do impulso que move o artista a produzir arte. A resposta, a meu ver, é simples: porque o mundo real não basta para conferir plenitude à nossa existência.
 O escritor catarinense radicado no Paraná, Cristóvão Tezza revela, em seu recente livro “O Espírito da Prosa”, que, quando criança, ficava tão encantado com a leitura das obras de Monteiro Lobato que, logo após fechados os livros, desenhava os personagens do Sítio do Picapau Amarelo em um papel, recortava as figuras e representava histórias com elas em um teatrinho confeccionado em caixa de sapatos. A arte que ele lia nos livros não lhe bastava. Então, criava novas aventuras que não constavam nas páginas de Lobato e as encenava para si mesmo, na solidão de seu quarto, em Curitiba.
Em Ijuí, na Rua dos Viajantes em que morei toda a infância e adolescência, a solidão de meu quarto servia de palco para algo semelhante. Com uma tesourinha de ponta arredondada, eu recortava dos gibis as figuras dos super-heróis de minha preferência e brincava com eles em cima da colcha da cama, criando também novas aventuras que iam além das tramas publicadas nos quadrinhos. Para mim também a arte que vinha impressa não me bastava, eu precisava ir além, criar os meus próprios enredos, as minhas tramas.
Recentemente uma leitora me escreveu relatando suas sensações após visitar uma mostra de fotografias. Ela percebeu “que o mais lindo de cada foto era exatamente aquilo que não constava nela, mas o que era apenas sugerido por ela”. Assim, concluiu que “as obras de arte sempre estão inacabadas e nós, os apreciadores, tornamo-nos coautores delas”. Justamente por termos essa capacidade inerentemente humana de ampliar o mundo artístico que nos cerca é que somos também dotados do poder de transformar nossas próprias vidas em obras de arte. Na vida, no entanto, não somos coautores, mas, sim, os protagonistas. É preciso dar pinceladas certeiras.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de setembro de 2012)

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Um pouco mais de luz


Somos, por natureza, seres insaciáveis. Queremos sempre mais, especialmente mais daquilo que nos dá satisfação. A começar pelo tempo de vida. Queremos viver muito e, de preferência, para sempre. Se possível, gostaríamos também de, dentro de nossas próprias existências, desfrutar de tudo aquilo que detectamos haver de bom também na vida dos outros. Avançando mais um pouco, gostaríamos até de poder vivenciar as sensações que outros experimentam ou experimentaram, sejam elas boas ou más, sem que isso nos afete diretamente. E é aí que entra em cena o papel das artes.
Exatamente isso é o que nos propicia a arte: a chance de vivenciarmos experiências que não são as nossas, de vivermos vidas diferentes dessa que protagonizamos desde que levantamos da cama para mais um dia. Ao folhearmos as páginas de um livro, podemos estar durante algumas horas montados sobre um cavalo chamado Rocinante e atacar doidivanasmente alguns moinhos de vento. Ao assistirmos a um filme de Woody Allen, podemos perambular por Paris e, num passe de mágica, retornar ao passado para reencontrar personalidades históricas que admiramos. E paralelamente a isso, podemos inserir nos enredos pedaços de nossa própria fantasia e imaginar situações que não estão impressas no livro ou explícitas na tela do cinema, nem encenadas no palco do teatro, ou pintadas no quadro ou flagradas pelas lentes do fotógrafo. Sobre o que pensa “O Pensador”, de Rodin? Ora, isso decido eu, quando me ponho a observar a escultura, pois esse é um poder que o desfrutar de uma obra de arte me proporciona.
A poetisa Vivita Cartier, antes de morrer de tuberculose em Criúva, costurava de volta nos galhos das árvores as folhas que o outono derrubava ao chão, em uma poética e metafórica tentativa de prolongar a vida que se lhe esvaía pela tosse ingrata. “Mais luz!”, pedia Goethe em seu leito de morte. Na entrelinha de sua frase, clamava mesmo era por um pouco mais de vida. Assim como nos ensinou o escritor alemão com seu ato derradeiro, também nós podemos obter essa “luz a mais” no transcurso de nossas existências por meio das transposições de vidas que o saborear das artes nos proporciona.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de setembro de 2012)

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

O futuro possível no folhear das páginas



Esteve em debate dia desses, como tema dos encontros literários intitulados “Máquina de Escrever”, promovidos pelo escritor Marco de Menezes, pelo jornalista Carlinhos Santos e por este cronista, a questão da ficção-científica enquanto gênero maltratado como um dos patinhos feios da literatura. Junto com o participativo público presente ao agradável debate realizado nos domínios da livraria e cafeteria Do Arco da Velha, em Caxias do Sul, ocupamo-nos em demonstrar que o gênero merece um olhar mais cuidadoso e desprovido do preconceito típico que gosta de rapidamente classificar como “subliteratura” tudo aquilo que não se enquadra em classificações tidas por “nobres” como romance, conto, crônica e poesia.
Ao refletirmos sobre as origens da ficção-científica por meio da análise das obras de alguns autores como Mary Shelley e sua novela gótica “Frankenstein”, Edgar Allan Poe e seu conto fantástico intitulado “A Aventura Sem Paralelo de Um Tal Hans Pfaal”, Robert Louis Stevenson e a história de horror científico-psicológica “O Médico e o Monstro” e outras, percebemos que, desde os primórdios, um elo parece ser comum a todas essas obras e se faz presente nos demais títulos posteriormente exercitados pelos autores fundadores do gênero, mantendo-se presente nas criações dos modernos que se dedicam a esse campo literário. Esse ponto comum poderia ser resumido como a tentativa de resposta ao anseio do ser humano em antecipar o futuro em busca de conforto psíquico para sua existência no presente. Por meio do exercício livre da imaginação transposto às artes, no caso, as literárias, buscaríamos a sensação tranquilizadora de antever o que o futuro nos trará, por mais sombrio que seja, para aplacar assim nosso visceral temor pelo desconhecido. Nisso reside talvez, em boa parte, o interesse despertado por essas obras, no transcurso dos últimos séculos.
Refutando a pecha de “má-literatura” e mesmo a de “subliteratura”, preocupamo-nos em mostrar, durante o referido debate, a qualidade de várias obras cujas temáticas e abordagens se encaixam dentro do gênero ficção-científica, várias delas assinadas por irrefutáveis grandes lumes da literatura universal. Entre esses, citamos, por exemplo, gente como H.G.Wells (“A Máquina do Tempo”, “A Guerra dos Mundos”, “O Homem Invisível”), Jules Verne (“Vinte Mil Léguas Submarinas’, “Viagem à Lua”), Adolfo Bioy Casares (“A Invenção de Morel”, “A Trama Celeste”), Jorge Luis Borges (”O Aleph”), Ray Bradbury (“Farenheit 451”, “As Crônicas Marcianas”), Isaac Asimov (“Eu, Robô”), Arthur C. Clarke (“2001: Uma Odisseia no Espaço”), George Orwell (“1984”), Aldous Huxley (“Admirável Mundo Novo”), Ignácio de Loyolla Brandão (“Não Verás País Nenhum”), Ítalo Calvino (“As Cosmicômicas”). Todos são literatura de primeira qualidade, sem exceções.
Claro que, nesse ponto, cabe o questionamento relativo ao que é “boa literatura”, conceito abstrato e essencialmente personalizado, decorrente do senso estético e das vivências de cada um. No entanto, geralmente somos unânimes em classificar como “boa” toda a literatura (e também toda a expressão artística da natureza que for) que consegue estabelecer alguma espécie de comunicação conosco, que consegue falar à nossa alma, representar nossas angústias, anseios, temores. Assim sendo, a “boa” ficção-científica é aquela que, em última análise, por trás de robôs cibernéticos, naves espaciais, sistemas totalitaristas, drogas anestesiantes etc, proporciona alguma espécie de reflexão sobre a condição humana. E todas as obras e autores citados nesse texto possuem esse atributo, valendo a pena serem lidas. Um mundo despido de preconceitos, inclusive os literários, é talvez uma das maiores utopias de ficção-científica que já se pôde imaginar.
(Texto publicado na seção "Planeta Livro" da revista "Acontece Sul", edição de agosto de 2012)

sábado, 1 de setembro de 2012

Meu super-herói preferido


Peter Parker é o nome da pessoa comum que se esconde sob a máscara do Homem-Aranha. Tony Stark é o Homem-de-Ferro. Bruce Wayne é o milionário que se transforma em Batman e Clark Kent é a identidade terráquea do Super-Homem. Essas são informações de domínio comum a quem passou a infância lendo gibis, como eu, ou acompanha avidamente as recentes produções cinematográficas de Hollywood, como os adolescentes contemporâneos. O fascínio que esses personagens exercem no imaginário juvenil é o fato de, por trás das máscaras de super-heróis, serem todos eles cidadãos triviais, inseridos na vida diária sem chamar a atenção para os poderosos feitos que protagonizam quando vestem seus uniformes, em nome do bem comum.
Minha vida de leitor me colocou em contato imaginário com esses seres fantasiosos durante muitas vezes ao longo dos anos. Ultimamente, no entanto, minha atual carreira de escritor tem me proporcionado um contato próximo com heróis em carne e osso, que atuam em nome do bem comum e da proteção dos cidadãos na vida real: os professores de ensino fundamental e médio. Desprovidos de superpoderes, sem uniformes coloridos e sem identidades secretas, usam seus nomes verdadeiros e todos os poderes que a criatividade e a vontade de ensinar lhes oferecem, em nome da luta contra o maior de todos os vilões: a ignorância e o distanciamento do saber.
Independentemente do valor dos salários que recebem, a despeito da eventual falta de condições estruturais e mesmo emocionais, conseguem superar os maiores obstáculos e fazem a diferença, despertando o encantamento pela leitura em crianças e jovens estudantes que, de forma lúdica e sensível, recebem as dicas relativas a um caminho a ser trilhado rumo à transformação pessoal e à conquista da cidadania. O brilho que ilumina os olhos de crianças e adolescentes ao travarem contato com o autor dos livros e crônicas que trabalharam em sala de aula encontra eco no brilho da alma dos professores que, naquele mágico momento, têm a certeza de que alguma semente vital foi plantada.
São meus heróis de hoje, esses educadores de carne e osso. E sequer precisam invocar os poderes de Greyskull.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 31 de agosto de 2012)