segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Essa lama que nos engolfa


Ganância? Incompetência? Leniência? Descaso? Imprevidência? Desprezo por tudo e por todos? Soberba? Arrogância? Certeza de impunidade? Desconsideração para com a vida humana? Desconsideração para com a natureza? Descompromisso com o presente e com a construção do futuro? Falta de ética, de moral e de humanidade em todo o espectro alcançável e imaginável? Egoísmo absoluto? Cegueira advinda de anos, décadas, séculos de desumanização galopante? Ausência de empatia, de zelo, de prudência? Coisificação do outro, da vida, dos seres e da existência? Altivez? Desamor? Cultivo diário da postura do ódio? Maldade? Desvalorização pura e simples dos valores universais que embasam a vida em sociedade? Desvirtuamento ególatra do sentido da vida?
A resposta ao questionamento geral apresentado no parágrafo de abertura desta enlutada e triste crônica de segunda, ao deitar os olhos sobre um país que parece se esforçar cotidianamente para ser de segunda, pode ser de múltipla escolha. Em se tratando do horror advindo da tragédia ainda imensurável de Brumadinho, fica difícil não assinalar todas as opções e ainda agregar a elas uma lista também interminável de possíveis causas para definir em que âmbito classificar a origem da catástrofe. O fato é que algo vai mal. O Brasil, conforme Brumadinho nos mostra com a tragédia palpável da perda de centenas de vidas inocentes, moldou-se em um país que chafurda na lama. Na lama física que tragou Brumadinho e nas lamas metafóricas que tragam os brasileiros em todas as instâncias que envolvem suas vidas, como que imersos em um oceano de areia movediça. É assustador. Desesperador. Desolador.
A lama se transformou em entidade presente e perniciosa no cotidiano dos brasileiros. E isso não é natural. Não tem de ser assim. A política nacional chafurda na lama da corrupção envolvendo integrantes de todas (é, todas!) as agremiações partidárias, escancarando o fato de que ética é uma virtude pessoal, e não programática. Os megaempresários chafurdam na lama da ganância e da impunidade. Os cidadãos comuns chafurdam na lama dos ataques pessoais, da agressividade gratuita nas redes sociais, dos xingamentos e achincalhes. A lama do jeitinho, da fraude, da omissão, do ódio, da intolerância, da sonegação, da transgressão, da imposição de direitos e da negligência dos deveres parece ser o ambiente natural em que muitos brasileiros optam por viver. Brumadinho é o alerta palpável da lama que paira sobre o espírito nacional. Somos um Titanic à deriva frente a um iceberg de lama. E por opção pessoal de cada um. Todos somos responsáveis por Brumadinho.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 28 de janeiro de 2019)

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

A força de um mito poético


Chegamos a 21 de janeiro e este 2019 já se configura em realidade palpável, com o novo ciclo das mesmas velhas coisas sazonais a nos esperar, intercaladas pelo suceder das novidades específicas que haverão de se apresentar e exigir novas posturas, novas formas de ver, de ser e de agir, tal como acontece ano a ano na vida de cada um de nós, desde que viemos ao mundo. Algumas efemérides importantes já se acomodam no calendário ao longo dos meses, aguardando o momento certo de serem lembradas e celebradas, como, por exemplo, o centenário da assinatura do Tratado de Versalhes, ocorrida em 28 de junho de 1919, que solapou o encerramento da Primeira Guerra Mundial. Felizmente, existem eventos menos belicosos a serem evocados neste 2019, e trataremos de um deles no parágrafo a seguir.
O universo da Poesia vivenciado pela Serra Gaúcha e pela Capital do Estado encontra, em 2019, um ano importante para recordar a vida (breve) e a trajetória poética (profunda e significativa, apesar de pouco conhecida) de uma das expressões artísticas mais importantes já florescidas em solo gaúcho. Daqui a exatos dois meses, em 21 de março, o calendário marcará a passagem do primeiro centenário de morte da poeta Vivita Cartier, falecida em 1919 no distrito de Criúva (então ainda pertencente a São Francisco de Paula) e sepultada naquela localidade, no Cemitério do Pontão. Seu túmulo segue, até os dias de hoje, recebendo flores e cuidados por parte de anônimos que se dedicam ao cultivo da memória da escritora porto-alegrense (nascida em 12 de abril de 1893) descendente de imigrantes tiroleses e franceses, que legou, em seus curtos 25 anos de vida (morreu poucas semanas antes de completar 26), “um punhado de versos em cada mão” (parafraseando a escritora), o amadrinhar de cadeiras em duas academias literárias no Estado e a força perene de um mito.
Apesar do passar das décadas e do fato de não ter casado e nem deixado herdeiros diretos, Vivita Cartier exerceu e segue exercendo fascínio sobre muitas almas posteriores a ela que a identificam com o poder transformador existente em um ser que dedicou a vida ao fazer poético. Ao longo de 2019, sobrarão razões para celebrar a memória da poeta falecida há um século, naquela data que, coincidentemente (ou não), antecipava em 80 anos o estabelecimento oficial, pela Unesco, do dia 21 de março como o Dia Mundial da Poesia. Eventos distantes entre si, que acabam rimando por obra da verve poética do Destino. Pois, apesar dos pesares, a Poesia segue insistentemente soprando ao vento, para quem se dispuser a sorvê-la. Ainda bem!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 21 de janeiro de 2019)

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Prato cheio, amargo sabor


O resultado de uma recente pesquisa internacional sobre os (maus) hábitos alimentares de um punhado de países (entre eles, o Brasil) está virando um prato cheio para o debate a respeito do que significa alimentação saudável. E as conclusões podem ser indigestas para aquela parcela da população afeita ao consumo diário dos ditos “pratos feitos” (conhecidos pela sigla PF), de norte a sul do país. Acontece que, conforme os pesquisadores (que recentemente publicaram o estudo no “British Medical Journal”), por mais que haja variações na conformação dos PF dependendo das peculiaridades de cada região brasileira (o estudo também foi feito nos Estados Unidos, China, Gana, Índia e Finlândia), a base pouco varia, as porções costumam ser exageradas e o resultado é calorias em excesso e saúde em risco. Sinal de alerta ligado!
O tradicional cardápio do PF, composto por feijão, arroz, ovo frito, batata frita, bife frito (e dê-lhe fritura!), alface e tomate, é pobre em variação de alimentos e exagerado nas porções. Em resumo: dessa forma, o brasileiro vê aterrissar à sua frente, diariamente, um combo de muito carboidrato, muita fritura e pouca salada e legumes. Pior: devido ao exagero das medidas, um PF oferece, em média, no Brasil, 1,2 mil calorias, praticamente a metade do que um homem adulto precisa ingerir por dia para manter uma dieta saudável, segundo os padrões internacionais (uma mulher adulta precisa ingerir, em média, 2 mil calorias por dia). Estamos, portanto, comendo errado, conforme o estudo, atingindo sobrepeso e prejudicando nossas saúdes. O PF é a bola da vez na mira da cartilha para uma vida melhor. O consolo (ou melhor, o alerta) é que o problema não é exclusividade dos brasileiros, e se manifesta também em todos os demais países pesquisados, com exceção da China, onde a conduta ponderada pauta a maioria dos aspectos da vida, especialmente na alimentação.
Ninguém nega o sabor e a tentação de um belo, colorido e divertido prato com o tempero típico do feijão nacional, com um arroz soltinho, um suculento bife (às vezes, acebolado), uma porção crocante de batatas fritas, uma gema dourada de ovo frito, o verde das alfaces e o rubro dos tomates. Nos tempos de antanho, já consumíamos essa base, com algumas variantes, e a apelidávamos de “prato comercial”, ou “bandejão” (nos restaurantes universitários e nos quartéis), até o surgimento dos (às vezes) redentores bufês a quilo. Mas, como em tudo na vida (tudo, tudo), o que vale mesmo é o bom senso. Só que isso não aterrissa de graça como acompanhamento no prato de ninguém.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 14 de janeiro de 2019)

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Melhor pessoa, com o Pessoa


Determinado a iniciar o ano com o pé direito e empenhado em tentar elevar o nível destes textos sabidamente de segunda (ciente de que as leitoras, os leitores e a madama merecem algo mais do que reiteradas tergiversações duvidosas sobre a qualidade do sagu servido na Serra, sem, no entanto, incorrer no pecado de prometer jamais retornar ao salivoso tema, aparentemente já cristalizado em crônica obsessão), ouso contar com a póstuma anuência silente do poeta lisboeta Fernando Pessoa (1888 – 1935) para reproduzir alguns de seus versos que, imagino, possam vir a calhar em vistas do despertar de alguma reflexão relevante.
O trecho escolhido provém do volume conhecido como “Fausto: Tragédia Subjectiva”, e diz assim (fôlego, madama, e vamos à poesia): “Eu procurei primeiro o pensamento,/ Eu quis, depois, a imortalidade.../ Um como o outro só deram ao meu ser/ A sombra fria dos seus vultos negros/ Na noite eterna longe dos meus braços.../ Eu procurei depois o amor e a vida/ P´ra ver se ali esqueceria a dor/ Do pensamento e da ciência firme/ Da certeza da morte. Mas o amor/ É para quem guardou a alma inteira,/ E não podia haver amor pr'a mim./ Depois na acção cega e violenta, onde eu/ Afogasse de vez toda a consciência/ Da vida, quis lançar meu frio ser.../ Mas aquilo da alma condenada/ Que me fizera em tudo um espectador,/ De mim, do mundo, do que quer que fosse,/ Proibiu-me outra cousa que assistir/ Aos [...] dos outros e aos meus/ Friamente de fora, sempre tendo/ No fundo do meu ser o mesmo horror.../ Ah, mas cansei a dor dentro de mim.../ E hoje tenho sono do meu ser.../ Dormir, dormir, de dentro d'alma, como/ Um Deus que adormecesse e cujo sono/ Fora um repouso de tamanho eterno/ E feliz absorção em infinito/ De inconsciência boa”.
Como todo o poema tecido por gênio, seus versos se prestam a infinítuplas interpretações. Uma delas (esta nossa, de segunda,) pode nos levar a detectar na fala do narrador a reiterada tentativa de buscar uma transformação interior. Algo o incomoda internamente, e ele procura apaziguar esse incômodo saindo da zona de conforto (que lhe causa nítido desconforto) para tentar agir diferente, mudando o foco, o rumo. O aspecto relevante aqui é que o personagem-narrador ousa tentar mudar. Atitude crucial, se admitirmos que o mundo externo é e sempre será um reflexo direto do mundo interior que habitamos com as nossas psiquês, as individuais e as coletivas. Só obteremos um mundo melhor a partir do momento em que nos tornarmos melhores nós mesmos. Se não, não. Feliz 2019 (e com mais poesia, se possível)!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caias do Sul, em 7 de janeiro de 2019)