segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Ubuntu e a chave do Graal


Que tal, madama, aproveitarmos esta crônica de segunda para iniciar a semana com os pés direitos (o seu e o meu), refletindo sobre o que se pode depreender a partir de um continho alegórico? Sim, a senhora está certa: alegoria é a apresentação de uma ideia de forma figurada, tipo, dizer uma coisa mostrando outra coisa. Isso! Então, vamos lá: nosso continho alegórico evoca as antigas lendas medievais envolvendo um dos mais afamados cavaleiros da Távola Redonda, que eu sei que a senhora gosta dessas coisas de espadas e brumas, e damas e sagas, e galanteios e cortesias, e capas e véus, caras e coroas, escudos e lanças.
Parsifal, nosso destemido cavaleiro andante, perambula pelo Reino de Avalon montado em seu cavalo (cavaleiro mais cavalgante do que andante, mas vá lá) e ensanduichado em sua armadura ataviada com elmo e espada, à procura do Graal. O Graal, como a madama sabe, é o cálice sagrado no qual Cristo teria celebrado a Santa Ceia e que os cavaleiros medievais procuravam incansavelmente nas antigas sagas, com a esperança de, ao encontrá-lo, conquistarem grande poder. Ao longo da jornada, o próprio cavaleiro vivenciava uma profunda transformação interior, independentemente de encontrar ou não a relíquia. Pois bem, Parsifal, em certo momento de sua busca, depara subitamente com o Castelo do Graal (cavaleiro dos mais sortudos) e penetra em seus domínios. Lá, detecta que o reino, apesar de possuir o Graal, está decrépito, caindo aos pedaços, da mesma forma que o soberano encontra-se fraco e adoentado, à beira da morte. Estupefato, Parsifal emudece diante da cena e vai embora, sem fazer a pergunta-chave que restabeleceria o esplendor do reino e a saúde do rei.
Burro, esse menino, pois mais tarde, quando percebe qual pergunta deveria ter feito, não consegue mais encontrar o caminho de volta para o Castelo do Graal e fica vagando por anos em meio às brumas de Avalon. Até que, pimba, reencontra de súbito o Castelo do Graal, penetra lá de novo e, dessa vez, faz a pergunta certa ao rei: “Tio, o que te aflige?”. Agora, sim, o reino volta a ter vida, o monarca se recupera e Parsifal é sagrado o novo Rei do Graal. Tudo porque aprendeu o valor poderoso da empatia, a capacidade psicológica de sentir o que o outro está sentindo e ter compaixão por ele, demonstrando importar-se.  A tradição sul-africana emprega o termo “ubuntu” para designar o sentimento de humanidade para com os outros. Nossos reinos contemporâneos talvez precisem de doses cavalares de ubuntu para evitar a decrepitude a que podem estar sujeitos, não acha, madama?
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 10 de dezembro de 2018)

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