segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Parente, mas não serpente


Muito mais do que aranhas, poeira e ácaro podem saltar de dentro de caixas de guardados. Nostálgico e memorialista como sou, cultivo fissura pelo ato de mergulhar dedos, nariz, óculos e atenções nesses depositórios de lembranças, de vidas e de memórias que resguardam o passar das eras e das biografias por meio do acúmulo (ordenado ou não) de cartas, documentos, fotografias e papéis diversos. Jogar uma caixa de memorabília no meu colo é o atalho mais fácil para garantir que eu fique quietinho num canto fuçando ali, imerso na pescaria de universos passados, catando preciosidades que o Tempo não foi capaz de apagar por meio da ação corrosiva que costuma produzir sobre a manutenção da Memória. Logo começo a sentir saudades de gente que nunca conheci, de tempos que não vivi, de coisas que outros fizeram. É assim que produzo a mágica de evocar vida a partir do silêncio que adormece nas fronhas do passado.
Dia desses, uma tia arremessou-me duas caixas dessas, repletas de tesouros familiares, para meu deleite e surpresa. Em meio a todo o farto material que meus dedos iam capturando, deparei, de repente, com a fotografia antiga, em preto e branco, de um personagem de figura marcante: testa larga e enrugada, olhos claros fundos, nariz aquilino e uma longa, espessa e desgrenhada barba que lhe caía até quase a altura do umbigo. Tratava-se de um tataravô meu (pai da mãe de minha avó paterna) e descobri que portava uma biografia excitante: nasceu na Áustria no início do século 19, migrou ao Brasil jovem, circulou por conflitos no Rio Grande do Sul e no Uruguai antes de partir para os Estados Unidos. Lá, ingressou como voluntário para lutar na Guerra da Secessão (1861 e 1865). Sobreviveu, voltou ao Brasil e estabeleceu-se definitivamente no Rio Grande do Sul, em Lajeado, onde chegou a ser conselheiro municipal no início do século 20 e conquistou medalha em uma Feira Agrícola Industrial realizada ali em 1903, por apresentar produtos de qualidade como arroz, canjica e azeite de amendoim, o que finalmente explica a origem de meu pendor para a gastronomia amadora.
Mas espera aí. E a Guerra da Secessão? Será que meu ancestral optou pelo lado certo naquele histórico episódio que dividiu norte-americanos entre escravagistas e antiescravagistas? Mais adiante, descubro que sim: lutou junto aos nortistas, que defendiam o fim da escravatura no país. Ufa! Que comesse canjica e óleo de amendoim eu admito, mas seria indigesto encarar parte de meu DNA composto por ancestralidade discriminatória e intolerante. Parabéns, caro tata!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 20 de agosto de 2018)

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