quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Cadê a graça?

Percebo que o ser humano, assim como os veículos automotores, é composto por peças que possuem durações de vida diferentes entre si e algumas vão deixando de funcionar antes do que as outras, exigindo manutenção, substituição ou pura e simples conformidade por parte de seu proprietário. Acontece comigo, naturalmente. Dia desses percebemos, minha esposa e eu, que encerrou-se o prazo de validade do dispositivo que me permitia sentir cócegas e rir arrepiadamente, contorcendo-me em incontroláveis espasmos, ao toque suave de dedos doidos na planta dos pés, nas pernas ou embaixo dos braços. Constatamos, consternados, que estou desacocegado.
Assim como as zonas erógenas, o ser humano é composto por vastas áreas epidérmicas nas quais está suscetível às cócegas, aqui chamadas de zonas cocegógenas. Sempre as tive, em abundância, até porque minhas pernas são compridas e minhas patas tamanho 41 oferecem amplo latifúndio para a prática do coceguismo. Mas agora, de uma hora para outra, fiquei imune ao estímulo. Por mais que se tente, o toque que antes resultava em risos agora produz em mim a mais absoluta indiferença.
Preocupados com a possibilidade de que o furo fosse mais embaixo, e de que houvesse, na verdade, se extraviado a minha capacidade de rir, decidimos submeter-me a alguns testes. Minha esposa vasculhou na programação de tevê os horários dos principais programas de humor e me impôs uma rígida dieta de uma semana de doses cavalares frente ao aparelho, com a missão de anotar e contabilizar a frequência e a intensidade de meu riso. Foi pior. O histrionismo, o exagero e o mau gosto dos textos de todos os programas não só pouco estimularam meus músculos risais como, em efeito colateral, amplificaram minha dolorosa saudade de programas realmente criativos e bem-humorados de décadas passadas.
Para nosso consolo, atribuímos o segundo problema à incompetência da televisão, e não a meu suposto defeito recém-adquirido, uma vez que voltei a rir à larga relendo trechos do Dom Quixote, de livros do Ítalo Calvino, da coleção do Asterix e outras boas leituras. Alívio total, pois já andava achando que eu tinha perdido a graça.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29/10/2010)

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