sábado, 30 de dezembro de 2017

Um pato nem sempre pato é

Primeiro de janeiro, mais uma vez. Outro ano novo se inicia, uma vez mais. Nessa data, voltamos a elencar desejos de que esses próximos 365 dias que nos aguardam venham repletos de mais coisas boas do que de ruins. Mentalizamos esse desejo para nossas próprias vidas e para as das pessoas queridas que compõem o nosso entorno, já que o nosso bem-estar as afeta positivamente e vice-versa. É assim que as coisas são e um novo ciclo se repete, no qual, provavelmente, a despeito de nossos genuínos desejos, seguiremos sendo testemunhas da sucessão de descalabros que a humanidade é capaz de protagonizar contra si mesma desde que ela existe no âmbito da (in)civilização. Fazer o quê...
Nesses tempos marcados pela intolerância e pela contínua colisão frontal entre as certezas absolutas de alguns contra as certezas também absolutas e contrárias de outros, talvez fosse interessante sonhar com a humanidade dando, enfim, um passo decisivo e concreto rumo à edificação da civilização dentro do real conceito do termo. Meu desejo de Ano-Novo, que proporcionaria anos novos e uma nova era, vai no sentido do desmantelamento da intolerância em favor da aceitação calorosa das diferenças que trazemos dentro de cada individualidade e que, no somatório, é o que nos faz tão fascinantes e singularmente humanos. Meu mundo ideal orbita um sistema planetário em que as pessoas não pensam igual, não agem igual e não se exige delas que o façam; lá, as pessoas não são classificadas por rótulos derivados de sua cor, de sua raça, de seus gostos pessoais, da nacionalidade que portam, da conta bancária que possuem, da profissão que exercem, do gênero a que pertencem, da opção sexual e afetiva pela qual optaram, das crenças que professam, do manequim que vestem. Lá, as pessoas são respeitadas, admiradas e valorizadas pelos seres únicos que cada uma delas é. Ali só não se tolera a intolerância.
Nesse recém-findo ano de 2017 aprendi uma novidade que me ajudou a compreender melhor esse conceito. Lendo uma reportagem a respeito de Carl Barks (1901 – 2000), um dos principais roteiristas norte-americanos dos gibis de Walt Disney, descobri que o Pato Donald, na verdade, é um ser humano com aparência de pato. Ou seja, ele não é um pato, apesar da aparência. Na verdade, ele age e reage tipicamente como o fazem os seres humanos, com suas raivas, vontades e surpresas. Nem sempre um pato aparente é mesmo um pato em essência. As aparências não só enganam: elas não significam absolutamente nada. Que possamos um dia aprender esse conceito tão simples. Um bom 2018 a todos!


(Crônica publicada no jornal "Pioneiro" de Caxias do Sul em 1 de janeiro de 2018)

sábado, 23 de dezembro de 2017

Uma trégua natalina

O episódio ficou conhecido como “Trégua de Natal” e teve lugar em diversos pontos da Europa que serviam de cenário para as sangrentas batalhas que abalavam o mundo durante a Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918). O mais significativo aconteceu em dezembro de 1914, 103 anos atrás, a Grande Guerra ainda no começo, sem que ainda se tivesse dimensão das proporções a que o conflito chegaria nos três anos subsequentes. Devido à repercussão negativa que alcançou junto ao alto comando de todas as partes envolvidas no conflito, foi mantido em segredo de Estado durante décadas, até vir à tona anos mais tarde e impressionar a opinião pública.
Como se sabe, a Primeira Guerra Mundial ficou conhecida pelo fato de boa parte de suas batalhas terem sido travadas a partir de trincheiras cavadas pelas partes beligerantes, umas defronte às outras, separadas por centenas e às vezes poucas dezenas de metros. Uma guerra inerte, marcada pela extrema tensão e pelo alto grau de mortandade. Mas em dezembro de 1914, ao longo da Frente Ocidental (especialmente em territórios francês e belga), na véspera do Natal e no próprio dia 25, os soldados de ambos os lados inimigos, especialmente britânicos e alemães, estabeleceram uma espécie de trégua informal e cessaram fogo naqueles dias. Acharam estranho trocarem tiros, bombas e obuses em pleno Natal, quando lembravam nostalgicamente de suas famílias em casa, onde gostariam de estar. E foram além.
Em alguns locais, os soldados saíram de suas trincheiras e se encontraram face a face na “terra de ninguém”, o perigoso território que separava as trincheiras, para confraternizar com os inimigos. Largaram as armas, cantaram juntos canções natalinas, brindaram, trocaram presentes (cigarros, bebidas, rações), riram, confraternizaram. Houve até um caso em que ingleses e alemães disputaram uma partida amistosa de futebol, em pleno campo de batalha. Claro que os comandantes aliados e alemães não aprovaram a história e proibiram explicitamente qualquer confraternização com o inimigo nos natais subsequentes. Afinal, na visão deles, guerra é guerra, não há espaço para tréguas, nem mesmo no Natal. Pena.
Hoje o fato histórico é conhecido e celebrado como uma demonstração de que o espírito de humanidade existe latente dentro de cada um e, quando evocado com boa vontade, pode até subjugar, ao menos por alguns instantes, a ordem belicosa reinante no entorno. Hoje em dia, mais do que nunca, talvez, estejamos necessitando urgentemente de importantes períodos de trégua. Nem que seja no Natal. Um Feliz Natal a todos!

 (Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 23 de dezembro de 2017)

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

O meio-sorriso do Pozenato

Desconfie de quem anda aparentemente muito quietinho. Esse conselho é antigo, nossas mães já levavam em conta quando as crianças sumiam do raio de visão e não se escutava mais nada delas durante algum tempo. Quando isso acontece, é bom ir verificar, que elas devem estar aprontando. Aprendemos isso também com os Beatles, décadas atrás. Era maio de 1967, já havia nove meses que a maior banda de rock do planeta não lançava nada de novo depois do álbum “Revolver”, de agosto de 1966, e decidira acabar com as turnês ao vivo para se recolher em longas férias. Férias altamente produtivas, como se veria depois. Quando a imprensa questionava Paul McCartney sobre as razões da prolongada (e aparente) inércia, ele apenas respondia “wait” (“aguardem”), com um sorriso enigmático no canto da boca.

E foi assim que surgiu o explosivo, revolucionário e genial álbum “Sgt. Pepper´s Lonely Hearts Club Band”, que chacoalharia o conceito de música pop, provando que os Beatles não estavam quietinhos coisa nenhuma, mas, sim, produzindo com afinco. Jornalistas também aprendem essa lição no que se refere a alguns dos artistas que compõem o cenário cultural do entorno em que atuam, e é por isso que o prolongado (e aparente) período de inércia de um escritor da envergadura de José Clemente Pozenato, por exemplo, gera desconfianças. Estaria o autor de “O Quatrilho” e tradutor dos poemas de Petrarca fazendo nada? Há! Ledo Ivo engano! “Wait”, responde Pozenato, com seu também característico meio-sorriso de canto de boca. O que vem por aí, preparem-se, é de arrepiar. Depois de termos lido o livro, assistido à peça montada pelo Miseri Coloni e visto o filme produzido pelo diretor Fábio Barreto, agora seremos brindados com a trama de “O Quatrilho” encenada na forma de ópera. O trabalho está sendo gestado há dois anos pela Bell´Anima Produções Artísticas em parceria com a Fundação Antonio Meneghetti, do município gaúcho de Restinga Seca, e tem estreia prevista para agosto de 2018 no Theatro São Pedro, em Porto Alegre. Ao todo serão 16 apresentações em cinco estados brasileiros para, depois, sair em circuito internacional. As duas sopranos que, no elenco da ópera, representam as personagens Pierina e Teresa, integram a orquestra do famoso violinista holandês André Rieu. Pozenato responde pela adaptação do texto original para o formato ópera, que, segundo analisa, direciona a ênfase artística aos momentos de emoção existentes na trama. E o escritor tem mais coelhos na cartola. Parece quietinho, mas é melhor ir ver o que anda aprontando...
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 18 de dezembro de 2017)

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Antes que a canoa vire

Olha só, madama, vamos fazer um exercício de imaginação hoje, para ilustrarmos já de saída essa nossa reflexiva crônica de segunda. Você é uma pescadora, ok? Uma pescadora a senhora, um pescador eu. Feche os olhos e imagine... Não! Não feche os olhos, não, madama, senão não vai conseguir ler até o final. Imagine de olho aberto mesmo. Vamos lá. Você é um pescador, mora em uma casinha à beira-mar e o patrimônio mais precioso que possui é uma velha canoa de madeira que você usa todos os dias para vencer as ondas da rebentação, rumar mar adentro e soltar as redes, os anzóis e as iscas a fim de pescar os peixes que proverão o sustento de sua família.
Tudo bem até aqui? Certo, vamos adiante. Mal o sol apontou no horizonte e você já está a postos, empurrando solitariamente sua canoa ao mar e lá vai você, seus filhinhos acompanhando com o olhar a sua figura que vai se transformando em um pontinho minúsculo de encontro ao oceano. Pronto. O dia está bonito, quente, sem nuvens. Uma suave brisa matinal sopra e alcançamos a calmaria do alto-mar. A praia está distante já alguns quilômetros, você mal divisa o pico do mais alto prédio da cidade. É hora de começar a trabalhar. Só que... Opa! Que é isso? De repente, lá na proa, a água começa a entrar pelo fundo e a inundar lentamente sua embarcação. Como pode isso acontecer? Um furo? Mas como, um furo? Sim, é um furo e a água está entrando, e agora?

Lembre, você está sozinha em alto-mar em sua canoa, a quilômetros da praia, sem nenhuma outra embarcação por perto, nem viv´alma ao redor para socorrê-la. O que você faz? Vai gritar por ajuda? Vai esperar pelo socorro de alguém, da polícia, dos bombeiros, de Deus, da Fada Madrinha, do bispo, do Temer, do Lula, da Dilma, do Sérgio Moro, do Papai Noel? Não, né. Não há a quem recorrer, a não ser a você mesma. Não adianta gritar e nem empurrar seu problema para o colo de outra pessoa. Seu problema é só seu e você terá de se mexer para resolvê-lo. E o que acontece? Ora, você faz alguma coisa, sei lá o que, e se safa dessa. Afinal, não havia a quem repassar o abacaxi. Ao menos, não dessa vez. Ao invés de gritar, chorar, espernear, vituperar contra os azares da vida, você arregaça as mangas, soluciona o problema e retorna sã e salva para casa, a canoa reparada e repleta de peixes. Que é como deveria ser sempre, né madama? Solucionarmos os contratempos com mais vontade, mais suor e menos choro, porque se tem coisa de que o mar imenso não precisa é das gotas de nossas lágrimas de autocomiseração. E vamos lá que amanhã tem mais peixe à espera.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de dezembro de 2017)

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

A quem a cultura incomoda

Hanns Johst (1890 – 1978) é um artista que a população alemã não gosta muito de lembrar. Seu nome é um daqueles exemplos de personalidades que acabaram entrando para a História pela porta dos fundos devido às opções e atitudes assumidas ao longo da vida. Como sabemos, precisamos ter consciência de que responderemos eternamente pelas opções e atitudes que adotamos, mesmo que isso acarrete mergulharmos no obscuro lixo da História. Alguns o fazem deliberadamente, outros o fazem inconscientemente, mas a posteridade não abranda as consequências das nossas atitudes mesmo que pretendamos justificá-las com alegadas boas intenções. Elas (as tais das boas intenções) povoam o inferno, como atesta a sabedoria popular. E o desconhecimento da lei, da ética, dos valores, não absolve o infrator de responder pelas escolhas feitas. É prudente termos isso sempre muito claro.
Esse Hanns Johst, por exemplo, era um poeta e dramaturgo alemão que aderiu entusiasticamente desde a primeira hora à ideologia psicopata, racista, assassina, incivilizada, desumana e abominável do nazismo capitaneada por Hitler, Goering, Goebbels, Himmler e outras bestas-feras travestidas de gente. Foi um dos grandes intelectuais alemães a erguer a voz para defender, aplaudir e incentivar a queima de livros considerados “anti-germânicos” nas universidades alemãs nos meses de maio e junho de 1933, quando foram para as chamas obras de autoria de Albert Einstein, Thomas Mann, Sigmund Freud, Karl Marx, Heinrich Heine e muitos outros. Incinerar livros, desprezar a cultura em geral, configurou, na Alemanha da época, apenas um ensaio em direção à eliminação e queima de seres humanos dali a alguns anos. Cercear as artes, desprezar a importância da cultura, amarrar e emudecer artistas são atitudes sempre temerárias, em qualquer parte do mundo, em qualquer época.

Também é de autoria de Johst a peça “Schlageter”, encenada pela primeira vez por ocasião do 44º aniversário de Hitler, em 20 de abril de 1933, celebrando sua conquista do poder na Alemanha. Vem de uma das falas de um dos personagens a tristemente famosa frase “quando ouço falar em cultura, solto logo a trava de minha pistola”. Infelizmente, a ameaçadora e simbólica sentença segue sendo atual na boca, nas intenções e nas atitudes de muita gente, em várias partes do mundo. Johst foi capturado pelos Aliados no final da Segunda Guerra, condenado por suas atitudes nazistas e caiu em desgraça. Foi varrido para a lixeira da História. A porta dos fundos sempre está aberta para quem quiser cruzá-la É preciso ter cuidado.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 4 de dezembro de 2017)

sábado, 2 de dezembro de 2017

O médico e o monstro

A Ciência, assim como qualquer outra arte ou habilidade humana, pode servir tanto ao Bem quanto ao Mal. Tudo depende do uso que se faz dela, por parte de quem a manuseia, manipula, coordena. Ela, em si, não tem lado definido, pois não passa de uma ferramenta desprovida de intenções, de objetivos, de metas. Quem as tem são os homens, que fazem dela bom ou mau uso. Em fazendo bom uso, entram para a História como heróis, recebendo aplausos e condecorações. Em optando pelo mau uso, ingressam na História na condição de vilões, merecedores de vaias e execrações. Vejamos, a seguir, dois exemplos, um de cada, a título de ilustração desta já tradicional reflexão de segunda.
Comecemos pelo bom exemplo, de cientista que utilizou seus conhecimentos, talento e esforços para auxiliar a humanidade a dar um passo além, rumo à evolução. Era engenheiro de profissão, nasceu em 1912 e morreu em 1977, mas deixou uma biografia extensa de contribuições importantes e transformadoras. Trabalhando nos Estados Unidos no final da década de 1940 e nas décadas de 1950 e 1960, forneceu uma contribuição fundamental ao desenvolvimento da tecnologia aeroespacial que resultou na conquista da Lua pelo homem. Só foi possível construir foguetes tripulados que levassem até a Lua e trouxessem de volta os astronautas com segurança devido ao empenho e à inventividade desse grande cientista e sua equipe de trabalho.
Por outro lado, um cientista também engenheiro de profissão utilizou, décadas antes, todo o seu talento inventivo para a construção de armas malignas que tinham a intenção de servir aos interesses de um dos maiores vilões da História Universal, Adolf Hitler. Esse cientista foi crucial para a criação e desenvolvimento das primeiras armas de destruição em massa e teleguiadas da História. Para criar as condições que permitissem o desenvolvimento de seus projetos, esse cientista coordenou campos de trabalho escravo secretos na Alemanha, utilizando mão-de-obra advinda de prisioneiros de guerra, em condições insalubres, desumanas e assassinas. Era comum a contagem diária de mortos devido à exaustão física, aos maus tratos, à fome e às doenças nas áreas de trabalho desse cientista do mal durante a Segunda Guerra Mundial. Ele nasceu em 1912 e morreu em 1977.

Esses dois personagens eram a mesma pessoa: Wernher Von Braun, que, finda a guerra, foi capturado e levado aos EUA para auxiliar na corrida espacial que colocou o homem na Lua em 1969. Mocinho ou bandido? Vilão ou herói? Tudo isso, nada disso, ou apenas um ser humano igual a você e eu?
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 27 de novembro de 2017)

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

A animação dos inanimados

Nós, madama, seres animados e racionais que somos, parecemos passar grande parte de nossas existências dedicados à tarefa contínua e interminável de transportar de um lugar para outro todos aqueles seres inanimados que nos cercam, e que costumam ser maioria. Não, madama minha, não me refiro àquele seu sobrinho que se imobiliza no sofá a tarde inteira e não se mexe mesmo quando cutucado com a vassoura para que levante e pelo menos vá tirar o lixo uma vez na vida para ajudar um pouco, pelamordedeus! Não, na verdade, me refiro aos seres inanimados mesmo, às coisas sem vida, aos objetos que criamos para que nos sejam úteis, mas que só o são quando reposicionados nos lugares em que deveriam estar mas nunca lá estão, a não ser quando levados por nós.
As canetas podem servir de exemplo fácil para ilustrar a essência da teoria irrelevantista que pretendemos traçar hoje nesta desfilosófica crônica de segunda. Elas, as canetas, nunca estão onde deveriam estar para que nos sirvam com a devida utilidade para a qual foram concebidas. Precisamos sempre trazê-las para que nos ajudem a fazer a lista de compras de supermercado, ou traçar as contas de final de mês. Elas sabem que precisamos delas sazonalmente nesses momentos, mas jamais se apresentam voluntariamente ao alcance de nossas mãos para o serviço. Precisamos sempre buscá-las, nós, os seres animados, a elas, essas determinadas inanimanças.
Outro exemplo vigoroso para ilustrar a tese são as compras de mercado. Quanto serviço, quanta energia gasta entre as prateleiras nas quais os produtos repousam e seu derradeiro estar dentro de nossas casas. Primeiro, depositamos todos eles dentro do carrinho, que conduzimos por entre as gôndolas. Depois, içamos todos para fora a fim de passá-los, um a um, pelo leitor de código de barras operado pela moça do caixa. Feito isso, ensacamos a turma e os depositamos todos de novo dentro do carrinho, que agora conduzimos até nosso automóvel, estacionado no pátio do mercado. Abrimos o porta-malas, tiramos do carrinho e metemos tudo lá dentro, um a um. Ao chegarmos em casa, se moramos em prédio relativamente organizado, retiramos os produtos do porta-malas e acomodamos tudo dentro do carrinho do condomínio. Subimos a nosso apartamento, tiramos tudo do carrinho e finalmente levamos cada artigo para seu destino final em nosso lar.

Alguém aí contou quantos movimentos foram necessários para animar os inanimados? Que trabalho, hein, madama? Desanimador, eu diria! Opa, madama... Volte! Para onde a senhora pensa que está levando esta de segunda de hoje?
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 20 de novembro de 2017)

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Pedras fora, rota livre

Quando estamos determinados a fazer alguma coisa, não há desculpa capaz de nos demover de nosso foco. Porém, virando a outra face da moeda, surge estampada ali a antítese direta do axioma, em mesmo peso: se não queremos fazer algo, qualquer coisa serve de desculpa para nossa inércia. Quando não queremos fazer algo que deveríamos fazer, usamos como subterfúgio a ação impeditiva supostamente advinda de todos os elementos externos a nós mesmos, que se colocam como pedras atravancando nosso caminho. Porém, quando estamos determinados a cumprir uma tarefa, não há galho no meio do trajeto que não seja transposto, cerca que não seja pulada, pedra que não seja rolada para o lado, vento que não seja encarado de frente, temporal que não seja exorcizado no grito. A moeda é sempre a mesma. O lado que decidimos oferecer à luz do sol depende de nossa vontade, e só dela.
Penso nessas coisas quando me ponho a refletir sobre a impressionante história de vida de um personagem folclórico que movimentou as paragens do distrito de Criúva por volta de muitos-anos-no-antigamente-afora, isto é, ao redor de 1844. Conhecido como “O Santo da Cruz”, há até uma ermida erguida em honra a ele ao lado da Igreja Matriz, onde está abrigada a cruz que dizem o monge ter deixado para a comunidade ao partir depois de uma temporada pelas redondezas operando milagres, fazendo curas, distribuindo benzeduras, bênçãos, conselhos, auxílio espiritual e semeando mistérios. Mas tinha nome e biografia o monge eremita. Chamava-se Giovanni Maria D`Agostini. Nasceu em 1801 na região italiana do Piemonte; ingressou jovem em um seminário em Roma mas saiu antes de sagrar-se padre. Desejava percorrer o mundo divulgando a fé, na forma como a entendia, e foi o que fez.

Os registros históricos que seguem suas pegadas dão conta de que, primeiro, percorreu França e Espanha, chegando a fazer o Caminho de Santiago de Compostela. Depois, migrou para as Américas e percorreu (acompanhe): Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Brasil (São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, onde deixou marcas em Criúva, Candelária e Santa Maria), Chile, Bolívia, Peru, México e Canadá. Cansou? Ele não. Tem mais. Percorreu boa parte dos Estados Unidos até se aquerenciar em uma cidade no Novo México, onde acabou misteriosamente assassinado em 1869. Pois é. Fez tudo isso a pé, de carroça, barco ou no lombo de animais. Não esperou a chegada dos automóveis e dos aviões para cumprir a tarefa. Sua inexistência não era desculpa. E a gente aqui, reclamando do elevador que enguiça...
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 13 de novembro de 2017)

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

A temer a porta dos fundos

Existem duas maneiras de entrar para a História: pela porta da frente e pela porta dos fundos. A turma dos defensores do politicamente correto, sempre de prontidão e em guarda, se me ler, virá exigir a apresentação de uma terceira via para minha tese, já de saída. E eu, estudioso que sou do Irrelevantismo, vejo-me apto a fornecê-la, de saída também. Ei-la, então, a pedidos, a terceira via: não entrar para a História de jeito nenhum, que é a opção praticada pela avassaladora maioria das gentes ao longo da mesma História, uma vez que, segundo pesquisas desenvolvidas por colegas estudiosos do Irrelevantismo, descubro que, desde o surgimento do primeiro ser humano sobre a Terra, até hoje, já viveram 108 bilhões de pessoas. Dessas, quantas entraram para a História? Ínfimas, por certo. E ao par dessa infimidade portentosa, sustento haver aquelas duas maneiras de ingressar nas páginas da imortalidade histórica, conforme exposto na primeira frase desta hoje reflexiva crônica de segunda.
Pela porta da frente e pela porta dos fundos, portanto. A título de ilustração, que sei que a madama aprecia as coisas bem ilustradinhas, evoco o exemplo do Guilherme Tell, o arqueiro aquele que entrou para a História flechando uma maçã disposta sobre a cabeça de seu próprio filho, em épocas remotas nas quais barbaridades dessa natureza eram permitidas. Guilherme entrou para a História pela porta da frente, mas temerariamente, uma vez que a flechada partiu ao meio a dita maçã, e não a cabeça oca de seu filho, que concordou em se prestar à brincadeira de gosto duvidoso. Mas e se Guilherme tivesse errado? Se não houvesse treinado o bastante? Quantas maçãs precisou rachar com flechadas antes de levar ao público o show, suficientemente seguro de seu desenlace? E quantas cabeças de sobrinhos, afilhados e garotos da vizinhança pode ter ferido antes de colocar a do próprio filho na alça da mira? Ah, Guilherme, Guilherme, que temeridade... Entrou pela porta da frente, admito, mas que a dos fundos escancarava suas portas para ele, isso escancarava, né, madama? Que temeridade!

Falando em temeridades e ingressos na História pela porta da frente ou pela dos fundos, parece-me haver aqui algum trocadilho pulsando desejoso de vir à tona nessas mal-traçadas de segunda, mas não se me clareia a mente agora. Talvez a madama possa me ajudar. Por enquanto, pensemos nisso: se for para entrar para a História pela porta dos fundos, melhor ficar à sombra de uma árvore tranquilamente degustando uma maçã, a senhora não acha? Aí não haverá nada a temer.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul,em 6 de novembro de 2017)

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Cuidado, ele já entrou

Na verdade, só mudam o nome e a nacionalidade, mas a essência é sempre a mesma. Hoje em dia, a nacionalidade dele é norte-coreana e seu nome é Kim Jung-Un, presidente ditatorial vitalício da nação asiática. Até bem pouco tempo atrás, quem cumpria o papel era Osama Bin Laden, o saudita fundador e líder da organização terrorista al-Qaeda, a quem se atribui o planejamento e a execução de atentados como o das Torres Gêmeas nos Estados Unidos, em setembro de 2001. Laden deixou o posto ao ser assassinado em uma operação secreta comandada pela CIA. Mas houve muitos antes dele, revezando-se ao sabor das necessidades norte-americanas de manter sempre na mira a figura do “inimigo público internacional número 1”.
A lista pode ser facilmente preenchida quando nos dedicamos a relembrar um pouco o cenário da política internacional das últimas décadas. Antes do explodidor de bombas atômicas norte-coreano e do líder terrorista saudita, o papel foi desempenhado (mesmo que à revelia e a contragosto) por diversas figuras hoje históricas. Vamos a algumas delas, só para ilustrar e refrescar a memória: Saddam Hussein, do Iraque; aiatolá Khomeini, do Irã; Muamar Khadafi, da Líbia; Kim Jong-il, também da Coreia do Norte, pai do atual líder daquele país; Idi Amin Dada, de Uganda; e até mesmo os sul-americanos Hugo Chávez, da Venezuela, e Fidel Castro, de Cuba, integraram o time. Durante o período da Guerra Fria, em que os mundos capitalista e comunista rosnavam um contra o outro, não faltaram líderes de países comunistas a se verem instalados no desconfortável trono, como os do Vietnã do Norte que entraram em refrega direta contra os Estados Unidos e vários dirigentes soviéticos como Nikita Kruchev e Leonid Brejnev, apelidados pelos norte-americanos de comandantes do “Império do Mal”.

Direcionar os temores mundiais, as frustrações e os ódios latentes contra figuras internacionais que pressupostamente encarnam o mal é uma estratégia antiga e surrada, usada à larga pelas nações líderes, a fim de se manterem no topo da orquestra, dando o tom da sinfonia, que deve tocar as valsas no compasso que elas desejam. Os Estados Unidos são experts em criar supervilões internacionais que sejam constantemente combatidos, até porque, existe uma indústria armamentista que gera lucros astronômicos e precisa ser alimentada. A pergunta que não quer calar, porém, nesses dias hodiernos, é: e o que fazer quando o “inimigo público internacional” parece estar sentado no Salão Oval da Casa Branca, travestido de presidente? Xiii...
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 30 de outubro de 2017)

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Para além do cometa fugaz

Eu possuía um binóculo e meu primo dispunha momentaneamente da chave do carro de seu pai, meu tio. O pacto estava feito, afinal, tínhamos em mãos toda a parafernália necessária para testemunharmos a passagem do Cometa Halley, naquele fevereiro de 1986. Além do binóculo e do transporte, estávamos aviados também do requisito que, talvez, se configurasse no mais determinante de todos: a juventude de nossos 20 anos de idade, trasbordante de iniciativas e das proatividades características. Aquele astro celeste não cruzaria os céus passando despercebido por nossa observação daqui debaixo, não mesmo.
Éramos estudantes universitários gozando férias de início de ano e gastávamos o tempo deambulando pela nossa compartilhada Ijuí natal naqueles dias de atenções extraplanetárias. Morador da Rua dos Viajantes, acostumado a trilhar viagens de todas as espécies, e frequentador assíduo do mundo da Lua que era, cabia a mim a tarefa de descobrir a melhor data e o mais propício horário para efetivar a observação do cometa que sazonalmente faz sua passagem perto do nosso planeta, proporcionando uma experiência visual única a cada ciclo de cerca de 76 anos. A última vez fora em 1910 e, agora, testemunharíamos sua nova visita aos nossos domínios terráqueos.
 Decretei o dia certo naquele fevereiro e a hora madruguenta em que melhor poderíamos avistá-lo. À meia-noite, limpei as lentes do binóculo, meu primo chegou pilotando o Corcel II de meu tio e rumamos a um descampado nos limites da cidade, escuro, longe das luzes da civilização. A temperatura era amena e o céu estava limpo, propício para o avistamento de cometas. Estacionamos, saltamos para fora do carro e nos pusemos a perscrutar o firmamento estrelado, em busca do astro errante. De repente, lá estava ele. Longe, longe... Uma estrela com um rabinho reto luminoso em forma de cauda. Era o Halley. Tímido, discreto, devido à distância. Mas era ele. Nossos olhos pescaram para dentro das almas a sensação do avistamento e a consciência do privilégio histórico que ambos vivenciávamos ali. Bastou.

Saciados, voltamos para nossas casas. Guardei meu binóculo, meu primo devolveu a seu pai o carro intacto. Adormecemos, cada um em seu quarto. Ou não. O retorno do Halley está previsto para 2061, quando eu acumular 95 anos, se estiver vivo. Voltarei a vê-lo? E, se o vir, reconhecerei nele o reflexo de mim mesmo, a mesma essência do Marcos que presenciou sua visita anterior? Pensei essas coisas naquela noite de insônia excitada. Ainda penso. Afinal, precisamos ser mais do que meros cometas de passagem.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 23 de outubro de 2017)

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

A mancada do Olorico

Foi na celebração dos 90 anos da dona Rieta que o Olorico perdeu para sempre a moral que cultivava junto ao coração da estimada anciã. Solteirona por opção e por rabugice, talvez mais devido ao segundo aspecto do que ao primeiro, dona Rieta não tinha filhos e era a sobrevivente solitária de uma fornada de seis irmãos que lhe povoaram o coração de sobrinhos, noras emprestadas (como designava imperiosa as esposas dos sobrinhos) e sobrinhos-netos, que lhe paparicavam e faziam as vontades.
Dona Rieta era querida pela família, pelos amigos, pelos vizinhos da rua em que vivera a vida inteira e não havia quem pensasse em se fazer ausente à festa que marcaria suas nove décadas, dali a alguns dias, em um domingo ensolarado que ela mesma tratara de encomendar via rezas diretas a São Pedro e ele que não lhe falhasse. Lúcida, ativa e xingante como sempre, dona Rieta saboreava os preparativos para o evento que seus ouvidos atentos captavam da sala ao lado enquanto o sobrinho mais velho, na casa de quem morava há décadas, organizava demandas junto à esposa, aos sussurros, na cozinha. Haveria churrasco para centenas de convidados e, vejam só, o Olorico insistia em custear sozinho metade das despesas.
Olorico era filho de uma prima de dona Rieta, falecida já há muito, e, no alto de seus 70 anos de idade, envergava a primazia de ser o afilhado mais velho da estimada anciã do clã. Havia um lugar especial para o Olorico no coração da dona Rieta e todos sabiam disso. Era como um filho para ela, e se portava como se fosse. Até o dia fatídico da festa dos 90 anos. O domingo amanheceu ensolarado mesmo, pois nem São Pedro ousaria contrariar os desígnios da Rieta. Os convidados iam chegando ao clube que sediava a festa e rumavam à poltrona de onde Rieta recebia os cumprimentos, presentes, afagos e mimos. Até que chegou o Olorico.

Aproximou-se da madrinha, abraçou-a e segredou em seu ouvido algo que a fez fechar a cara, estender o beiço e não olhar mais para ele. Houve certo climão ao longo da festa e, na segunda-feira, quiseram saber dela o que o Olorico lhe cochichara. “Ele me insultou. Disse que eu sou uma sálvia”, reclamou a madrinha, amargurada. Analfabeta que era, não reconheceu na boca do afilhado o elogio de “sábia” que ele lhe endereçava com todo o afeto e admiração. Morreu no ano seguinte sem perdoar a insolência e recusando que colocassem no galeto as folhinhas do tempero que a vida inteira apreciara. “Aquele desaforado”, resmungou até o fim, pensando no desafortunado do Olorico, a quem, desconfiam os familiares, faltou sabedoria.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 16 de outubro de 2017)

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Um café para o Palhares

O Palhares insistia em me vir com política. Eu dizia: “bah, Palhares, política? Política não, né? Já está tudo tão esdrúxulo, tudo tão desavergonhado no Senado, no Planalto, na Assembleia... Fazem baixezas na Câmara alta, altas falcatruas na baixa e ainda queres me vir com política? Política não, né, Palhares. Pede um pão de queijo e me acompanha em um pingado que, pra começar o dia, melhor mesmo é conferirmos quem apareceu na Social do Pulita e depois sorver a reflexão do frei Jaime, para ver se renovamos o ânimo para mais um dia de labuta”.
Dizia isso e o Palhares meneava a cabeça em silêncio, me olhando de lado com um sorriso mal-acabado na ponta do rosto, como que dizendo que eu não tinha jeito mesmo, que essa postura passiva é que levava ao caos que agora se estabelecia e tomava conta. Arrebatava das minhas mãos o Pioneiro e abria direto na coluna da Rosilene Pozza para se indignar com os embates na Câmara e os ires e vires dos que vão e dos que vêm, pontuando o andar dos que ficam. “Política, rapaz, política. Tudo passa pela política. Precisamos sempre estar atentos, acompanhar, fiscalizar. Se não for pela política, nada vai mudar nesse país”, sentenciava o Palhares, bebericando o pingado fumegante que aquecia nossas manhãs no entorno da Praça Dante.
O Palhares está coberto de razão, eu sei. Ele defende a essência basilar do fazer política, que deveria mover genuinamente todos os cidadãos que decidem ingressar nela, a saber: dedicar-se à construção do bem comum. Os ataques pessoais, o arrivismo, o jogo de interesses, a corrupção, a prevaricação, são desvios operados por quem ingressa na vida pública com o único propósito de aprimorar a privada. A sua própria vida privada. E aí dá no que dá. Quando o desvirtuamento ocasional se transforma em padrão, as instituições políticas começam a ser corroídas pelo apodrecimento de suas bases e fundamentos. É aí que se instala a desesperança, que também precisa ser combatida porque, se ela tomar conta, a festa dos desvirtuados passa a não ter hora para acabar.

Precisamos de mais Palhares. De cidadãos que não desacreditem no instrumento civilizatório que é o fazer política com seriedade e abnegação, conforme foi idealizado em sua origem. E que exijam de seus protagonistas uma atuação condizente com as bases e fundamentos da atividade pública. Para que as discussões sobre política possam voltar a ser encaradas como produtivas, fundamentais e necessárias para o contínuo desenvolvimento da sociedade. Tá certo o Palhares. Mais um cafezinho aqui pro Palhares, por minha conta.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 9 de outubro de 2017)

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Vilões para dar e vender

Invade a mente, sempre que nos flagramos assistindo a um telejornal, nesses tempos soturnos, a amplitude da palavra “vilão”. Outrora, precisávamos assistir a algum um filme em busca de um malvado contra o qual torcer, irmanados aos esforços do herói que a trama nos proporcionava. Ou combatê-los nas páginas dos livros, em desenhos animados ou, quando muito, nas seções policiais dos jornais, onde, naqueles tempos, os da vida real se restringiam. Agora, algo mudou. E parece que para pior.
Os dicionários conceituam o termo elencando sinônimos e aproximações como “ordinário, desprezível, infame”. Todos se aplicam, às vezes em conjunto, outras por exclusão, dependendo da figura a quem o conceito passa a designar de forma natural devido aos atos de sua autoria que subitamente emergem das penumbras em que praticavam suas ações vis, as vilanias. O dicionário etimológico que me está sempre à mão explica que a palavra é oriunda do latim, “villanu”, referindo-se aos habitantes rústicos, rudes e grosseiros das antigas vilas romanas. Com o passar dos séculos e o suceder das vilanias, o termo evoluiu (ou involuiu) para o significado que hoje atribuímos a ele.
Um dos mais antigos vilões registrados no imaginário humano é o diabo, sempre combatido pelas forças do bem que, sabemos desde já, para nosso imediato alívio, sairão vencedoras ao final. Elencar uma lista de vilões marcantes (reais e imaginários) a partir daí fica fácil, ao sabor da memória: o Bicho-Papão, a Bruxa Má, a Madrasta da Cinderela, o Lobo Mau, os Irmãos Metralha, o Mancha-Negra, Drácula, o Capitão Gancho, o Coringa, o Duende Verde, Freddy Kruger, Lex Luthor, Hitler, Himmler, Goering, Goebbels, Dick Vigarista, Lady Macbeth, Iago, Heathcliff, Mr. Hyde, Jack o Estripador, Professor Moriarty, Capitão Feio, Lúcifer, Belzebu, Torquemada, Gargamel, João Bafo-de-Onça, a Rainha de Copas, Norman Bates, Calígula, Nero, Darth Vader, Arlequina, Pinguim, Dr. Octopus, Galactus, Hannibal Lecter, Adrian Veidt, Fantômas, o Macaco Louco, Rastapopoulos, a Turma da Zona Norte, Godzilla e tantos, tantos outros.

Ao longo dos tempos e permeando todas as culturas do planeta, os vilões sempre se têm feito presentes, personagens fundamentais a serem combatidos a fim de renovar a esperança humana na preponderância de conceitos positivos e éticos. Pena que, pelo que se tem visto, o Brasil da atualidade vem se credenciando a ser um exportador de vilões capaz de suprir as demandas por vilões do mundo inteiro pelos séculos vindouros. E para combatê-los? Simples: Superamigos, ativar!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 2 de outubro de 2017) 

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Diga-me no que crês e... daí?

Cada um acredita no que quer, a senhora não acha, madama? Ninguém tem o poder ou o direito de criticar ou querer reorientar as crenças dos outros. Muito menos, de zombar delas. Crença é crença; acredita-se e pronto. Razão, lógica, bom senso, não entram na conta quando se trata de acreditar em alguma coisa. Não temos a obrigação de justificar nossas crenças. Não exijam coerência de nós, que cremos, independentemente do que quer que seja aquilo em que depositamos nossas mais profundas fés. Plural de “fé” é “fés”? Creio que sim (na verdade, torço para que sim, a bem do bom senso e do bom gosto desta crônica de segunda).
Eu sou um ser lotado de crenças. Algumas delas acompanham minha existência há décadas. Outras foram sendo abandonadas no meio do caminho, abandonos esses motivados pelas experiências e pelas decepções que se apresentam a cada esquina dobrada. Há crenças que nos fortalecem e nos justificam, ao mesmo tempo em que há aquelas que nos decepcionam, que nos faltam justamente no momento em que esperávamos delas a manifestação e a comprovação das certezas que nelas depositávamos. Crer não é saber. Crer não é conhecer. Crer é crer e ponto.
Eu, por exemplo, coleciono acreditares e ninguém tem nada a ver com isso. Acredito no emagrecimento estonteante da Geisy Arruda; acredito na conversão da Andressa Urach; acredito no Monstro do Lago Ness (o Lago Ness existe, já naveguei nele, e deparei, sim, com um monstro por lá, mas isso fica para outra segundeira, não é hora de tratar sobre espelhos e reflexos assustadores em águas turvas); acredito em vida extraterrena; acredito em torta de bolacha; acredito na previsão do tempo; acredito nas profecias de Nostradamus (especialmente naquelas já confirmadas); acredito no ponteiro do reservatório do tanque de combustível de meu automóvel; acredito no pacto feito com o despertador antes de entregar-me ao sono; acredito na performance do time para o qual torço (esqueci de dizer que acreditar contém doses absurdas de cabeça-durismo) e em tantas outras coisas.

Já acreditei em discos voadores, mas troquei-os pelos discos de vinil. Tem quem creia que a Terra é oca e há quem jure que ela é plana (eu acredito que seja redonda, o que explica certas tonturas e alguns desequilíbrios). Até sábado passado, acreditava no planeta Niribu e em seu iminente choque contra a Terra, acabando com o mundo, mais uma vez. Se aconteceu, esqueceram de me avisar. Mas a mais estranha e injustificável de todas as minhas crenças é essa, teimosa, na humanidade. Cada um com seus absurdos, né, madama.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 25 de setembro de 2017)

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Velhas novas sobre a Terra

Parafraseando um antigo e respeitado filósofo uvanovense, “não há o que não haja”. E não há mesmo como não evocar o certeiro adágio quando deparamos com determinadas informações que nos chegam diuturnamente por meio das mídias falada, escrita, televisionada e navegada. Descubro, por exemplo – não sei se a madama já estava sabendo –, que anda ganhando volume e força um movimento mundial que reúne pessoas comungantes de uma mesma certeza: a de que a Terra não é redonda, mas, sim, plana. Isso mesmo, madama, tem gente (e muita gente, por sinal) em pleno século 21 que está convicta de que nosso planeta é chato, além de, algumas vezes, também enfadonho. Incrível, pois não?
Autointitulam-se eles como “terraplanistas”, em oposição a gentes como a madama e eu, que batemos o pé no chão ao insistirmos na antiga crença de que a Terra é redonda; somos os “globalistas” (de minha parte, preferiria um termo mais poético, como “redondistas” ou “terrabolistas”, a senhora não concorda?). De qualquer forma, não se trata tão-somente de apenas duvidar do que reza a ciência moderna em relação ao formato do planeta que habitamos, como uma avaliação mais, digamos, plana, tenderia a apontar. Não. Os “terraplanistas” fundamentam a sua crença sobre eventuais falhas na sustentação da tese de que a Terra seria redonda, e vão aos fatos, elencando-os e desenterrando o debate.
Ou seja, o que se pode perceber é que está na moda vasculhar o passado e ressuscitar antigos conceitos, trazendo-os de novo à tona, insuflando-lhes sobrevida. Isso, em vários aspectos, não só em questões científicas. O boneco Falcon, da Estrela, por exemplo, que citei aqui nesta crônica de segunda, na segunda última. Descubro agora que, coincidentemente, a marca de brinquedos que o fabricava décadas atrás decidiu reeditar o boneco para celebrar os 80 anos da empresa, evocando produtos que fizeram história entre as crianças do passado.

Mas olha, madama, vou lhe dizer uma coisa. Enquanto essa onda “revival” de trazer para o presente as coisas do passado se restringir a teorias científicas sobre a esfericidade da Terra e a brinquedos que ficaram na memória, estará tudo muito bem. Problema, mesmo, é quando esse tipo de movimento começa a querer revitalizar visões de mundo totalitaristas, ditatoriais e segregacionistas, que a História tanto penou para extirpar. Tipo a censura prévia a bens culturais, por exemplo, como se fazia na Alemanha nazista, na Rússia stalinista, no Brasil ditatorial. Daí, sim, o caldo entorna, como diziam os antigos. É preciso ficar atento.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 18 de setembro de 2017)

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Na ausência do Falcon

Era lá pelo final dos anos 1970 e meu sonho de consumo, assim como o de toda a gurizada de minha época, era ter um boneco Falcon, da Estrela. Quem tem menos de 40 anos e estiver lendo esta crônica, não vai ter a mais remota ideia do que estou falando. Então, tento explicar. Falcon era um boneco de plástico de uns 30 centímetros de altura, mais ou menos articulado, barbudo, trajando roupa militar camuflada, botas e repleto de acessórios de combate como metralhadora, pistola, paraquedas, turbocóptero, walkie-talkie, lanterna, binóculos, facões, bússolas e tudo o mais que fosse possível imaginar. Falcon era tudo! Falcon era aventura e diversão garantidas! Ah, como eu queria um Falcon!
Tratava-se, repito, do final dos anos 1970. Para ser mais específico, descubro, após uma rápida busca google (afinal, escrevo no início do século 21, né), que o boneco fora lançado pela fábrica de brinquedos Estrela exatamente em 1977, quando, então, eu tinha 11 anos de existência. E eu queria um Falcon. Havia propaganda na televisão à tarde, enquanto eu assistia, depois das aulas, no aparelho Telefunken em preto e branco, aos desenhos animados da Hannah-Barbera (A Arca do Zé Colmeia, A Corrida Maluca, Tom & Jerry, A Feiticeira Faceira, Zé Buscapé, O Esquilo Sem Grilo, Tutubarão etc), que mostravam a versatilidade do boneco Falcon que, inclusive, vinha em duas versões: com e sem barba! Em outra opção, o boneco mexia os olhos! Ah, eu sonhava diariamente com um boneco Falcon. Mas nunca tive um.
Havia um coleguinha, que imaginávamos rico, que possuía um Falcon. Era o Ricardo. Ele tinha não só um Falcon, como também um autorama, outro sonho de consumo. Não tive nem um nem outro. Tive, óbvio, muitas outras coisas, mas não um Falcon. Eis aí outro tópico que coloco na lista de temas a serem abordados e dissecados, futuramente, assim que me animar a começar a fazer análise. A ausência do Falcon em minha vida e como a possibilidade de tê-lo poderia tê-la mudado. Afinal, olha só a situação hoje daqueles meus colegas que tinham Falcons! Nossa! Que coisa! Como ponderou dia desses meu amigo Cristiano, que também nunca teve um Falcon, vejam o Donald Trump! Deve ter tido dezenas de Falcons! Digo mais: Trump deve ter tido a coleção completa dos Falcons na infância! E chegou onde chegou, sendo a coisa que é, pelo simples fato de ter tido Falcon! Não tenho dúvidas disso.

Nem Cristiano e tampouco eu somos presidentes dos Estados Unidos por uma só razão: faltou um Falcon em nossas biografias. Bom, se for pensar por esse viés... Sorte do mundo...
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 11 de setembro de 2017) 

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Tem queijo no meu sorvete

O surgimento e o estabelecimento de “manias” temporárias, também conhecidas como “febres” ou “ondas”, revela muito a respeito do espírito da época em que se vive. “Diga-me a onda em que surfas e dir-te-ei quem és”, poderia sentenciar uma pitonisa, sabendo todos nós que, na atualidade, pitonisas e oráculos foram substituídos pelos consultórios de psicologia. Uma das ondas que parece ter vindo para ficar, ou, pelo menos, para durar por um bom tempo, é essa de conferir sabores diversos a produtos que, na sua origem e essência, em nada se relacionam a eles, provocando surpresas (e às vezes, sustos) aos consumidores.
Uma das mais facilmente verificáveis se dá no âmbito das cervejas artesanais. Tenho um amigo que está perdida, profunda e ebriamente deslumbrado pela onda da saborização das cervejas, o que o conduz a degustar com fascínio copos espumosos de cervejas com sabor de mel, de café, de barril de carvalho envelhecido (não imagino o gosto de um barril de carvalho envelhecido, mas já provei, pelo menos, um copo de cerveja que garante estar a oferecer essa sensação gustativa), de pitanga colhida por jovens ruivas e assim por diante. Abre-se a garrafa, despeja-se a cerveja no copo, mete-se o beiço na borda e, ao empinar, o que as papilas gustativas detectam não é o tradicional sabor amargo do lúpulo misturado à cevada, mas, sim, sabores dessas coisas e de coisas outras, que não cerveja. Já cheguei ao extremo de degustar, certa feita, uma cerveja com sabor de bacon. E havia até um porquinho voador desenhado no rótulo. Ah, juro! Juro mesmo!
De minha parte, minha onda é mais mansa, uma marolinha. Sou adepto dos sorvetes com gostos surpreendentes e assíduo frequentador de uma sorveteria em Porto Alegre cujos sabores da sorvetança me fascinam. Jamais volto da Capital sem ter suprido, no dito estabelecimento, minha dose sazonal de sorvete sabor queijo, por exemplo. Uma delícia! Tem também o sorvete de amendoim, com gosto de amendoim descascado. E o de milho verde! O de melancia, o de abacate, o de melão, com a sensação de melão fresquinho recém cortado!

Não me espanta se chegar o tempo em que, para saborear um café de manhã, terei de beber uma cerveja e, para a cerveja do happy hour, tiver de devorar uma bola de sorvete. Comerei melancias com gosto de mel e, para a base de meu risoto, picarei bananas a título de cebola frita. Ó, admirável mundo novo! Em uma era em que as máscaras tomam conta do salão, torço para que a maré amanse e tudo não passe de ondas.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 44 de setembro de 2017)

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Frio na pele, calor n´alma

Sobre uma coisa somos todos unânimes: unanimidade não existe. Poucos ou raros são os aspectos sobre os quais é possível deitar o véu da unanimidade. Os aviões, por exemplo, são uma delas. Afinal, todo o avião que sobe acabará descendo, de um ou de outro jeito. Sempre descem, é unânime. Difícil encontrar outra coisa que atinja esse grau de unanimidade. Reflito sobre isso nessa reta final (ainda pouco menos de um mês) de um inverno muito estranho na Serra gaúcha. O frio não é unânime. Há quem goste e há quem não goste, já que somos humanos e não pinguins, apesar de, algumas vezes, eu me sentir como se fosse um deles quando desavisadamente fixo o olhar no termômetro.
O frio não só não é unânime como também não é democrático. Pois que é difícil integrar o grupo dos bem-aventurados que dizem apreciar o inverno devido aos prazeres que ele proporciona, como uma lareira acesa, um bom vinho, um passeio a Gramado para ver a neve, o enrodilhar-se em um cobertor, um chocolate quente, essas coisas. Nem todos podem. E os que não podem, acabam vivenciando na pele os rigores malvados não só do frio, mas especialmente do ato de passar frio, essa vergonhosa mazela decorrente das incompetências da (in) civilização humana. Eu, de minha parte, quanto mais avanço nos anos, menos gosto do frio. Combato-o com as armas que tenho ao meu alcance e passo o inverno tiritando e torcendo para que as temperaturas subam.
Bom é saber que não estou só. Dia desses, encontrei um poema, elaborado provavelmente no alto do inverno serrano, em que o frio é desancado com ritmo e rima. Adorei. É de autoria do poeta caxiense Alfredo de Lavra Pinto (1887 – 1939), patrono da cadeira número 8 da Academia Caxiense de Letras, e só posso imaginá-lo compondo-o envolto em um cobertor, à noite, de tamancos e carpins, tremendo o queixo e irritado. Intitulado “Inverno”, reproduzo-o aqui, como uma arma a mais contra as cortantes friagens que nos assolam:
“Inverno, eu voto horror aos teus rigores,/ Eu abomino, em cólera fremente,/ O teu minuano, a sibilar, algente,/ E a música dos tristes amargores./ Detesto esses nevoeiros e tristores/ Que trazes, ó Briareu impenitente,/ Para nos torturar, horrivelmente,/ Para nos imergir num mar de horrores!/ Odeio o teu entono e o teu império!/ Odeio esse ar glacial, de spleen funéreo!/ Odeio o teu sinistro desvario!.../ E odiando-te, com toda a força da alma,/ Eu juro que prefiro a ardente calma/ Ao teu desesperado e intenso frio...”.

Essa impressão deve ser unânime: o frio esquentara bem a pena do poeta...
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 28 de agosto de 2017)

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Coelhos para encher o bolso

Queríamos ganhar dinheiro. A mesada que recebíamos de nossos pais não estava sendo suficiente para suprir nossas necessidades adolescentes. Eu, por exemplo, desejava adquirir logo todos os livros de Monteiro Lobato que ficavam expostos nas prateleiras da Livraria Progresso, bem como colecionar todos os títulos de gibis dos heróis Marvel que surgiam mensalmente na banca de revistas também batizada de Progresso. Havia muito progresso na nossa Ijuí natal (Rádio Progresso, Armazém Progresso...) e queríamos também progredir, meu primo e eu. O que ele planejava fazer com sua parte do futuro dinheiro que ganharíamos, eu nunca soube, mas um propósito nos unia: empreender.
Tínhamos a mesma idade (ainda temos), cursávamos a mesma classe na escola e, por volta dos 15 anos (início da década de 1980), sentamos para planejar. O pai de um colega, dentista famoso na cidade, instalara uma criação de coelhos em sua chácara e fomos lá visitar o empreendimento, cujo mercado era promissor. Achamos aquilo relativamente fácil de administrar e decidimos: criaríamos coelhos (estávamos convictos de que ficaríamos ricos vendendo ovos de páscoa, se alimentássemos e treinássemos bem aqueles coelhos). Meu pai liberou um pedaço do terreno nos fundos de casa para instalarmos ali o futuro viveiro. Pegamos enxadas numa tarde de sol e limpamos a área onde ergueríamos as gaiolas. Agora só faltava construí-las e adquirir os coelhos.
Mas precisávamos de dinheiro para o investimento inicial, o tal do capital de giro. Verificamos nos bolsos que nosso capital não girava além de algumas moedas sobradas de troco dos gibis e das merendas. Tínhamos primeiro de fazer dinheiro para investir no empreendimento que, depois, nos traria fortuna. Que coisa complicada essa vida de capitalistas! Mas fomos em frente. Aceitamos trabalho temporário de dois meses, nas férias, para administrar uma lojinha de especiarias pertencente a um tio-avô enquanto ele veraneava no litoral. Guardaríamos os salários para construir as gaiolas e comprar dois casais de coelhos, torcendo para que se reproduzissem com rapidez (não lembro de termos orçado as cenouras e as couves).

Na segunda semana de trabalho, meu primo derrubou ácido acético no pé e teve de ser substituído por outro colega. Meu sócio, então, retirou-se do projeto, que acabou naufragando junto com os salários devidamente torrados em gibis, livros e lanches. Nenhum de nós jamais criou coelhos. Quem saiu no lucro foi meu pai, com a roçada gratuita que fizemos no terreno de casa. Aprendemos que empreender não é brincadeira.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul,em 21 de agosto de 2017)

terça-feira, 15 de agosto de 2017

O reinado da peçonha

Dia desses vi circular pela internet um artigo de um jornalista do centro do país elencando cinco “roubadas” (definidas por ele) para se evitar ao visitar certa cidade turística da Serra Gaúcha. Apesar do título chamativo, logo fica claro, na leitura do texto, que as tais “roubadas” não passam de ataques direcionados à essência daquilo que o turista encontra ao visitar a cidade, como sua gastronomia, sua estrutura, suas atrações. Não é um texto crítico, porque não amplia as fontes, não oferece o contraponto, não aprofunda as questões, não busca alternativas. A intenção do autor é uma: atacar, desconstruir, fazer terra arrasada e escapulir das cinzas exibindo a própria (autossuposta) sagacidade.
Uma cidade turística (ou não) tem problemas? Claro que sim. Qual não tem? Melhorar, desenvolver, organizar, são metas constantes dos administradores (públicos e privados) de qualquer município, empresa, estado, país, instituição, grupo, comunidade, o que for. Por isso, críticas e sugestões são sempre bem vindas por parte de quem está envolvido nos processos de gestão. Mas é fácil separar a crítica construtiva do raso ataque destilador de peçonha. E estamos a viver um tempo em que a destilação da peçonha virou o senso comum a pautar a maioria das manifestações em todas as plataformas dos relacionamentos humanos. Picar e injetar veneno virou esporte nacional, a despeito de classe social ou de nível de instrução. Combater o ódio com o ódio se transformou em alternativa instantânea para o descarrego urgente das insatisfações, porém, o método não acarreta melhora alguma no quadro, pelo contrário, só amplia o mar de ódio. Os ataques deselegantes resultam no imediato nivelamento do atacante ao perfil de seu alvo.
Desconstruir, desmoralizar, consolidar pré-conceitos, endemonizar virou moda. “Vejam como sou esperto, olhem só como mordo, como sou temerário” são os motivadores das ações grotescas da maioria contra os alvos que elegem para receber as toneladas de ódio que brotam dos gramados sombrios de suas próprias índoles. São usinas de produzir raivosidades que não hesitam em metralhá-las em volta, desde que, claro, elas não os atinjam. Imaginam que, latindo e mordendo, se colocam a salvo do julgamento dos outros, posicionando-se no topo da pirâmide da intocabilidade. Empreendem energia não para criar e transformar para melhor, mas para latir enquanto as caravanas construtivas passam.

Frente a esse quadro, é melhor já ir intitulando minha própria lista de antídotos anti-peçonha: “Trocentos motivos para ficar na minha”.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 14 de agosto de 2017)

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Xeque-mate na "bisca"

Após duas décadas e meia vivendo na Serra Gaúcha e por mais de 15 anos frequentando Uvanova, essa simpática e discreta cidadezinha situada na divisa entre Vila Faconda e Tapariu, encravada ao pé (ou às patas) do Rio das Antas, descobri que qualquer pessoa provida com um mínimo de inteligência aprende a jogar bisca. Prova disso é que eu não aprendo. Já tentaram de tudo, meus sogros, minha esposa, meus cunhados, os primos de meus cunhados e de minha esposa, as tias e os tios de minha esposa e cunhados, os vizinhos, as crianças semialfabetizadas, os primos dos primos e os tios dos primos e os cunhados dos tios dos primos e agregados vindos de todas as redondezas (porque a família ali é grande e não há quem não saiba jogar bisca), mas não adianta. Eu não aprendo.
Chego a provocar espanto até entre os bois e as vaquinhas da roça, que me fitam de olhos esbugalhados sempre que surjo, e sei bem o que ruminam quando passo me enroscando nos arames farpados e estapeando mosquitos: “muuu, lá vem aquele que não sabe jogar bisca”. Sou motivo de espanto imensurável entre todos os uvanovenses devido a essa minha peculiar incapacidade cognitiva. “Esse homem joga xadrez e não aprende a jogar bisca”, já flagrei sussurrarem enquanto mexiam a mêscola dentro do tacho a produzirem massa de tomate. Que eu não saiba sacudir a mêscola, até admitem. Mas não aprender bisca, sacramento!
Além do mais, não é verdade que eu saiba jogar xadrez. Domino apenas o movimento de cada peça e consigo fazer cara de gênio enquanto fico uns 15 minutos com a mão no queixo observando o tabuleiro antes de mover decidido – pam! – a torre duas casas à frente para vê-la de imediato – pam-pam! – ser capturada pela dama adversária, que não precisou mais do que 15 segundos para detectar minha babaquice. Fico constrangido quando uma dama captura minha torre mas, pelo menos, no xadrez, engano durante algum tempo. Na bisca, escancaro minha burrice já na primeira rodada, quando não entendo o que é um “cargueiro” ou o que acontece quando sou “estroçado” (han?) e por que diabos antes o sete de copas era o cara e agora não vale nada? Ah não! Desisto. No xadrez, a rainha é sempre a rainha; o bispo só faz o que os bispos fazem. O mundo representado pelo jogo de xadrez parece estável, com regras claras e imutáveis.

Já a bisca... A bisca representa a mutabilidade imprevisível da vida. E ela, em si, já é tão difícil de apreender. Nesse cada vez mais caótico mundo em que vivemos, tenho preferido a ilusória segurança das certezas do xadrez. Isso, até levar o xeque-mate, claro...
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 7 de agosto de 2017)

O cotovelo do "troglolaite"

Não adianta, e a madama bem sabe disso: pau que nasce torto jamais endireita. É o meu caso, como a amiga leitora já percebeu. Observe. Noite dessas, presente que me fazia a um evento social concorridérrimo (o sufixo “dérrimo” é mais chique que o sufixo “díssimo”, são detalhes que fazem a diferença ao socializar, a senhora atente), transitava eu feito um Titanic periclitante por um mar de icebergs, equilibrando minha tacinha de champanha que aprendi a chamar de espumante, quando meu cotovelo esbarrou contra uma pirâmide de macarons que de pronto foi a pique.
Veio abaixo a refinada estrutura piramidal de plástico que sobre uma mesinha de centro sustentava e exibia os delicados, coloridos, deliciosos e disputados (especialmente entre as madamas, madaminhas e madamoças) docinhos ao estilo francês, que redonda e rapidamente se espalharam pelo salão, por entre saltos e sapatos, alguns indo parar junto aos rodapés e outros sendo infeliz e grotescamente esmagados e espetados pelo transitar frenético da sociedade. Meu desequilibrado gesto antissocial foi flagrado por uma dupla de garçons, cujas bandejas petrificaram. Boquiabertos, não sabiam o que fazer frente ao desconhecido (frente ao desastre desconhecido, não frente a mim, que por essas e outras ando cada vez mais conhecido).
Mas, como já aprendi nessas sociais ocasiões, fiz que não era comigo. Recolhi o cotovelo desastrado, bebi um gole do champanha, digo, do espumante e parti rumo ao garçom que no outro canto distribuía fumegantes panelinhas de louça recheadas com risoto ao funghi, a julgar pelo aroma de cogumelo farejado por minhas narinas que, nesses eventos, ficam afiadamente antenadas. Em duas passadas deixei às costas a cena da tragédia, sem presenciar os atos de salvamento. Isso até ser flagrado pelo olhar fixo e recriminador da senhora, madama! A senhora, que viu tudo: não só meu ato titânico de abalroar e desmantelar a pirâmide de macarons, como especialmente a minha imediata e covarde fuga da cena do crime, uma mão no bolso e a outra na taça da champanha (do champanha... da champanhe... do champanhe... e afunda-se de vez a classe).

Pois é, madama, a senhora, enfim, conseguiu ver o que há por trás da máscara: eu não sou um socialaite. Sou mesmo é um troglolaite. Um troglodita social. Um protossocial, um ser desprovido de ginga social. Um cavernossocial. Engomadinho, ensacado em um blaser e perfumado, até que engano alguns poucos por curtos momentos. Só que é impossível deixar em casa os cotovelos. O cotovelo de um troglolaite sempre acaba vindo à tona.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul,em 31 de julho de 2017)

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Cada um com seu tempero

Tenho aqui comigo a ingênua convicção de que fazer comida é um ato de amor. Sei lá por qual razão. Alguma coisa me diz que botar-se às panelas para cozinhar evoca sentimentos ancestrais protagonizados por mães, por avós e mães de avós, em eras remotas nas quais manusear panelas, conchas e mêscolas representava a habilidade de levar à mesa, para os entes queridos, os sabores dos alimentos preparados com a pureza do coração. Para mim, permanece viva até hoje a percepção de que cozinhar é uma atividade feliz. Porém...
Porém, pois é. Antes do “porém”, mais alguns “senões”. Lembro de minha avó materna, a dona Ilse, que cozinhava para toda a família como quem ama. Leitora contumaz e dona de casa aplicada, dona Ilse reinava na cozinha com a propriedade que as avós adquirem frente ao tempo de atividade junto aos fogões criados para alimentar proles ao redor do planeta. Ela fazia guisados de moranga como ninguém, galinhadas como só ela, feijão e bifes únicos. Vendia o peixe com frases marqueteiras como “não é porque eu fiz, mas está delicioso” e “nunca fiz tão bom”, com as quais concordávamos em silencioso uníssono, metendo bocas adentro os nacos de sua competência gastronômica.
O mesmo se dava com minha avó paterna, a dona Hermine. Delicada e elegante, dona Hermine produzia saladas de batata inimitáveis, que faziam sucesso nos churrascos de domingo pilotados por meu avô. Ela também moldava sonhos na Páscoa e esculpia tortas alemãs como a apfelstrudel, encravando marcas indeléveis em nossas lembranças gustativas. Ofertavam elas a nós, familiares, os frutos de seus atos amorosos. E saboreávamos aquilo tudo, digerindo lembranças. Minha mãe e minha sogra também cozinham com o mesmo amor herdado.

Porém... É embalado por esse tipo de elo afetivo que passeio pelos atuais programas de competição gastronômica, prolíficos nas grades dos canais de tevê, e me decepciono. O que vejo ali é desaforo, agressividade e humilhação pautando relações de gastronomia, onde o fazer de um prato deveria ser temperado somente por emoções como prazer, compartilhamento, alegria e estética. Mas, não. O chef, que tudo sabe, precisa escrachar o neófito, a serviço da audiência. Que tipo de audiência? A de quem vibra ao ver alguém ser espezinhado pelo outro, que sabe mais? O ideal não seria esperar que o detentor do saber ensinasse ao aprendiz com generosidade e acolhimento? Ah, não; eu, fora. Não assisto. É azedume demais. Desligo a tevê e vou para as panelas, orientado apenas por doces lembranças ancestrais. Para mim, esse ainda é o melhor tempero.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 24 de julho de 2017)

Naquelas datas queridas

Naqueles remotos tempos de antanho, quando éramos crianças e fazíamos aniversário, não existiam empresas especializadas na produção e organização de festas infantis. Os palcos das reuniões dos amiguinhos, dos pais dos amiguinhos e dos parentes (tios, avós, primos) eram as casas das famílias mesmo, que em geral possuíam pátios e gramados pelos quais podíamos, depois de cantado o “Parabéns” e engolidos alguns litros de refrigerante, sair correndo desenfreados a brincar de esconde-esconde, pega-pega, chutação de bola, pula-corda e assemelhados, cujo resultado podia-se verificar à noite na hora de dormir, quando os joelhos esfolados eram apaziguados com a ardência do Merthiolate e os assopros consoladores das mães.
Se chovia, a bagunça era dentro de casa mesmo e arredavam-se cadeiras na sala para dar espaço à montagem do Forte Apache e das pistas para corrida de carrinhos de ferro (Matchbox, não Hot Wheels), ou para o esconde-esconde que resultava nas cortinas da casa emporcalhadas por mãozinhas e bocas lambuzadas de brigadeiro e glacê. Corria-se muito. Gritava-se muito. Ria-se aos borbotões. Caía-se às pencas. Levantava-se e voltava-se a correr. E a gritar. E a dar mais uma acelerada rumo à mesa dos doces, ultrapassar a barreira das pernas de algum tio esfomeado que atacava os croquetes e capturar uma mãozada de docinhos produzidos pelas próprias mãe, tias e avós do aniversariante. E de volta ao agito. Doce de confeitaria? Nem pensar! As já citadas mães, avós e tias é que formavam o batalhão que rumava às cozinhas às vésperas da data, para produzir as guloseimas que seriam fartamente consumidas no dia aniversarial. A única telentrega de que se tinha notícia era a de amor e afeto.
Ah, os bolos de aniversário configuravam um capítulo à parte. Minha mãe e avós eram verdadeiras artistas e produziam esculturas comestíveis tão belas quanto saborosas com massa de bolo, cremes doces, chantilly, merengues, gelatinas e assemelhados. Certa feita, meu bolo de aniversário era uma oca indígena, com índios de plástico do Forte-Apache dançando em volta (que, felizmente, sobreviveram ao ataque voraz dos mocinhos e mocinhas esfomeados). Em outra ocasião, o bolo era um tambor; depois, um relógio; um saloon de bangue-bangue com a diligência puxada a cavalo; a cara de um palhacinho e assim por diante.
Mas eram outros tempos. Hoje há quem faça e entregue. E ainda bem, afinal, não há mais horas de sobra nos dias de ninguém. Só espero não chegar a ver o tempo em que terceirizaremos também os convidados.

 (Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 17 de julho de 2017)

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Um centauro na manga

Fica difícil escrever sobre centauros em plena vigência do século 21, uma vez que nós, cidadãos de nosso tempo, não acreditamos em centauros. Seria mais fácil (e plausível) fazê-lo se ainda estivéssemos mergulhados nas trevas supersticiosas da Idade Média, quando a maioria da população era iletrada e as fronteiras do mundo conhecido raramente se expandiam para além do perímetro das aldeias em que cada um carregava sua dura vida, monótona e descolorida. Naqueles tempos pesados, era crível haver terras rudes, além do horizonte, habitadas por gente exótica, falante de línguas indecifráveis, em meio a criaturas maravilhosas como os centauros, a fênix, o unicórnio, as sereias, os cíclopes, as salamandras, os silfos, dragões, harpias e sátiros. Entre outras.
Não era necessário avistar um centauro para ter certeza de sua existência a partir de relatos oriundos dos viajantes ou dos versos cantados por menestréis errantes. Isso, naqueles tempos remotos. Hoje, precisamos ver para crer e, assim, os centauros já não encontram mais lugar para se assentar entre as coisas em cujo existir cremos e que moldam o cenário de nosso mundo aceitável. Mesmo assim, falaremos sobre centauros, nos quais não acreditamos. Os centauros são seres híbridos, formados pela metade de um homem e a metade de um cavalo. O torso, a cabeça, o tronco até o ventre compõem a parte humana da criatura, que se encaixa sobre o corpo de um cavalo, formando uma figura bizzara. Um ser com rosto, peito e braços humanos sobre quatro patas equinas é como resumiríamos, sem elegância, a morfologia de um centauro.
Os centauros habitavam as páginas dos bestiários, compilações que na antiguidade se dedicavam a elencar os seres extraordinários que povoavam terras distantes, a excitar a imaginação, alimentar os pesadelos e cultivar o terror entre as gentes. O escritor argentino Jorge Luis Borges (1899- 1986) dedica atenção a ele em seu “O Livro dos Seres Imaginários”, obra em que procura listar alguns dos “estranhos entes que a fantasia dos homens engendrou ao longo do tempo e do espaço”. Borges apreciava atentar a questões como essa, apesar de também confessar sua falta de crença no centauro.

Por que, então, dispensar energia nos debruçando sobre uma criatura em cuja existência descremos e que, para nós, não faz o menor sentido? Ora, porque anda difícil para os cidadãos deste também sombrio século 21 acreditar em alguma coisa. Por via das dúvidas, talvez seja prudente guardar na manga algum centauro no qual se possa voltar urgentemente a crer, pois não?
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 10 de julho de 2017) 

segunda-feira, 3 de julho de 2017

Ontem, o tecer do amanhã

Estudar o passado é a melhor ferramenta que existe (quiçá a única) para compreender o presente e construir o futuro. Foi sobre os erros e os acertos do passado que o presente moldou-se, e o futuro que queremos só poderá ser erigido se conseguirmos evitar os antigos erros cometidos e repetirmos (ou aprimorarmos) os acertos. Muitas vezes, o passado, que parece ilusoriamente mais remoto a cada ano que dele nos afastamos, vê seus reflexos e consequências se entranharem profundamente nos aspectos do cotidiano, tecendo e comandando o presente de maneira vital, aproveitando-se de nossa miopia. É um perigo.
A Segunda Guerra Mundial, por exemplo, conflito que terminou há 72 anos, exerce influência determinante no perfil do mundo que vivemos hoje, não só nos aspectos geopolíticos, econômicos, humanísticos e ideológicos, mas essencialmente nas questões éticas e morais. A portentosidade do episódio histórico conhecido como Segunda Guerra Mundial, a extensão de suas consequências e transformações, é tão imensa que segue gerando estudos, despertando atenções, estimulando teorias. E deve ser assim mesmo, porque é dessa tentativa de compreensão que resultará a possibilidade de se construir um mundo melhor, especialmente se a humanidade conseguir, na prática, varrer para o lixo todos os aspectos que pautavam a proposta de mundo conduzida pelo nazismo e pelo fascismo.
Os escritores franceses Louis Pauwels e Jacques Bergier defendem que o nazismo representava uma civilização completamente diferente daquilo que conhecemos como civilização, sem pontos de convergência e de comunicação intelectual, moral e espiritual com a nossa. Por isso que precisou ser combatido até a derrocada absoluta. A visão nazista de mundo é excludente, opressora, racista, intolerante, criminosa, violenta, sexista, assassina, corrupta, psicopata e movida pelo ódio. Seus mentores e acólitos foram derrotados militarmente e suas ideias execradas. Mas é preciso permanecer alerta.

Temos de estar constantemente atentos ao florescer de visões de mundo que não conversam com aquilo que aceitamos, conhecemos e adotamos como civilização, sob pena de implosão dos pilares sobre os quais se sustentam a vida em sociedade. A corrupção que carcome a sociedade brasileira não conversa com aquilo que se entende por civilização, e precisa ser combatida onde quer que ela se expresse, desde o roubo milionário dos cofres públicos nas altas esferas até o motorista que se diz cidadão mas foge do local após colidir o carro. A História é construída a partir do cotidiano dos anônimos.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst, publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 3 de julho de 2017)

segunda-feira, 26 de junho de 2017

O bauru da libertação

Entre as 127 razões para amar Caxias do Sul, elencadas semana passada pelo jornal Pioneiro, em sintonia com o 127º aniversário da cidade, transcorrido dia 20 de junho, figurava o bauru como iguaria local com grande ibope entre o público. Sim, Caxias do Sul é reconhecida gastronomicamente, entre várias outras delícias (a sopa de agnolini, o sagu servido quente, o galeto al primo canto, o xis burguer grandalhão, o rodízio de pizzas etc), pela qualidade e pelas especificidades do bauru servido ao prato nos vários restaurantes da cidade que incluem a atração gustativa no cardápio. Eu, que aqui encravo raízes há 25 anos, também me tornei um ativo apreciador dos baurus locais, sentindo, sazonalmente, necessidades imperiosas de me conduzir a algum estabelecimento e saciar (por instantes) o desejo pelo reencontro com seus sabores, aromas e texturas.
Ah, nada como vivenciar e repetir a experiência de estar sentado à mesa do restaurante ou da lancheria e presenciar a chegada da travessa ocupada pela titânica peça de filé envolta em queijos e presunto, adornada com o fumegante molho vermelho sobre o qual ainda estira-se uma camada de molho verde, cuja receita é secreta e depende da criatividade de cada estabelecimento. Ao lado, os indispensáveis pãezinhos aquecidos e a travessa de arroz branco, trazidos para evitar o desperdício das últimas gotas dos molhos, que não podem restar no prato. É crime de lesa gastronomia e lesa gula devolver à cozinha a travessa e o prato contendo resquícios dos molhos. Só de descrever as cenas minhas papilas gustativas se excitam, a imaginação ferve e degusto garfadas imaginárias ao tecer da crônica.

Nem sempre, no entanto, estamos (nós, caxienses fissurados por baurus) municiados de tempo e, especialmente, dos fiorins necessários para saciarmos esse desejo de consumo que nos é intermitente e avassalador. Em várias ocasiões, precisamos nos contentar com uma sopinha de feijão em casa mesmo, que tem seu inegável valor, claro, mas nada se compara a um bauru quando estamos com fome de bauru. Felizmente, dia desses, transitando pela tevê a cabo, flagrei um renomado e generoso chef caxiense apresentando um programa de culinária em que ensinava os segredos e as técnicas para produzir em casa o seu próprio bauru. Com molho verde e tudo! Acompanhei atentamente todos os passos, tomei nota e, no dia seguinte, de volta das compras, lancei-me às panelas. Deu certo! Agora, sei fazer bauru. A conquista da liberdade é uma experiência multifacetada, ao sabor das motivações de cada um. Bom apetite!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 26 de junho de 2017)

segunda-feira, 19 de junho de 2017

Problema que salta à vista

A senhora viu essa, madama? Dizem que o pessoal não anda enxergando direito. E não é qualquer um que diz isso. São os cientistas. E quando os cientistas dizem, é melhor a gente ver de perto, não é mesmo? Ainda mais quando se trata de cientistas americanos. Aí, sim, deve-se abrir os olhos. Pois andei lendo nessas minhas naveganças que o mundo está sofrendo uma verdadeira “epidemia de miopia”. É, madama, as pessoas estão ficando míopes iguais a mim e à senhora. Nosso grupo das toupeiras está aumentando a olhos vistos, se é que a madama me permite o trocadilho infame.
Mas, sim, o alerta é de arregalar os olhos. Dizem lá os pesquisadores da Faculdade de Optometria da Universidade de Houston (EUA) que até 2020 (logo ali) um terço da população sofrerá de miopia e, até 2050 (mais adiante), a metade dos habitantes do planeta será míope. A coisa é séria, não podemos fazer vistas grossas. Eu, que sou míope como um jabuti desde criancinha, conheço bem a sensação de ver o mundo todo borrado, como em um filme fora de foco. Minha miopia se manifestou ainda antes de erradicar-se em mim o analfabetismo, quando tinha uns quatro anos de idade, creio, e não demorou para que um par de óculos passasse a integrar meu visual permanente. Na época, éramos ainda poucos os portadores do problema, ao menos, que eu pudesse ver, mas, admito, não conseguia ver muito longe.
Um dos fatores desencadeadores da crise de miopia, conforme os cientistas, é a genética, contra a qual ainda pouco se pode fazer. O outro parece derivar de nossos hábitos sedentários. Detectou-se que pessoas que passam mais tempo dentro de casa correm risco maior de ficarem míopes do que aquelas que optam por uma vida mais ligada ao ar livre. No meu caso, tem lógica, sou o exemplo perfeito. Ficar dentro de casa tende a nos fazer forçarmos mais as vistas na leitura, na navegação em computadores, defronte à televisão e assim por diante. Já ao ar livre, a luz solar natural e intensa parece ajudar a visão a ver melhor e mais longe, conforme as pesquisas.

Quanto a isso, tudo muito bem, existem recursos como os oculistas, os óculos, as lentes, as cirurgias corretivas e a mudança de hábitos. Mas e aquela outra miopia, madama, a da alma, que faz as pessoas não enxergarem direito as mazelas do mundo ao seu redor, que faz as mesmas pessoas, quando as enxergam (as mazelas), virarem o rosto para o outro lado, agindo como quem não quer ver? Sobre essa algum cientista já pesquisou a incidência, as origens e as possibilidades de cura? Ou ainda seguirá embaçando o planeta até perder de vista?
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 19 de junho de 2017)

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Uma autópsia da solidão

Já houve quem comparasse a solidão do goleiro à frente do gol à solidão do escritor à espera de público na sessão de autógrafos. Trata-se de uma comparação equivocada, e vou demonstrar o porquê. Verdade que jamais atuei como goleiro, mas não é preciso vivenciar a experiência na carne para conseguir imaginar as sensações de uma vivência. Para isso, existem instrumentos como sensibilidade, empatia, pesquisa, observação, estudo, leitura. Já a angústia que antecede a abertura de uma sessão de autógrafos para a qual a afluência de público é sempre uma incógnita, isso conheço bem e posso falar de cadeira.
A questão, em seu cerne, remonta ao problema da solidão, que, apesar de parecer, não é um sentimento absoluto, sentido da mesma forma por todas as pessoas. Há solidões e solidões. A solidão que uma pessoa sente frente a determinada situação pode agir (e ferir, e doer) nela diferentemente do que em mim, confrontado com situação similar, porque são nossas vivências específicas, nosso temperamento singular, nosso grau de maturidade que vão construir as defesas e os instrumentos com os quais combateremos e lidaremos com o sentimento. Você, goleiro, na frente do gol, sentirá solidão diversa da minha, também goleiro, frente ao mesmo gol. Isso é uma coisa.
A outra coisa é que os exemplos usados (o goleiro e o escritor) não possuem pontos de convergência que os habilitem a serem utilizados como ilustração plausível para o problema. O goleiro, na frente do gol, está sozinho na maior parte do tempo da partida, exceto quando o time adversário ataca. O goleiro torce para que essa solidão se prolongue pelo maior tempo possível dentro dos 90 minutos da partida. Quanto menos ameaçado seu gol, melhor para o time todo. Já o escritor à espera de público na fila de autógrafos de seu livro deseja que essa solidão inicial se dissipe logo. Para o escritor, gol significa uma longa fila de leitores com exemplares do livro na mão esperando para um abraço e uma dedicatória. E se não vier ninguém? Que angústia...

Eis aí, então, a chave da equação. O que define o tipo de solidão que sentimos é a carga de angústia que ela tem o poder de gerar. A solidão do goleiro à frente do gol não produz nele angústia. Ele prefere permanecer sozinho, com todo o seu time fustigando o gol da equipe adversária. Já a solidão do escritor na abertura da sessão de autógrafos lhe angustia deveras. O problema da solidão é a angústia, e ela nem sempre está necessariamente presente ao lado do solitário. Boa reflexão para uma crônica de segunda, não é mesmo, madama?
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 12 de junho de 2017)

segunda-feira, 5 de junho de 2017

Negociamos com quem?

Vender a alma ao diabo, fazer o pacto com as forças obscuras das profundezas abissais em busca de poder, glória, dinheiro e outras benesses é um símbolo e um recurso alegórico amplamente explorado pela literatura a fim de aprofundar o olhar sobre as nuances da alma humana. Facilmente seduzidos por promessas de artimanhas que lhes proporcionem os maiores ganhos frente aos menores esforços, os seres humanos, em essência e no geral, cortejam a ideia de negociar o que lhes seria o bem imaterial mais precioso (simbolizado pela alma) em troca de benefícios egoístas, imediatos e autocentrados que lhes posicionem em ponto superior e favorável em relação ao próximo, estabelecendo com ele distâncias artificialmente criadas, deixando o próximo cada vez mais longe. Esse é o termo principal do pacto. O outro, se dá ao final, representado pelo resgate da alma do “beneficiado”, quando, então, ele sofrerá as drásticas e irreversíveis consequências de sua escolha e não haverá mais a quem recorrer. Mas aí o caldo já terá entornado.
A literatura aborda o tema do pacto sinistro há séculos, com ótimos autores debatendo a questão por meio de personagens e tramas inesquecíveis. “Fausto”, de Goethe (1749 – 1832), é o primeiro que vem à lembrança quando se trata do assunto, baseado na peça teatral criada anteriormente pelo dramaturgo Christopher Marlowe (1564- 1593), “A Trágica História do Dr. Fausto”. Thomas Mann retoma o tema já no século 20 com seu romance “Doutor Fausto” e a questão do pacto com um ser mefistofélico em busca da conquista de projetos pessoais sempre está no centro das tramas. O menos conhecido Edelbert Von Chamisso (1781 – 1838) faz o mesmo em seu “A História Maravilhosa de Peter Schlemihl.” 

No Brasil, Guimarães Rosa (1908 - 1967) também insinua a questão como pano de fundo possível para as motivações de seu jagunço Riobaldo, protagonista de “Grande Sertão: Veredas”. Desde o início do romance, Riobaldo mostra-se preocupado com o problema da existência ou não do demônio e a possibilidade (ou não) de firmar um pacto com ele. Já quase no final da caudalosa obra, o personagem chega a uma conclusão inequívoca, expressa por suas próprias palavras: “Digo ao senhor: o diabo não existe, não há, e a ele eu vendi a alma... Meu medo é este. A quem vendi? Medo meu é este, meu senhor: então, a alma, a gente vende, só, e sem nenhum comprador”. Negociamos (ou nos desvencilhamos) nosso bem mais precioso (a alma, que evoca nossa ética, nossa moral, nossa humanidade) mesmo sem que haja nenhum comprador. O mal reside é nisso.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 5 de junho de 2017)

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Uma abobrinha irrecusável

Como o mar não está para peixe, decidi requentar uma abobrinha, na esperança de que o tema seja de mais fácil digestão. Pode ser, madama? Essa questão da abóbora oferecida pela Ana Maria Braga à Taís Araújo, recusada pela atriz ao vivo e a cores no ar, dia desses, no programa “Mais Você”, rendeu um caldo, concorda? A bela e competente Taís Araújo, uma das convidadas do dia na atração matinal chefiada pela apresentadora chef, viu-se confrontada com um prato feito à base da única coisa no planeta que ela não come, nem que seja amarrada e levada à força, digamos, ao programa da Ana Maria Braga: abóbora.
Taís Araújo não come abóbora, ponto. Ela até jurou que não se mixa frente a uma pratada de bucho, ou de um quiabo, ou mesmo de uma caldeirada de lula. Enfim, qualquer coisa, mas, abóbora, não! Taís revelou que come não só de tudo, mas que também come muito. Gosta de prato fundo, de comida “de verdade”, que é como ela classifica um prato de feijão, arroz, massa e pata de elefante. Come e gosta de falar de comida, seu assunto predileto. “Sou monotemática, só falo em comida”, explicou a longilínea atriz, enquanto o aroma do nhoque de abóbora da Ana Maria Braga saltava das panelas e invadia os estúdios do Projac, quase chegando até nossas casas, lembra, madama? E a pobre da Taís ali, com cara de quem não comeu, não comerá e não gostou.
Foi o que bastou para que o episódio viralizasse pelo país inteiro. Uns, defendendo a sinceridade da Taís, em recusar aquilo que não gosta (questão de postura e respeito). Outros, achando que ela foi indelicada (questão de postura e respeito, também). Outros, ainda, criticando a inoperância da produção do programa, que não identificou com antecedência as restrições gastronômicas da convidada (questão de competência). Mas, também, né, madama, convenhamos. Primeiro, quem iria imaginar a existência de uma criatura que não gosta de abóbora? Pepino, cebola, repolho, chuchu, vá lá, mas, abóbora? Francamente! E, depois, tem outra: como disse a própria atriz, quem iria imaginar ser servido com nhoque de abóbora no desjejum, às oito da manhã? Francamente, também!

Antes que a madama julgue ser abobrinha comentar a abóbora da Ana Maria Braga, antecipo que o episódio guarda, sob as asas do Louro José, alguns aspectos para a reflexão. Entre eles, figura a linha fina e tênue que separa a chamada “sinceridade” da boa educação, bem como a linha fina e tênue que separa a convicção de atitudes do cuidado e o respeito com o outro e suas peculiaridades. Conviver é uma arte que não se aprende lendo receitas.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 29 de maio de 2017)

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Há bárbaros na trincheira

Se é verdade que a História se repete como farsa (a rigor, a frase de Karl Marx, pensador alemão que viveu ente 1818 e 1883, diz assim: “A História se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”), então, frente aos tufões políticos recentes que sacodem o país, achei por bem dar uma revisitadinha básica em alguns pontos do passado que talvez possam lançar alguma luz na escuridão que por aqui vivenciamos nesse assombroso presente. Lembrei, então, da queda do Império Romano, e lá fui eu, aos alfarrábios, para ver se aprendia alguma coisa.
O portentoso e poderoso Império Romano já vinha decaindo em todos os aspectos (político, militar, social, ético e moral) há muito tempo, quando as famosas invasões bárbaras foram corroendo e enfraquecendo cada vez mais suas estruturas, lá nos meados do século cinco depois de Cristo. “Bárbaros” era como os romanos classificavam os povos que viviam em tribos a leste do Império, em regiões hoje conhecidas como Alemanha, Áustria e redondezas. Em resumo, “bárbaros” eram aqueles que não falavam latim (a língua oficial do Império), não seguiam as leis romanas e não participavam da civilização da forma como a romanada entendia o conceito.
E os tais bárbaros vieram e botaram tudo abaixo de vez, decretando oficialmente a queda do Império Romano em 476 d.C., com o saque liderado por Odoacro, chefe dos hérulos (povo germânico originário do sul da Escandinávia). A data específica se dá devido à conquista de Roma, a capital do Império, que, àquela altura, já andava meio abandonada, com boa parte dos moradores tendo fugido para o interior, prevendo a vindoura desgraça final. E se tem coisa que a humanidade sabe há milênios é isso: se uma desgraça se anuncia e dá sinais de que vem, ela acaba vindo mesmo.

Li essas coisas e fiquei refletindo, especialmente sobre essa forte imagem dos bárbaros que não falam a mesma língua do povo, que vivem leis próprias que se impõem às leis que regem o povo e estão a serviço de seus próprios interesses e que, por fim, acabam por protagonizar a derrocada absoluta desse povo, saqueando-o, vampirizando-o, fragilizando-o, subjugando-o, barbarizando-o de todas as formas. E saem ilesos depois da queda do império. Fácil encontrar semelhanças frente ao que vivemos hoje no país. Com uma diferença crucial e ainda mais estarrecedora: no nosso caso, os bandos de bárbaros não precisam cruzar fronteiras e vir de longe apodrecer as bases da civilização. Eles agem por dentro mesmo, a partir das entranhas dessa mesma civilização, tendo sido gerados entre nós.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 22 de maio de 2017)