segunda-feira, 30 de setembro de 2019

O bailarino dos ventos

Parecia que ele estava esperando já há algum tempo que eu, enfim, alçasse os olhos das páginas do livro que lia, sentado no terraço de meu apartamento no final da tarde, e o fitasse, encarapitado que estava no topo do prédio vizinho, onde costuma ficar. Não é de hoje que esse robusto urubu utiliza o alto do edifício em frente como heliporto entre suas atividades aéreas diárias. Pousa ali, asas recolhidas junto ao corpo coberto com a escura plumagem que o caracteriza, a cabeça arqueada como que em uma corcunda, e me fita enquanto recupera o fôlego. Era como se saboreasse o desconforto que sua presença me causava, incapaz que me via de exorcizar o preconceito bobo ancestral que recai sobre a simbologia fúnebre e sinistra injustamente associada a essa ave, tão ave quanto qualquer outra.
Reconheço, de súbito, minha postura incivilizada e largo o livro no colo, permitindo, pela primeira vez, que nossos olhares se cruzem, abrindo margem para o estabelecimento de alguma possível conexão intangível entre ave e humano, entre o urubu e eu. Era como se ele estivesse contando com que isso, um dia, se desse. Ato contínuo, ele lança seu corpo do alto do prédio de onze andares e, antes mesmo que um indício de queda vertiginosa se estabeleça, abre elegantemente as longas asas negras e navega no ar, tomando impulso para cima, cruzando rente à vidraça do meu terraço, dando início a um show que me soou premeditado. Levanto da cadeira e decido acompanhar visualmente seu voo, até onde der, até que sua figura se transforme em um pontinho contra o avermelhado do céu e se esvaneça na paisagem de sol poente.

Mas ele opta por bailar. Bate as asas, sobe alguns metros junto às nuvens, encontra correntes de ar e estende de novo os membros plumados, entregando-se à coreografia do voo pautado pelas marolas do vento. Tece desenhos imaginários no ar com sua dança voadora, que me encanta, me hipnotiza, ofertando a mim um inesperado momento de fruição artística do belo. Faz arte com seu voo, o urubu que até então eu sempre desdenhara. Não está caçando, não está procurando uma companheira, está apenas entregue ao prazer privilegiado que a natureza concedeu aos da sua espécie: voa por deleite, pela entrega de si mesmo à essência de seu ser. Mal sabe o urubu que, além do espetáculo, me proporciona inesperadas lições de vida que talvez ajudem a me tornar mais humano. A principal delas é o endosso da convicção de que o preconceito é o pior dos vícios. Passei a aguardar suas visitas com expectativa. Gratidão pela lição que também me fez voar.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 23 de setembro de 2019)

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