segunda-feira, 23 de julho de 2018

O que não vem na conta


A solidão transportada pela madrugada se estende mais rápido nos bairros em que os paralelepípedos revestem as ruas. Neles, em seus perfis periféricos e arrabaldinos, o asfalto central inexistente desconvida ao cruzar célere dos automóveis tardios, permitindo que gatos pardos (como todos o são a essas horas adultas) agora exibam destemidos e garbosos as suas felinices pelo centro das vias, transformadas em passarelas das quais se apossam para desfilar suas empáfias, secretas e noturnas. A tênue luz amarelada jorrada pelos postes de iluminação pública produz bolsões ovalados de uma claridade opaca sobre fragmentos da rua, originando um tabuleiro de xadrez intercalado entre claro e escuro a cada vintena de metros ou dezena de apressadas passadas do transeunte ímpar que cruza o nada, vindo de nenhures, mãos nos bolsos, rumando a lonjuras enquanto machuca o silêncio com o fincar cadenciado da sola do sapato na pedra fria forte sólida da rua, ecoando poesia concreta sem a intenção de ser.
Em horas assim, a companhia da solidão da rua é o silêncio que dela emerge, quebrado de tempo em tempo pelas lufadas do vento negro que sopra de longe, sacudindo fios de luz onde agora nenhum passarinho se assenta. Também eles já se recolheram a seus ninhos ermos e secretos, vitalmente afastados dos olhares da urbe que, enfim, adormece. Quem cruza as ruas é o vento, ele só, dobrando esquinas sem dar sinal, avançando semáforos, ignorando preferências, correndo livre a fazer inveja ao jovem, ao tolo, ao imprudente e ao estranho que segue espetando sapatos agora lá longe, bem longe, escuridão adentro, entregando-se ao engolfar aveludado da noite que o suga para entranhas perenes. Quem era? Quem é? Ainda será, agora que foi-se? Dele, restam os sons dos últimos passos que também evanescem no longe da cena.
Silêncio. Vento e silêncio. E um novo gato que passa, talvez o mesmo, talvez outro, não há como saber, afinal, é pardo, como qualquer um que habite essas horas tardas. Nessa cena deveria haver lua, mas lua não há. Uma manta de nuvens age de escudo e impede o fluir do lume das estrelas, dos planetas e de qualquer outro ente brilhoso que poderia aliviar com cintilâncias a aura soturna que teima em imperar. A pouca luz que vigora é essa, da rede de postes, pensada para alumiar solitudes e nadas profundos de eus imprevistos tal gato solitário ou pardo passante. Serve também para luzir a pouca inspiração de um cronista de segunda, mas isso, pelo menos, não vem acrescido na conta da luz ao final do mês. Poesia noturna ainda nos chega de graça.


(Crônica publicada no jornal "Pioneiro" de Caxias do Sul em 23 de julho de 2018)

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