sexta-feira, 31 de julho de 2015

Desfez-se a luz

Ontem, parte do meu mundo veio abaixo, caiu, ruiu, desmoronou, esfacelou-se. Uma crença que eu tinha arraigada no âmago de meu ser foi colocada por terra devido a uma informação que sempre ficara distante de meus domínios de conhecimento, sabe-se lá por quais artimanhas do Destino, essa entidade insondável e ardilosa. Depois disso, passo a engrossar e endossar as fileiras dos adeptos das teorias da conspiração, e contem comigo para afirmar que os atentados do 11 de Setembro foram armação dos próprios Estados Unidos; que o homem jamais pisou na Lua e tudo não passou de um truque de estúdio cinematográfico; que os gatos se comunicam telepaticamente entre si ao redor do planeta, detentores de uma rede de informações superior à internet; que Elvis Presley não morreu; que Barack Obama é, na verdade, um extraterrestre; que os discos da Xuxa, se tocados ao contrário, divulgam mensagens esquisitas, tudo isso e ainda mais, muito mais.
E tudo isso, e tanto mais, devido à aparentemente simples revelação de que os palitos de fósforo, na verdade, não contêm fósforo algum. Eles não são de fósforo, minha senhora, meu senhor, moços e moças. Está escrito na caixinha que os palitos são de fósforo, você adquire a caixinha crente de que ela está repleta de palitos de fósforo e, no entanto, não há neles fósforo algum. O fósforo, saibam aqueles que não sabiam, como eu, está, isso sim, incrustado é nas laterais da caixa, naquela faixa escura em que você risca o palito embusteiro. Não são palitos de fósforo, mas, sim, caixinhas fosforadas. Como pude passar quase meio século de existência seguro de que empunhava palitos de fósforo ao fazer fogo para acender a lareira que aqueceria os invernos ijuienses, para acender as churrasqueiras nos almoços de final de semana, para acender as velas nas quedas de luz que escureciam a cidade e abriam as estrelas do céu? Como?

O fósforo, então, reside é na tarja escura da caixinha, e a combustão do palito se dá devido ao atrito das substâncias químicas inseridas na sua cabeça (onde eu sempre jurei que residia o fósforo) contra o fósforo que está na tarja. Voilá! E fez-se a luz. Não que eu tenha ficado de cabeça quente frente a essa incendiária revelação, mas, pô, assim não dá para acreditar em nada, mesmo. A verdade é realmente uma fagulha fugaz de luz.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 31 de julho de 2015)

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Olha a onda

Até alguns minutos antes de me botar a escrever estas linhas, eu tinha uma certeza a respeito de mim mesmo, que se transformaria no fio-condutor do texto de hoje. Depois de não muito pensar (pensar em demasia sempre dói), concluí que eu não sou uma pessoa que vai na onda dos modismos, e iria discorrer aqui a respeito de ondas e de modismos. Só que não.
O que me conduziu a essa rápida conclusão sobre mim mesmo (criatura rasa e banal, sou simples de decifrar) foi o fato de que eu não entrei nessa onda de adquirir os tais dos livros para colorir destinados ao passatempo de adultos, que tanto andam fazendo sucesso nas prateleiras das livrarias, onde desbancam das vitrines os outros livros, aqueles repletos de linhas impressas escritas por escritores, destinados à leitura por parte de leitores. “Não, não entrei nessa onda, porque não sou uma pessoa que entra em ondas”, raciocinei, e escreveria sobre isso. Mas raciocinei errado.
É verdade que não entrei na onda dos livros para colorir para adultos. Primeiro, porque não tenho caixa de lápis-de-cor desde que ingressei no Segundo Grau, e isso faz tanto tempo que nem se imaginava, na época, que Segundo Grau se transformaria em Ensino Médio séculos mais tarde. Décadas mais tarde, desculpem o exagero. Segundo, porque sou péssimo em colorir, isso ainda desde a época do Primeiro Grau, milênios atrás, e desculpem de novo. Mas isso são desculpas furadas, não entrei na onda porque achava que eu era uma pessoa que não entra em ondas, só que meu passado me condena. No início dos anos 1990, por exemplo, houve a onda de pendurar bonequinhos de pelúcia no espelho retrovisor dos veículos, que também podiam ser encontrados afixados com ventosas de plástico nos vidros laterais e traseiro dos carros. Trafegava-se pelas ruas deparando-se com Frajolas, Garfields e Piu-Pius balançando as cabeças dentro dos automóveis, sendo que, no meu, havia um rato cinza narigudo.

Então, é inverdade que eu não mergulho em ondas. Não posso escrever uma crônica afirmando isso. Somente nas ondas do mar eu não entro mesmo, por puro medo e respeito. Aproximo-me delas apenas quando já chegam mansas na beira da praia, transformadas em pequenas marolas. Só o que posso dizer sobre mim, portanto, é que sou chegado a marolas.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de julho de 2015)

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Apenas ser, já era

O mundo está cada vez mais especializado, em todos os aspectos, em tudo o que nos cerca. É uma tendência, a coisa segue por esse rumo, não há como fugir. É preciso aceitar e aprender a conviver com as novas regras, dançar conforme a música para não dançar no sentido figurado, que é o de sobrar, ficar deslocado, fora de moda, estranho no ninho, penetra na festa.
A era dos generalistas, dos amadores, dos chutadores e dos diletantes está se acomodando no passado. É uma era que já era. Não basta mais conquistar uma vaga na universidade e fazer a graduação, para orgulho da família. Não. É preciso especializar-se. É preciso fazer mestrado, doutorado, pós-doutorado, para realmente começar a fazer a diferença. Não basta, tampouco, ser criança nesses dias de hoje. É preciso ser criança que vai à escola e depois faz aula de inglês, de natação, de judô, de computação e assim por diante.
Também não basta mais ser velho. Até porque, hoje em dia, ninguém mais fica velho, mas, sim, idoso. Terceira idade, não é mesmo? Pois também não dá mais para estacionar na tranquilidade aposentada da terceira idade. É preciso cursar cursos especiais para a terceira idade, participar de excursões, ir a bailes, esbanjar saúde, transformar-se em exemplo a ser seguido. É preciso ser especialista em tudo hoje em dia. Especialista em ser criança, em ser profissional, em ser idoso, em tudo.

Até em nossos passatempos precisamos nos especializar, senão, comemos poeira. Eu, por exemplo, até uns anos atrás andava pilotando o fogão e mexendo nas panelas, depois de ter feito algumas oficinas culinárias, me metendo a produzir refeições gourmet em casa, a título de hobby. Agora, com essa onda de reality shows gastronômicos na televisão, passei a estar rodeado de master chefs por todos os lados, e sou bombardeado pelo croque monsieur preparado por minha mãe, pelo rosbife ao molho de mostrada feito pela esposa, pela rapadura de amendoim com chocolate meio-amargo do compadre, pela lasanha cinco queijos da sogra, pelas maioneses especiais das cunhadas, pelos filés no disco ao molho vermelho do cunhado, pelo fricassê de frango da irmã, pela costela com tempero secreto do sogro... Ninguém mais bebe vinho, todos degustam varietais. E eu, eu já era. Como tenho vocação para amadorismo, só me resta voltar ao feijão com arroz, ovo frito e bife...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de julho de 2015)

terça-feira, 28 de julho de 2015

Lá vai o Halley

O Cometa Halley está em periélio, e que diabos significa isso, e por que razão uma coisas dessas, seja lá o que for, é motivo para crônica, há de perguntar a senhora leitora, o senhor leitor, e eu, então, explico, antes que seja tarde demais, se bem que, em se tratando de assuntos astronômicos, tarde e cedo são conceitos relativos, mas tudo bem, tudo bem, calma, largue esse chinelo e sente-se que já explico. Comecemos pelas partes e depois unamo-las para a compreensão do todo, pode ser assim? Ótimo, vamos lá, o parágrafo seguinte será mais elucidativo, perseveremos.
O Cometa Halley é um astro celeste, um cometa, descoberto pelo astrônomo britânico Edmond Halley (1656 – 1742) em 1696. É um cometa (sabe as estrelas cadentes que a senhora, o senhor e eu víamos em nossas infâncias cruzando os céus à noite, naqueles tempos em que as pessoas gostavam de dirigir os olhos aos céus à noite, diferentemente de hoje, em que os olhos à noite se grudam nas telas de televisores, smartphones, computadores e ipads – pois algumas estrelas cadentes são cometas) periódico, que faz uma elipse (sua trajetória) em torno do Sol, passando pela Terra a cada 75 anos, pouquinho mais, pouquinho menos. A última vez que deu as caras por aqui foi em 1986, quando eu tinha 20 anos de idade, e lembro da euforia que vivenciei para observá-lo com meu binóculo.

Pois o Cometa Halley está hoje, dia 28 de julho de 2015, em periélio, ou seja, está, dentro de sua trajetória pelo Sistema Solar, cruzando o mais próximo possível do Sol, lá longe, a milhões de quilômetros daqui. Já sabemos o que é o Cometa Halley e que ele está em periélio. Ainda temos algumas poucas linhas para exercitar a crônica, vamos lá. O Cometa Halley deve retornar às proximidades da Terra no ano de 2061, ou seja, daqui a 46 anos. Se estiver ainda vivo e andando por essa Terra, terei 95 anos de idade quando colocarei meus olhos nele outra vez. Para isso, bastará, além de estar vivo, ter ainda a visão em boa forma, porque o resto eu garanto, uma vez que não abandonei e não abandonarei jamais o hábito de observar o céu à noite, atrativo que ainda exerce sobre mim fascínio bem maior do que as telas dos ipads e smartphones. Eis aí a crônica. E agradecido por abaixares o chinelo...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de julho de 2015)

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Ponto para o Dr Gilberto

Numa dessas minhas idas a Ijuí, minha terra natal, onde nasci há quase meio século (odeio essas crônicas pessoais nas quais, quando vejo, estou a revelar verdades inescondíveis), reencontrei meu pediatra, o doutor Gilberto. Ele é uma dessas figuras que se tornam, com o passar dos anos, em personagens quase surreais dentro da gama de personalidades que foram exercendo papeis cruciais na moldagem de nossa própria existência. O doutor Gilberto é uma dessas figuras, e das mais importantes, porque, se consegui chegar a essa idade respeitável (eu ia escrever “longeva”, mas dei-me um tapa na mão), é porque coube a ele debelar os males que me foram atacando na infância.
Tive catapora quando criança, em Ijuí, e foi o doutor Gilberto quem medicou e receitou as pomadinhas que tinha de passar sobre as feridas que secavam e coçavam. Tive gripes, febres, dores de garganta, e lá íamos, minha mãe e eu, de Kombi-lotação, até o consultório do doutor Gilberto, para abrir a boca, mostrar a língua, contar até 33 (verdade ou ilusão provocada pelo recriar da realidade?), ter o peito auscultado, receber batidinhas nas costas, respirar fundo, soltar o ar devagar, inspirar de novo, soltar. Havia brinquedos na sala de espera, mas eu os ignorava, preferindo sempre ficar sentado em um canto, ao lado da mãe, folheando os gibis. Tomava os remédios sem rebeldias (ao menos, nisso, e tapa nessa mão que insiste em enfiar parênteses), ficava curado e ponto para o doutor Gilberto.
Quando percebi que estava na hora de deixar de ser criança e ficar grandinho, lá pelos cinco anos de idade, que é quando a gente começa a ter história atrás da gente e a detectar gentes menores do que a gente em volta, decidi que devia abandonar a companhia do porquinho de pano que eu levava comigo junto sempre que ia ao dentista, ao pediatra e ao farmacêutico para tomar injeção (na Farmácia do Chico). Doutor Gilberto sentiu falta dele em uma das consultas, atento que era.

Mas eu dizia que reencontrei o doutor Gilberto, lá em Ijuí, dia desses. Cabeça repleta de cabelos branquinhos, jovial e simpático como sempre, posamos juntos para uma selfie, eu uns 20 centímetros mais alto do que ele. “Cresceu bem esse guri, é a prova de que acertei nos remédios”, orgulhou-se ele. Eu sou a prova da competência de meu pediatra. Agora, sim, posso aposentar de vez o meu porquinho...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de julho de 2015)

domingo, 26 de julho de 2015

Um sonho amazônico

Um brilho diferente arrebata os olhos daquele homem quando ele fala sobre a Amazônia. A opacidade típica do olhar de quem está compenetrado efetuando um complexo trabalho manual cede lugar para olhos de sonho nos momentos em que as sílabas da região brasileira são moldadas dentro de sua boca. Pode-se detectar o açúcar que ele despeja sobre a longa palavra, que saboreia na língua frações de segundo antes de pronunciá-la e fazê-la chegar já doce aos ouvidos do interlocutor, na intenção de arregimentar simpatizantes para a sua causa pessoal de, um dia, quem sabe, poder conhecer a Amazônia.
Comigo, funcionou e fui rapidamente cooptado, até porque, sou uma pessoa altamente influenciável, especialmente quando se trata de endossar os sonhos dos outros, se expressados de forma assim tão genuína, verdadeira, intensa. Não sei o nome dele, tampouco a idade, mas a julgar pela observação e pela experiência, diria que está na faixa dos 60 anos repletos de vivências, muitas das quais, pelo visto, ensinaram-lhe a sonhar. Não sei de onde ele é, se nascido aqui, se imigrado de proximidades ou lonjuras, só sei que trabalha na borracharia onde dia desses tive de me tornar cliente devido ao rasgo em um pneu causado por buraco urbano despencado em nossas ruas diretamente da lua pela força das chuvas. Foi-se o pneu e fui-me à borracharia, onde conheci o homem que sonha em conhecer a Amazônia.
Não sei por que cargas d´água (e como tem havido cargas de água por aqui nesses últimos dias) o assunto entre nós descambou para sonhos de viagem, talvez porque nuvens de chuva voltavam a ocupar o céu que dera espaço ao sol por um breve par de horas e nos dizíamos cansados desse clima sulista que tanto exige e castiga. Eu brincava dizendo que iria fugir para a Bahia, quando ele, tendo o pneu furado subjugado sob seus joelhos (ele a onça, o pneu a paca, uma cena amazônica representada ali à minha frente), levantou a cabeça e alçou para mim aqueles olhos permeados de sonho que, sem a menor brincadeira, almejavam um dia poder viajar e conhecer a Amazônia.

A Amazônia é a Pasárgada desse homem de lides manuais e certeiras. É lá que reside parte da concretização de seus sonhos e haverá de chegar o dia em que a Amazônia terá o prazer da visita desse consertador de pneus daqui do sul, que ainda não abandonou a vital capacidade de saber sonhar, faça sol ou faça chuva, e como chove!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de julho de 2015)

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Um consolo térmico

Ô inverninho gelado esse, hein? Fazia tempo que não enfrentávamos um  inverno tão rigoroso, com tantos dias seguidos de frio intenso. Às vezes nem é tanto o frio em si, mas sim a sensação provocada por um conjunto de fatores que nos predispõem psicologicamente (e fisicamente também, claro) a batermos queixo e a enterrarmos nossos pescoços blusões adentro, como o vento, a umidade, a neblina, a chuvinha intermitente, a ausência pura e simples do sorriso do sol, os exércitos de nuvens roxas estacionados bem acima de nossas cabeças. E isso que ainda nem geou! Ou geou? Geou? Não? Sim? Não importa: tá frio!
Pois bem, como sou um cronista notadamente leve e mundano (não confundir com leviano e mundista), preocupo-me com o bem-estar psicológico de meus leitores e foi por essa razão que decidi aqui elencar uma série de informações que, espero, colaborem para, se não aquecer um pouco mais seus dias gelados, ao menos municiá-los de dados que amenizem essa sensação de pena que temos de nós mesmos, achando que estamos a enfrentar as piores temperaturas do planeta. As coisas não são bem assim, dê só uma espiada nos próximos parágrafos.
Está reclamando por morar na Serra Gaúcha porque aqui faz frio de obrigar pinguim a caminhar de pantufa e foca a dormir de touca? Isso porque você não sabe que a mais baixa temperatura já registrada na Terra se deu na Estação Vostok, na Antártica russa, em 21 de julho de 1983, quando os termômetros assinalaram 89,2 graus centígrados abaixo de zero! E a gente aqui reclamando de oito graus acima de zero! Esse registro superou o anterior, que era de 71,2 graus negativos, ocorrido na Rússia em 1926. Sorte sua que nem era nascido naquela época, muito menos na Rússia, hein? No Brasil, o recorde de temperatura negativa deu-se em 1952 na cidade de Caçador, em Santa Catarina: -14º C! Que tal?

E vamos em frente. Mais dados gelados, extraídos diretamente do fundo do freezer para amenizar sua sensação de infelicidade térmica. Dê graças a Deus por não morar em Marte, planeta vizinho nosso que chega a apresentar temperaturas de até 143 graus negativos em certas regiões. E nem pense em pular para Vênus, onde a temperatura mínima na superfície pode chegar a 220 graus abaixo de zero. Quer saber como é a coisa em Plutão, o planeta mais distante do Sol? Não? Ok, não vou mais incomodar. Bom inverno!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de julho de 2015)

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Buraco no paralelepípedo

Ah, que pena! Choveu tanto, mas tanto ultimamente, que os buracos não só invadiram e se acharam no direito de tomar posse das ruas, avenidas e perimetrais asfaltadas de toda a cidade, como também tiveram tempo para contaminar o calçamento de paralelepípedos que atapeta a rua defronte ao prédio em que moro. Daqui de cima, pela janela do escritório caseiro (“home-office”, como sugere meu contador que eu denomine a peça, para conferir-lhe mais elegância), detecto uma das pedras levantada pela força das águas, abrindo assim espaço para o acomodamento de um indesejável buraco bem no meio da rua. Que droga!
A rua de paralelepípedos relativamente recém colocados, há pouco mais de um ano, ainda conservava a pureza da simetria de suas linhas, os paralelepípedos paralelamente emparelhados lado a lado, linha por linha, subindo em formação certeira desde a esquina de baixo da rua até os cem metros acima, como um exército de soldadinhos de basalto marchando em formação rumo à meta, na verdade um destino inalcançável decorrente de um exército imóvel cuja função é justamente proporcionar o bom curso da mobilidade dos outros sobre o escudo seguro advindo do laço firme entre cada pedrinha. Porém, no meio do caminho surgiu um buraco, uma imperfeição a destoar da uniformidade visual obtida pela simetria só possível de ser atingida a partir da formação dos paralelepípedos simetricamente acotovelados entre si.
O buraco é a nota desafinada na sinfonia dos paralelepípedos; é a célula danosa a comprometer a saúde do tecido paralelepipedal; é o ácaro a contaminar o tapete basáltico dos paralelepípedos; é a laranja podre no meio do cesto de paralelepípedos maduros e frescos; é o erro tipográfico que mancha a página até então imaculada da poesia paralelepípeda, na qual cada pedrinha faz as vezes de uma letra e cinco ou seis delas compõem um verso. Eu achava, até então, que era impossível extrair poesia de pedras de basalto e que paralelepípedos só haviam auxiliado a compor beleza estética uma única vez na vida, e em inglês, quando “cobblestones” foi usada por Paul Simon em um dos versos de sua genial canção “Sound of silence”.

Que nada! O ataque do buraco abriu meus olhos para a poesia dos paralelepípedos que atapetam parte da visão diária que tenho de minha janela. Paralelepípedos e buracos... De fato, a poesia mora nos olhos de quem a quer ver...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de julho de 2015)

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Exemplos de ouro

Não tenho tempo para acompanhar todas as transmissões que os canais de tevê proporcionam, enfocando as competições das diversas modalidades esportivas em disputa nos Jogos Pan-Americanos que se desenvolvem em Toronto, no Canadá. Pior: confesso que fui meio que pego no contrapé, porque, quando me dei por conta, o Pan já havia começado e eu sequer havia me preparado. Preparar-me, nesse caso, significa obedecer a um ritual autoimposto para minha condição de telespectador ativo: lugar no sofá da sala reservado; tabelas e agendas das competições extraídas dos jornais e à mão; estoques razoáveis de salgadinhos, bebidinhas e porcarias em geral a serem consumidos ao longo do período, essas coisas que faço quando rolam Copas do Mundo e Olimpíadas. E que o Pan também mereceria e merece.
Só sei que, quando vi, dias atrás, minha esposa gritou lá da sala, afirmando que estavam transmitindo a solenidade de abertura do Pan. “Pan?”, gritei eu, de volta. “É!”, respondeu ela. “Transmissão ao vivo?”, voltei a perguntar, corredor adentro. “Sim!”, confirmou ela. “Solenidade de abertura?”, insisti. “Aimeudeus!”, começou ela a se irritar, com cavalar dose de razão. Vim correndo, deixando parte das chinelas no chão do corredor, meu lugar especial no sofá da sala desprovido de reserva e já ocupado por ela, mas tudo bem, e ainda consegui assistir ao desfile da delegação brasileira de atletas. Agora, ao longo das últimas semanas, reservo as noites para acompanhar as transmissões das modalidades que vão sendo disputadas ao vivo naqueles horários, dessa vez a diferença de fuso horário jogando a nosso favor, dando prioridade aos esportes que mais aprecio, como ginástica olímpica, natação, boxe, futebol, vôlei e alguns outros (e curling, não tem curling?).

E me emociono e me encanto com o surgimento desses nossos atletas medalhistas, muitos deles tão olimpicamente desconhecidos de nosso próprio povo e de nossa própria mídia, tão mais ocupada em ceder espaço a subcelebridades que não fazem mais do que criar factoides para aparecer, em detrimento de brasileiros de verdade que superam todas as dificuldades e fazem bonito em ouro, prata e bronze lá fora. Ocasiões como essas são perfeitas para trazer a público os perfis de brasileiros de verdade, cidadãos que nos enchem de orgulho e que fazem renascer a energia necessária para ainda acreditar em nós.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de julho de 2015)

terça-feira, 21 de julho de 2015

Vendaval de mente

Um dia é frio, outro dia é quente. Um dia chove; outro dia chove mais; no outro, um sol tímido aparece, mas, em seguida, esfria e chove de novo. E por causa disso, você se vê envolvido naquela coreografia tão conhecida por aqueles intrépidos seres que teimam em seguir habitando a Serra Gaúcha: bota casaco, tira casaco; estende roupa para secar, recolhe roupa ainda úmida do varal ou das cerquinhas porque começa a chover de novo e o sol, aquele sacana, deu as caras ainda há pouco mas já se esconde atrás de outra nuvem para ir fazer não sei o que.
No início da semana passada, naquela segunda-feira de temporal noturno, fui pego pela ventania, pela chuva e pelo granizo em pleno centro da cidade, caminhando sem guarda-chuva e trajando uma capa plástica que serviu apenas para me proporcionar a falsa impressão de que eu poderia seguir caminhando até o carro, estacionado dez quadras longe, sem maiores problemas. Molhei-me. Todo. Do mais alto fio de cabelo existente na cabeça até a sola do pé. Molhei o banco do carro. Molhei a roupa, o sapato, as meias, a calça, o cinto, tudo. Entrei no veículo com o nariz transformado em calha e vertendo a água que as áreas superiores de meu corpo acumulavam. Nessas condições extremas, não houve como tentar extrair poesia e lirismo de um romântico e poético banho de chuva, porque não havia nada de romântico e muito menos de poético naquele vendaval.

A fatura da aventura involuntária apresentou-se na passagem do último sábado para o domingo, na forma de dor de garganta e febre. A noite foi terrível, permeada por insônia, queixo batendo, suores frios provocados pela febre e o pior de tudo: os delírios. Delirei como há tempos não delirava. Passei a madrugada toda dando discursos inflamados mentais a respeito de tudo, elencando temas para futuras crônicas, delineando parágrafos geniais inteirinhos, compondo poemas, imaginando personagens, formatando opiniões surpreendentes, encontrando soluções para os males do mundo. Pena que, ao acordar, medicar-me e botar-me agora devidamente curado, não me recordo de mais nada. A tempestade climática e o vendaval da mente que ela provocou só serviram para duas coisas, reais e práticas: comprar um guarda-chuva e aprender que nem tudo serve para esculpir metáforas.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de julho de 2015) 

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Altamente recomendável

Dia desses, descobri que sou “altamente recomendável”. Posso imaginar que você possa imaginar o tamanho da surpresa que me invadiu ao tomar conhecimento de que eu, sim, eu, sou uma pessoa passível de ser classificada como “altamente recomendável”. A surpresa foi grande, como seria de se esperar numa situação dessas, e confesso que é difícil descrever a sensação que se apodera de uma pessoa no momento em que ela descobre ser “altamente recomendável”. Só mesmo vivendo a situação para saber.
O fenômeno deu-se semana passada, quando recebi em casa, entregue pelo carteiro, uma encomenda que há alguns dias já estava esperando. Por meio de um site de compras da internet, mandei vir o DVD de um show que eu muito desejava ter em casa e a entrega se deu dentro do prazo estipulado pelo vendedor, tendo o artigo chegado às minhas mãos em ótimas condições, funcionando, tudo certinho. Fiquei muito satisfeito e decidi entrar no tal site, a fim de proceder à qualificação do vendedor, aprovando-o com estrelinha. Qual a minha surpresa ao perceber que existe uma área no referido site em que também os vendedores qualificam os clientes, e lá estou eu, devidamente qualificado como um cliente “altamente recomendável” por diversos vendedores de quem já adquiri produtos anteriormente. Ora, vejam só!
Isso significa que, ao entrarem nessa seção do site a fim de perscrutarem meu perfil de cliente, os vendedores terão sobre mim as melhores referências, sentindo-se seguros em vender para mim seus CDs, seus DVDs, seus livros e revistas, artigos que eu costumo adquirir via internet, com certa frequência. “Vendam para ele, sem medo”, é uma das traduções possíveis dessa qualificação que me resume: altamente recomendável.

Não foi isso que eu percebi outro dia desses, quando entrei em uma determinada loja de determinados produtos aqui em Caxias, a fim de fazer uma compra, e fui solenemente ignorado pela atendente que preferiu permanecer com suas atenções direcionadas ao whattsapp de seu smartphone, sem se dar ao trabalho de levantar-se da cadeira e vir exercitar seu papel de vendedora, o que seria de se esperar, especialmente nesses tempos tão bicudos. Quando temos a impressão de que somos melhor atendidos por internet do que ao vivo, é porque algo está altamente desrecomendável, será que não?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de julho de 2015)

sábado, 18 de julho de 2015

Faltou o manual

Nós, que nascemos e vivemos, temos muitas coisas em comum. É por isso que o ato de compartilhar as experiências que vamos adquirindo ao longo da olimpíada da vida se configura em uma prática humana importante, dadivosa, exemplo de generosidade e altruísmo, de cuidado para com o outro, enfim, essas coisas tudodebom de que somos capazes de fazer pelo próximo de vez em quando. Desde que o próximo não se aproxime muito, até que gostamos dele, não é verdade? Somos humanos, não passamos de seres humanos, não exijam demais da gente...
Pois bem: nisso de termos muito em comum, nós, seres humanos que vivamente habitamos o planeta, existem algumas coisas que parecem mesmo ser inerentes ao perfil da maioria. Entre elas, a reclamação constante que fazemos relativa ao fato de que a vida não vem com manual. Não existe manual para nada, no que tange às experiências cruciais do ato de viver a vida humana. Existem, sim, regras de conduta civilizatória, criadas na tentativa de proporcionar aos seres humanos uma coexistência em sociedade minimamente viável, como as leis civis, os mandamentos divinos, os códigos morais, de ética e de comportamento, esse negócio todo. Mas manual, que é bom, e de cuja falta reclamamos em uníssono de polo a polo, não existe.
Não há manuais sobre como criar um bebê; sobre como lidar com um adolescente; sobre como lidar com os pais, sendo um adolescente; sobre como manter um casamento sem estresses; sobre como desfazer um casamento sem estresses; sobre como ser solteiro sem estresses; sobre como ser eternamente feliz; sobre como ficar rico sem ter de escrever um livro com sete dicas sobre como ficar rico; sobre como ser amado por todos; sobre como evitar ter de ser amável com todos para poder ser amado por todos; enfim, a vida não vem com manuais, todos nós reclamamos disso, temos isso em comum.
O que é uma grande besteira, porque, mesmo que a vida viesse com manuais, nós não os leríamos e os jogaríamos para o fundo da gaveta, assim como fazemos com os manuais do forno de micro-ondas, do smartphone, do notebook, da geladeira, do automóvel. Fazemos com a vida o mesmo que fazemos com um smartphone novo: vamos apertando os botõezinhos para ver no que vai dar. No fundo, o que mais temos em comum mesmo é essa mania de reclamar de bobagem.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de julho de 2015)

sexta-feira, 17 de julho de 2015

O ataque do minion

O ataque de que fui vítima deu-se no final da manhã do último domingo, ali em casa, mesmo. Eu estava sentado na minha poltrona preferida na sala, conversando distraído com as visitas que recebia para o almoço dominical em família, quando fui inesperadamente atingido no peito pelo atacante. Não houve violência, era uma brincadeira protagonizada pelo meu afilhado/sobrinho de pouco mais de três anos de idade, que conduzia pela mãozinha o voo do minion que mirava justamente o meu peito.  Plaf! Que susto!
O objetivo do ataque, logo percebi, fora atingido: pregar um susto no dindo, o que se confirmou por meio das gargalhadas do afilhado e do minion, que alegremente invadiram a sala e paralisaram as conversas e os preparos da mesa. Só que nem tudo fora planejado com perfeição pela dupla, e partes do minion se soltaram após o choque contra a fortaleza que revelou ser meu peito, fazendo desaparecerem momentaneamente os óculos e os pés do boneco amarelo. Tive de me levantar da poltrona e ajudar o afilhado, que dava sinais de que em breve entraria em um leve desespero, a procurar as partes destroçadas de meu algoz, dando assim, eu, uma clara prova de magnanimidade e de postura ética em combate capaz de render medalha de honra junto à Cruz Vermelha.
Encontradas as peças e devidamente restabelecida a integridade física do minion, fomos almoçar. De sobremesa, minha esposa havia comprado, para o afilhado, um desses ovinhos de chocolate com surpresa dentro. Na verdade, dois ovinhos. E adivinhem o que havia dentro deles, para a surpresa minha: mais dois minions, fazendo assim crescer a gangue dentro de minha própria casa! À noite, na sala remergulhada em seu silêncio típico, fui investigar na internet sobre a essência desses tais minions, seres amarelados em formato de dedo, que fazem sucesso nos cinemas com a criançada. E descobri muitas coisas, que compartilho a seguir.

Os minions, se você ainda não sabe, leitor, são criaturas unicelulares milenares, cuja vocação é agirem como capangas de vilões famosos. Atrapalhados e engraçados, são bastante estúpidos e fofos, daí o sucesso dos bichinhos junto às famílias. E eu achando que eles não passavam de fandangos fugidos do saco de salgadinhos. Mas ok, agora posso dormir tranquilo e informado. Nada como um afilhado para me manter atualizado com o mundo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de julho de 2015)

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Foi-se embora não se sabe para onde

Alô? Ah, oi, Otília, é você, de novo. Pois então, é como eu estava te contando, eu não entendi direito pra onde é que ele foi. Mas acho que viajou mesmo, porque entrei hoje de manhã e ele não estava e normalmente ele ainda está em casa quando eu chego, ou deixa bilhete. Mas, dessa vez, nada. Só que eu me lembro, Otília, que na semana passada ele andava dizendo que me parece que ia embora. Pois é, também acho estranho, mas fazer o que, criatura, tô só te contando o que eu sei.
E vou te falar mais uma coisa, porque agora, lembrando melhor das coisas, semana passada ele estava mesmo um pouco esquisito. O quê? Não fala assim, Otília, ahahah! Você não presta, mesmo, fazer piada numa hora dessas, de que ele era sempre meio esquisito! Ahah! Mas assim, ó, me escuta, mulher. Esquisito porque ele andava falando que ia embora, mas não falava de um jeito normal, tipo “amanhã vou embora”, ou “tô indo embora”, como se falaria, mas declamava meio pomposo e repetia sempre da mesma forma, dizendo “vou-me embora pra não sei onde”, e dizia o lugar pra onde iria embora, mas eu não me lembro direito, era um nome assim meio que de pássaro, parece. “Vou-me embora pra não-sei-onde, porque lá isso e lá aquilo”, e ficava repetindo.
Hein? O quê? Sabiá? Se o lugar tinha nome de sabiá, que é pássaro? Não, acho que não, Otília. Mas agora lembro que ele também vinha falando de sabiá, desse jeito pomposo. Falava de uma terra dele que ele tinha, acho que quando era criança, onde cantava o sabiá. Acho que ficava na praia essa terra, porque tinha palmeiras e cantava o sabiá. Será que ele voltou pra lá, amiga? O que mais ele dizia? Ah, que ia-se embora pra esse lugar e que era amigo do dono de lá, e até podia escolher a cama, porque tinha muita cama lá, pra dormir na que quisesse. Um spa? Acha que ele foi pra um spa, Otília?

Mas olha, que até pode ser! Agora tô me lembrando melhor, o que ele dizia: “Vou-me embora pra Spa...”, e dizia o nome do spa... “Spa Sárdala”, será que é isso? Será que existe? Procura na internet, tu que mexe com essas coisas. Ele disse que lá era amigo do dono, que era rei de lá, e ele ia escolher a cama em que dormiria e a mulher dele já estaria lá esperando, acho, alguma coisa assim. Foi-se embora pra esse spa. Ou voltou pra terra dele em que canta o sabiá na palmeira, das duas, uma. Devo avisar a polícia, Otília?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de julho de 2015)

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Peras na figueira

Trata-se de uma figueira. Daquelas que dão figos, mesmo, para colher e comer. Árvore bonita, frondosa, robusta, elegante. Age como se fosse a rainha daquele pátio generoso em verdes. Também pudera, é a mais antiga do quintal e se destaca quando comparada aos arbustos, ao singelo pé de jacarandá, ao limoeiro, ao canteiro de rosas. Generosa, oferta seus figos sempre que chega a época. Fornece sombra com seus galhos e folhas, acolhe os ninhos dos passarinhos, deixa as cigarras grudarem suas cascas no tronco, produz música aos ouvidos sensíveis com seu farfalhar nos dias de vento. É uma árvore simpática e participativa.
Muitos são os que se aproximam dela para saborear seus frutos, e ela não os nega a ninguém. Toda e qualquer criatura tem o direito de catá-los e se deliciar com eles, desde as pessoas até os passarinhos. Houve até uma época, juram os mais antigos, que surgiu um macaquinho sabe-se lá de onde, que durante algumas semanas fez a festa com os figos da figueira, até desaparecer de novo no mato para nunca mais voltar. A figueira não negou um figo sequer ao macaquinho, assim como não os nega a ninguém. Afinal, ela é figueira, foi feita para ofertar figos, e isso ela faz com maestria, com prazer, com generosidade.
Só há uma coisa que anda deixando a figueira um pouco incomodada, nos últimos tempos. Ela vem se sentindo estressada com a postura de algumas pessoas, que começaram a se aproximar dela em busca de peras. Chegam até ela, observam-na toda, circundam a árvore, tocam seu tronco, colhem seus figos, chegam até a provar alguns e depois cospem os pedaços fora, reclamando que não são peras, porque vieram até ela em busca de peras. Mas ela é uma figueira! Ela jamais prometeu gerar peras, jamais anunciou aos ventos que a chacoalham que passaria a produzir qualquer outra fruta que não fossem seus figos, muito menos, peras! Por que vêm até ela em busca de peras?

Ora, diz-me a figueira amiga, há uma enorme e bela pereira ali ao lado, no quintal do vizinho. Há duas até! Por que não se dirigem até ali, tão pertinho, em busca das peras que tanto desejam? Por que insistem em vir até ela, uma figueira, em busca de peras, se querem peras e não figos? Ela detecta sinais de pouca inteligência nessa busca por peras na árvore errada. Eu escuto, colho um figo que ela me oferece, deixo o sumo da polpa inundar minha boca e aceno com a cabeça, concordando deveras.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de julho de 2015)

terça-feira, 14 de julho de 2015

Nunca deixe para ontem

Eu estava mesmo determinado: não passaria de ontem! Ou, como eu disse a mim mesmo, ontem: “De hoje não passa”! Há dias que eu vinha adiando a concretização do projeto, procrastinando (que é palavra repleta de consoantes, difícil de dizer e rara de usar, mas às vezes eu consigo), enrolando e dizendo que não passaria de amanhã. Mas ontem eu disse que não passaria de hoje (esse “hoje” dito ontem era o hoje de ontem, e não hoje-hoje, em que esse referido “hoje” já é ontem) e de ontem não passou mesmo. Fi-lo!
A tarefa era daquelas coisinhas simples a fazer, mas que, devido mesmo à sua singeleza, acabamos sempre deixando para outra hora, só que, de vez em quando, as consequências de não a termos feito aparecem e nos induzem a auto-puxarmos nossas próprias orelhas (e digo isso metaforicamente, não pensem que protagonizo cenas de inenarrável contorcionismo na intimidade de meu escritório, exceto quando cai no chão a caneta e decido persegui-la sem sair da cadeira, o que concorre para o agravamento de certas dores lombares cuja solução também venho há vários ontens deixando para vindouros amanhãs, nessa coleção de procrastinações, e eis que uso de novo a palavra, a segunda vez no mesmo texto, agora ela vai para a geladeira das palavras por algum tempo, e sem discussão). Fiz uma listinha e dirigi-me a uma papelaria, no centro da cidade.
Assim que fui atendido pela sorridente balconista, fui elencando minhas necessidades: uma caixinha de clipes coloridos; uma caixinha de grampos para grampeador, do tipo 26/6, e não que eu saiba de que raios se trata tal numeração, mas é que anotei todas as referências impressas na caixinha antiga, para evitar ter de levar junto o grampeador ele-próprio a fim de ser avaliado pelo olhar especializado da balconista; dúzias de envelopes de todos os tipos, formatos, tamanhos e cores; dois cartuchos para impressora, e eis aqui também os números dos ditos, para não haver engano, e o mais importante de tudo: dois saquinhos de ponto e vírgula.

Sim, senhora, não me olhe desse jeito, que sou cronista mundano diário e utilizo muito dessas coisinhas, basta ver a situação do parágrafo anterior, e meu estoque já está acabando. É o que dá, botar ponto final antes do tempo, deixando as coisas para amanhã.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de julho de 2015)

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Desejo sabatino

Ah, o sábado à noite de folga! Que delícia, que presente raro dos deuses! Sim, eu sei que hoje é segunda, início de semana, o final de ano ainda está longe, sequer podemos contar nos dedos os dias que faltam para as férias, estamos em pleno meio do ano, as atribulações do cotidiano exigindo atenção, o estresse beirando o sinal de alerta, essas coisas, e eu venho falar de sábado. Sim, eu sei, mas é que, dadas essas condições, o sábado, em pleno julho invernal, acaba se configurando no oásis mais próximo e palpável que consigo vislumbrar, em meio a tanto trabalho, tanta agenda, tantos compromissos. Assim, portanto, permitam-me discorrer sobre o sábado.
Especialmente sobre o último sábado, esse último, que ainda paira fresquinho em nossas lembranças, agora já nubladas pelo peso mastodôntico de uma segunda-feira. Pois como eu ia exclamando lá no início, ah, o sábado à noite de folga! Que raridade um sábado assim como aquele, inesperadamente desprovido de compromissos, de braços abertos só para mim! Nenhuma visita a receber; nenhum convite a atender, tanto social quanto pessoal ou profissional; nenhum evento a comparecer (ninguém casando, ninguém se formando, ninguém debutando, ninguém aniversariando, ninguém passando em vestibular, nenhuma boda, ninguém separando, que já há quem comemore, ou deveria); nenhuma inauguração a comparecer, já que não sou prefeito, nem vice, nem vereador, nem secretário, nem aspone, muito menos asmene; nenhuma viagem a fazer, nada, nada, o sábado à noite inteiro só para mim! Que rara delícia!

Mas nem tudo é perfeito neste mundo, o que é perfeito para a inspiração do cronista, mesmo que às vezes doa e faça a vida parecer um mar de rosas espinhudas permeada de segundas-feiras. Você está ali no seu sabadão à noite só para você, uma singela pizza de muzzarela pronta a ser esquentada no forno, o controle remoto da tevê a cabo preparado para entrar em ação, quando vem pela janela aquele provocador, irresistível e maravilhoso cheiro de churrasco sendo assado por algum vizinho distante e impossível de ser identificado nas cercanias do bairro. E você ali, de controle remoto na mão, a boca salivando, louco de desejo por um churrasco... Raios! Que venha logo a segunda-feira!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de julho de 2015)

sábado, 11 de julho de 2015

Precisamos saber viver

“É preciso saber viver”, não é mesmo? Quem cantava esse refrão? Titãs? Não. Quer dizer, sim: os Titãs regravaram a música, mas a gravação original é do Roberto Carlos, aliás, autor da letra, singela e simples, direta e genial. “É preciso saber viver”, vamos cantarolando junto com a música enquanto o carro avança mais dois metros no engarrafamento pós-meio-dia. Eu, com minha voz desafinada de urso acordando na caverna após seis meses de hibernação, estrago a melodia e minha esposa discretamente aumenta o volume do aparelho, afinal, ela preza os ouvidos e, como diz a música, é preciso saber viver de verdade, agora sem as aspas.
O sinal abre, nenhum veículo à frente se mexe. Por quê? Vamos lá, vamos lá, já é quase uma da tarde e ainda estamos distantes vários quilômetros da meta. Apenas o primeiro carro da fila avança. Alguém buzina. Outro imita. O sinal fecha. Ficamos todos parados de novo. “Toda pedra no caminho/ Você deve retirar/ Numa flor que tem espinhos/ Você pode se arranhar”, segue a música. Aquele carro do início da fila era uma pedra no caminho, imóvel. Não era uma pedra rolante. Saco. Mas, calma, é preciso saber viver, porque “Se o bem e o mal existem/ Você pode escolher/ É preciso saber viver”.
Vem o refrão de novo e eu me entusiasmo: “É pre-eciso sa-bê vivê-êêê!/ É-é pre-e-cii-sô sa-bêê vi-vê-êê/ Sa-bê vi-vê/ Sa-bê vi-VÊÊ!”. Minha esposa me olha estranho e faz subirem as janelas do carro, por precaução. A motorista emparelhada ao lado no chiquérrimo Beetle amarelo me encara, espantada. Ora, mas que gente, parece que não sabem vi-vê! Eu me calo e foco no sinal, que abriu, de novo. “Vomo,vomo”, penso comigo, empurrando mentalmente a fila composta por veículos dirigidos por gente com pressa em um trânsito que não anda. De fato, não andamos sabendo viver. Aliás, nesse trânsito engarrafado, não andamos e não sabemos viver.

Mas minha esposa sabe. Como o trajeto diário de casa até o local de trabalho é composto por cerca de dez quilômetros, ela está aproveitando os cerca de 20 minutos de deslocamento para fazer a maquiagem dentro do carro, já que o chofer sou eu. Assim, ganhamos tempo e qualidade de vida. O mundo muda, e, do início ao fim, temos de ir reaprendendo a viver.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de julho de 2015)

sexta-feira, 10 de julho de 2015

O bicho que ri

O brasileiro é mesmo um bicho muito bem-humorado. Não perde a chance de fazer uma graça, especialmente quando se trata de evidenciar suas desgraças. Perde o amigo, mas não perde a piada. E se for inimigo, então, destrava a metralhadora do chiste e abre as porteiras da flauta, sem represar o eventual mau gosto. Tudo porque alguém certa vez inventou a máxima de que “rir é o melhor remédio”, e foi o que bastou para que nos entregássemos curativamente de braços abertos à prática descontrolada da gracinha, passando a ser uma multidão de engraçadinhos. Às vezes, nem tanto.
Afinal, a vítima da graça alheia costuma tachar o engraçadinho de desgraçado, isso sim. Vejamos um caso recentíssimo, como a polêmica criada esta semana pelo Zoológico de Sapucaia, que abriu ao público uma votação a fim de batizar um filhotinho de anta que nasceu ali alguns dias atrás. Trata-se de uma anta, uma antinha, e o nome que vem ganhando disparado a enquete é Dunga. Sim, Dunga. Querem que a anta se chame Dunga, para que as pessoas se dirijam ao Zoo de Sapucaia para visitarem Dunga, a anta. Você está rindo? Claro, né, você fez a relação que o chiste propõe. Dunga, a anta.
Mais engraçada ainda é a justificativa que a direção do zoológico encontrou para explicar a presença da alternativa Dunga na lista de nomes proposta ao público. Sim, porque o nome Dunga não surgiu espontaneamente entre o público, mas consta em uma lista de cinco possíveis nomes para a antinha, ao lado de Antonino, Tonho, Nicolau e Batatinha. Dos cinco mil votos registrados até agora, 2,9 mil foram para Dunga. E por que Dunga? Ora, diz a direção do zoo, porque a antinha tem orelhas grandes e lembra o anãozinho orelhudo e careca amigo da Branca de Neve, parceiro de Mestre, Zangado, Feliz, Soneca, Dengoso e Atchim. Zangado mesmo deve estar certo personagem da vida real, que certamente não está gostando nem um pouco da gracinha.

Aliás, se a intenção fosse mesmo fazer alusão às grandes orelhas do bichinho (vem cá, isso não configura bullying animal, não?), por que não oferecer a alternativa de Dumbo para nominar a anta? Aí teríamos em Sapucaia Dumbo, a anta, e poderíamos batizar algum elefantinho com o nome Dunga, para aliviar as coisas, quem sabe? Não? Péssima ideia e sem graça? Desculpem, preciso me abrasileirar melhor...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de julho de 2015)

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Andando nas nuvens

Tenho visto 50 tons de cinza pela janela de meu quarto, dia após dia, nos amanheceres desses invernais dias de julho. O início de inverno neste 2015 decidiu nos brindar, aqui na Serra Gaúcha, com uma sucessão incansável de neblina, de cerração, de nevoeiro, cada uma dessas denominações acarretando um tom de cinza diferente, com todas as suas nuances que vão mudando de acordo com a hora do dia, daí os 50 ou mais tons perfeitamente verificáveis por quem tiver olhos para ver, sensibilidades para detectar, imaginação para mergulhar fog adentro.
Mesmo quem nunca esteve em Londres é capaz de sentir-se caminhando por ruas londrinas ao subir ou descer a Avenida Júlio de Castilhos de manhã cedinho sem enxergar nada dois palmos adiante de seu nariz, devido à intensa e cerrada cerração. Isso porque o termo “fog londrino” já se transformou em conhecimento arquetípico, em memória cultural coletiva universal, e somos todos londrinos, em qualquer lugar do mundo que seja abraçado por uma intensa neblina que remeta as mãos aos bolsos, enterre os pescoços golas adentro, acelere os passos pelas calçadas e espalhe pelas ruas um intenso tráfego de narizes transformados em chaminés ambulantes.
É como caminhar nas nuvens. Estamos no interior de uma carregada cumulus nimbus que desceu das alturas para ver como andam as coisas aqui na superfície, cansada de apenas observar do alto as agruras pelas quais passam os cidadãos dessas terras estranhas movimentadas por formiguinhas vestidas e apressadas. As nuvens descem momentaneamente de seus pedestais celestes e vêm aqui respirar um pouco de humanidade, para logo se dissiparem e tornarem a se reagrupar lá em cima, preferindo sempre, me parece, a companhia dos anjos, dos urubus, dos picos dos cerros e dos aviões que as perfuram e fazem-lhe cócegas.

Mas gosto desses dias cinzas, especialmente pelas surpresas que o andar pelas ruas emparedadas pela neblina proporcionam. Ontem, por exemplo, surgiu-me defronte, em uma esquina, um amigo que há tempos eu não via. Desembarcou à minha frente do meio da névoa como se descesse de um portal do tempo. Cumprimentamo-nos e desaparecemos ambos logo em seguida, engolfados pelo cinza de nossas neblinas particulares, cada qual em seu tom. O meu, um pouco mais ensolarado com o caloroso reencontro.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de julho de 2015)

quarta-feira, 8 de julho de 2015

A nova habitante

A nova habitante de nossa casa finalmente chegou, antes de ontem. Já fazia algum tempo que ela vinha sendo esperada, com ansiedade e expectativa. Sabíamos de antemão que sua chegada iria alterar nossas vidas, iria dar um significado novo à nossa rotina, transformaria o cotidiano. Isso na medida em que o cotidiano pode ser transformado, em que a rotina pode ser ressignificada e em que a vida pode ser alterada a partir da chegada de uma nova cadeira para o escritório, claro.
Mas foi o que aconteceu. Chegou a cadeira pela manhã quando ainda estávamos ambos em casa, minha esposa e eu, trazida pela transportadora. Cadeira de escritório, ultramoderna, ergométrica, anatômica, repleta de alavancas cujas funções pretendo descobrir depois de me recuperar do susto inicial proporcionado pelo solavanco a que fui submetido estando sentado nela e mexendo na alavanquinha posicionada logo abaixo do assento, o que me fez cair quase ao nível do solo e foi por pouco, não fosse a ação atenta do anjo da guarda, que não espatifei o queixo e os dentes contra a beira da escrivaninha, ufa, dessa escapei.
Mas é coisa linda de se ver essa nova cadeira profissional que agora compõe o cenário de meu escritório caseiro (sim, “home office”, eu sei, eu sei). Fico observando o objeto ao longe, a partir da porta do escritório, e ponho-me a imaginar o quão felizes seremos juntos: quais os projetos que produzirei a partir de agora, sentado nela; os textos que escreverei; as ficções que elaborarei; os e-mails que remeterei; as crônicas que criarei...

Nada mais será o mesmo agora que pude trocar a cadeira que compõe o jogo da sala de jantar (temporariamente deslocada para o serviço no escritório) por esta criada em prancheta de engenheiro especialmente para vir abraçar o meu corpo, dar-lhe conforto e abrigo ao longo das horas que passo sentado à frente da tela do computador, voltado aos meus afazeres. Você não precisa de uma cadeira anatômica de escritório até o momento em que ganha uma. Mas não sei, ela ainda está fria... A crônica de ontem, escrita ainda na cadeira antiga, foi superior a esta... Veremos o que vai acontecer...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de julho de 2015)

terça-feira, 7 de julho de 2015

Mãos de tricoteira

Tudo na vida é relativo, já dizia Einstein décadas atrás, ao raciocinar sobre as coisas do mundo. E é mesmo, afirmo eu, décadas depois, consolidando assim, com minha anuência, a credibilidade do cientista famoso. “Ego também é uma questão de relatividade”, pensará o leitor crítico destas sempre mal-digitadas, e ele está certo também. Mas, vamos aos fatos, porque, sem eles, não haverá aqui crônica alguma e melhor seria passarmos logo ao almoço.
Tudo é relativo, dizíamos Einstein e eu. Vejam só: minhas mãos, por exemplo. Não é preciso ser versado em ciências biológicas ou anatômicas, muito menos possuir dons detetivescos de observação especial, para detectar, a partir de uma rápida olhada sobre elas, que tratam-se de mãos que jamais pegaram no cabo de uma enxada. Sim, minhas mãos são aquelas típicas mãos-de-fada, expressão de cunho pejorativo utilizada especialmente na roça e na colônia para fazer referência aos primos da cidade (eu sempre fui um primo da cidade, mesmo jamais tendo tido primos que morassem na colônia), que chegam com aquelas mãozinhas fininhas, branquinhas, lisinhas, desprovidas de calos e de arranhões, que jamais foram cortadas por arame farpado, jamais foram furadas por espinhos e rosetas, jamais colheram urtiga ou engoliram farpas de lenha.
Minhas mãos são dessas mãos de moça, mãos de donzela, imaculadas, alvas, polvilhadas com dedinhos babacas que tremem ao empunhar um martelo e ficam com cara de samambaia se lhe metem por cima um serrote ou uma chave-de-fenda. Mãos de pianista sem nunca terem dedilhado um piano; mãos de tricoteira sem saberem reger uma agulha; mãos de vidro, de cristal, de açúcar; mãos que abrem o berreiro se um palito de fósforo lhes queima a ponta do dedo, sim, são assim minhas mãos, admito.

Mas como tudo na vida é relativo, eis que surgem finalmente os ipads e os smartphones, com suas câmeras fotográficas digitais e seus botõezinhos milimétricos, criados especificamente para proporcionar a redenção da masculinidade de meus dedos. Sim, ao pegar um desses aparelhos e tentar bater uma foto, meus dedinhos viram dedões destroncados, apertando os lugares errados e teclando tudo junto ao mesmo tempo, atabalhoadamente. Finalmente consigo ser pelas mãos o troglodita que a relatividade há tanto tempo esperava de mim.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de julho de 2015)

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Boca de ouro

Tratava-se de ouro. Sim, ouro mesmo. Não ouro puro, mas pó de ouro misturado a outros elementos, ela adiantou-se em explicar. Mesmo assim, era ouro. Ela falava e exibia a prótese dentária que havia extraído de minha boca, na revisão sazonal que fazemos de minha arcada dentária, ela e eu: eu, o portador dos dentes; ela, a dentista que deles cuida há anos. A partir de sua acurada competência, detectara ela um leve frouxar na prótese, o que bastou para que a arrancasse, investigasse, limpasse e recolocasse no lugar, firme e forte, pronta para seguir triturando e mastigando os nacos de picanha de que tanto gosto.
A novidade, no entanto, era a informação de que a tal prótese, fabricada para minha boca há décadas por outro dentista em outra cidade, fora muito bem forjada, com o uso, inclusive, de pó de ouro, o que surpreendeu a ela e a mim deixou de boca aberta, com um sugador resfolegante dependurado na gengiva. O que ela queria dizer era que o material encravado em minha boca era de primeira qualidade, o que me deixou bastante satisfeito, afinal, quem por aí tem o privilégio de mastigar ouro nas churrascarias de Caxias do Sul além de mim? Porém, à medida em que ela ia trabalhando dentro de minha boca, sensações diversas desfilavam por minha mente, antes de desaparecerem sugador adentro.
Uma delas foi a de medo. Medo de dormir de boca aberta em um ônibus ou em um assento de avião e despertar mais tarde dando por falta de minha valiosa prótese, surripiada por algum meliante atento a tudo o que reluz no interior da cavidade bucal de fortuitos e desatentos companheiros de viagem. Outra sensação foi a de esperteza, quando me dei por conta de que, em se aprofundando essa crise que atualmente nos assola, tenho na manga (ou na gengiva) a possibilidade de empenhar a prótese no caso de falta de recursos para a conta de luz ou para a conta na churrascaria.

Por fim, assomou-me à mente a percepção maior de todas: a de que nem sempre a presença de ouro na boca garante o valor daquilo que sai por ela. Muitas vezes, vale mais ouro aquilo que uma boca não diz. Obrigado pelo pequeno pó de sabedoria, minha prótese.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de julho de 2015) 

sábado, 4 de julho de 2015

Bergamotas ao sol

Veja só, que bom, abriu o sol, venha, traga as bergamotas e vamos comê-las lá fora, à beira da calçada, encostados no muro baixo que circunda a casa, pois que o melhor sabor das bergamotas se obtém quando desfrutadas assim, ao calor doce e manso de um solzinho de inverno. O melhor mesmo é praticar o ritual logo após o meio-dia, naquela curta e preciosa meia hora que ainda temos de folga antes de voltarmos cada um a seus compromissos no trabalho ou na escola ou na casa mesmo, quando conseguimos estar juntos celebrando o ato da vida em um prosaico encontro de almas, ao sabor, claro, das bergamotas.
A malvadeza do frio do amanhecer que nos fez mais uma vez desejar mandar tudo às favas e ficarmos na cama debaixo dos cobertores já foi amainado com as horas que passamos nos desincumbindo de nossas tarefas na primeira parte do dia, tendo a ameaça de chutação de balde sido de novo protelada e concretizada somente no setor secreto dos íntimos desejos jamais realizados. O sol agora se mostra amigo, acolhedor e convidativo, como que nos chamando à sua presença para que lhe emprestemos um pouco de nosso calor humano lá fora, ele que é obrigado a passar o inverno inteiro ao ar livre, longe do quentume de nossas casas, dos fogareiros, do fogão a lenha, dos aquecedores, das lareiras, dos rocamboles de cobertores nos quais nos amarfanhamos e adormecemos rezando por sonhos quentinhos.
Esse solzinho de meio-dia no inverno produz um calor e uma luminosidade diferentes do sol do verão, que também desejamos, mas frente ao qual precisamos tomar precauções para evitar consequências danosas oriundas do estender dos encontros. Nem todos os sóis são iguais, apesar de a ciência nos jurar que bailamos ao redor de uma mesma estrela por todo o sempre. Mas eu cá comigo, descascando essa bergamota, sentindo respingar nos olhos o chuvisco das gotas do gomo que saltam longe ao desgrudar da casca, cultivo as minhas desconfianças de que eles são vários, cada um com suas características, personalidades diferentes, calores e aconchegos variados.

Não são todos os sóis: o sol, não. Há sóis e sóis, como poderá ver se vier comigo lá fora comer bergamotas. Como? Hoje não pode, pois está sem tempo? Ah, então esquece, tchau, vou lá sozinho mesmo, e, depois, escrevo uma crônica.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de julho de 2015)

sexta-feira, 3 de julho de 2015

O despertar da pessoa

Existe um momento na vida de cada um de nós em que se dá aquilo que meu sogro denomina como “o despertar da pessoa”. Trata-se de um lampejo súbito, como o clarear da mente em relação à sua posição no universo, ao sentido de sua própria existência, ou mesmo em termos mais prosaicos e aparentemente simples como uma mudança de rumo, o abandono de um mau hábito, o que for. “O despertar da pessoa”, seja ele na intensidade em que se der e direcionado ao assunto que for, sempre se caracterizará por uma espécie de desobstrução do sol em um céu carregado de nuvens.
E não existe idade específica para que essa espécie de insight aconteça. Na verdade, se formos analisar mais a fundo, chegaremos à conclusão de que é possível até mesmo haver uma série de despertares ao longo da vida de algumas pessoas, mesmo que elas não se deem por conta disso. Você passou muitos anos de sua vida dirigindo seu automóvel até o dia em que o acaso o depara com a necessidade de trocar um pneu furado, coisa que até então você jamais havia tido a necessidade de fazer, ou porque os pneus não furavam, ou porque sempre havia alguém que os trocasse por você. Então você desce do carro, bota a mão no macaco e voilá! Troca o pneu com uma destreza e uma habilidade que jamais imaginava existirem latentes ali dentro de você. Você aprecia o suor escorrendo pela sua testa enquanto desaperta os parafusos da roda, você sente uma sensação prazerosa nas mãos que vão se sujando de graxa, você treme com a sensação do toque na borracha do estepe. E, quem diria: súbito, você se vê um exímio trocador de pneus furados, e já pensa em largar a carreira médica e abrir uma borracharia ali depois da curva do quilômetro oito! Deu-se então um inequívoco despertar da sua pessoa!

Meu afilhado de três anos de idade, por exemplo, já anda exercitando o inglês que está aprendendo na escolinha, a julgar pelo sonoro “ailoviú” que dispara a torto e a direito para pais, dindos, profes e demais entes queridos de suas relações. Está a despertar para uma língua estrangeira desde cedo, aquele pequeno pedacinho de pessoa. Muitos outros despertares aguardam por ele ao longo da trajetória pessoal que está a dar início. Importante é saber estar atento aos mais significativos desses despertares, evitando assim o risco de passar a vida sonambulando.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de julho de 2014) 

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Saudades do Argemiro

Eram quase onze horas da noite na terça-feira quando desliguei a televisão em casa, terminada a partida entre Argentina e Paraguai pelas semifinais da Copa América. O placar de 6 a 1 a favor da Argentina me fez lembrar do vexame sofrido (ou protagonizado?) pela Seleção Brasileira frente à Alemanha na Copa do Mundo do ano passado, quando a bola balançou nossas redes uma vez a mais do que a dos paraguaios. Ai que dor. E foi aí que me lembrei do jogador Argemiro.
 Você aí, leitor, certamente não se lembra de Argemiro. Aliás, certamente nunca ouviu sequer falar de Argemiro. Pudera: Argemiro não fez fama em nenhum clube, apesar de ter jogado na Portuguesa e no Vasco da Gama. Argemiro não foi jogar em time estrangeiro em negociações milionárias que ganharam a mídia internacional. Argemiro não desfilava pelas baladas noturnas e nem de carrão pelas avenidas das principais cidades brasileiras. Argemiro não aparecia nas revistas de fofocas e nem dava entrevistas na televisão, até porque não existia televisão no Brasil na época em que Argemiro entrava em campo. Como, então, recordar de Argemiro?
Pois Argemiro, apesar da modéstia da biografia futebolística, tem lá seu lugar na história da Seleção Brasileira, já que integrou o time que disputou a Copa do Mundo de 1938, realizada na França e vencida pela Itália. Argentino atuava como meia, e ajudou o Brasil a conquistar o terceiro lugar na competição, ao lado de jogadores como Leônidas e Domingos da Guia. Foi a única participação de Argemiro na Seleção. Como não trouxe o caneco e não foi mais convocado, acabou esquecido.
Mas Argemiro existiu. Chamava-se Argemiro Pinheiro da Silva, nascido em Ribeirão Preto (SP) em 2 de junho de 1915 (teria feito 100 anos no mês passado, caso não tivesse morrido em 1975). Atuou no Esporte Clube Rio Preto entre 1931 e 1935, na Portuguesa Santista de 1935 a 1938 e no Vasco da Gama de 1938 a 1946, quando pendurou as chuteiras. Em nenhum desses clubes há estátuas erguidas a Argemiro.

Por que então essa súbita saudade de Argemiro, a quem nunca vi jogar e de quem nunca ouvi falar? Ah, sei lá... Talvez porque, no fundo, esteja mesmo é com saudades de verdadeiros jogadores brasileiros de futebol...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de julho de 2015)

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Feliz meio ano

Bem-vindo à metade do ano! Venha, sente-se, pegue um drinque, saboreie um canapé, circule entre as pessoas, socialize, sinta-se à vontade. E, principalmente, mais importante do que qualquer outra coisa, perceba o quão privilegiado é você em relação a todos aqueles que, da mesma forma, começaram este ano e, infelizmente, por alguma ou outra razão, não conseguiram chegar até aqui. Faça um brinde à vida, o primeiro de muitos ao longo desta singela celebração. Bem-vindo, de novo, à metade do ano!
Mais de 180 dias já se passaram desde que a gente ergueu brindes na passagem da última noite de 2014 para a entrada da primeira madrugada de 2015. Vimos os fogos de artifício, trocamos beijos e abraços com os entes queridos, expressamos aos outros nossos desejos de um ano bom e fizemos, em nossos íntimos, nossas próprias reflexões, elencamos metas, definimos objetivos, recauchutamos promessas que, talvez agora, seja o momento de reavaliar. Mais de 180 folhas já viramos nas agendas, mais de 180 quadradinhos já riscamos nos calendários oferecidos generosamente de brinde pelas agências bancárias que cuidam do nosso suado dinheirinho. E um novo lote de novos 180 dias e um punhado a mais nos espera. Vamos a eles. Um brinde também à segunda metade do ano, que agora se inicia!
Sejamos todos bem-vindos à segunda metade do ano! Vamos entrando, tomemos assento, escolhamos os lugares nos quais nos sintamos mais à vontade. Afinal, o perfil de nosso ano quem constrói somos nós mesmos, apesar da crise econômica, apesar das tragédias, apesar dos escândalos políticos, apesar da violência, das estradas esburacadas, da dificuldade intrínseca que é viver. Mas estamos vivos, aqui chegamos, e cabe a nós desincumbirmos com competência a tarefa que nos é dada, essa atitude tão significativa que é seguir vivendo. Alguns de nós também não cruzarão em 31 de dezembro a linha de chegada, sabemos disso, a saída de cena de alguns faz parte do roteiro, bem como a alegre chegada de outros, que darão início às suas caminhadas rumo ao acúmulo de várias metades de anos.

Mas por enquanto, apenas inspire fundo, tome um ar, relaxe, reorganize as forças e prepare-se para seguir em frente. Bem-vindo à segunda metade do ano. Temos vida ainda pela frente. Ao trabalho.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de julho de 2015)