segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

O pastel furado

Eu não diria que sou azarado. Creio que estou mais é para desamigado da sorte, mesmo. É menos cruel ver-me assim. Pelo menos, evita que meu ser seja invadido pela mais completa desesperança sempre que me acontecem coisas que tenho a certeza de que só ocorrem comigo.
Receber um pastel furado, por exemplo. Já aconteceu com você? Ou com alguém de suas relações? Pois ocorreu comigo, dia desses, no café de um shopping, enquanto minha esposa pirilampeava saltitante pelos corredores fazendo compras de Natal. Nosso pacto, para a manutenção da harmonia do matrimônio, é assim: ela efetiva as compras e eu me sento mansinho, sem resmungar, em uma cafeteria nas imediações, municiado de livros e jornais, autorizado a consumir cafés, sucos, pastéis e pães de queijo à vontade.
Pois naquele dia, junto com o capuccino, pedi um pastel de carne gordinho e bem fornido que me espiava sedutor por detrás do vidro do balcão. Dei-lhe a primeira mordida e eis que as bolinhas do guisado começaram a despencar igual cascata por entre meus dedos, pipocando no pratinho e espalhando-se por tudo ao redor. Alguns grãozinhos picavam na mesa, ricocheteavam em meu cotovelo e pululavam ao longe pelo chão, indo parar rente aos pés de outros fregueses alheios ao drama que ali ao lado eu protagonizava.
O pastel havia sido mal selado e, a cada nova mordida, mais rapidamente ele se esvaía em carne. Supus que se eu distribuísse dentadas aceleradas por todos os lados do pastel, eu encurralaria os montículos de guisado restantes e conseguiria saborear um mínimo de recheio, mas minha estratégia revelou-se inócua. O resultado foi a patética cena que minha esposa encontrou ao retornar recheada de compras: eu, com farelos de pastel na boca, na camisa e nas calças, olhando atônito para um guardanapo de papel seguro entre os dedos de uma mão, gordura pingando pelo queixo e muito guisado espalhado ao redor, como se o pastel fosse uma granada de carne que explodira.
“Sorte que estás de camisa velha, hein, amor?”, disse-me ela, otimista, como sempre.
Foi uma mensagem do Universo. Na verdade, sou um sujeito de sorte. Basta olhar as coisas sob outro ponto de vista. Destemido, pedi outro pastel.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24/12/2010)

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Metáfora indigesta


Ando brincando com fogo. Semana passada, mexi aqui nesta coluna com o teor do poema “Vou-me embora pra Pasárgada”, de Manuel Bandeira, e ressuscitei a ira de um grupo de senhoras que costumeiramente me lê com chá e bolachinhas nas tardes de sextas-feiras. Elas já se manifestaram outras vezes, e voltaram a me enviar raivosa carta pelo correio. Elas não disparam e-mails, elas enviam cartas pelo correio, seladas e coladas com goma arábica. Quer conhecê-las? Faça campana no Correio, elas são as únicas que ainda utilizam esse método, especialmente quando desejam expressar sua ira contra mim, com o que já estou me habituando, mas permaneço sempre alerta, que o desavisado morreu na véspera.
“Não vamos longe com você, mocinho”, soube que já me andaram ambiguamente ameaçando, após lerem algumas das diatribes que às vezes publico por aqui.
Na cartinha que me endereçaram, elas vociferam contra a ousadia que tive em esculhambar (elas usam, sim, esse termo, porque julgam que eu não mereço menos) com o poema, acusando-me de não perceber que a obra do Poeta encerra uma metáfora evocativa de um idílio redentor, de um refúgio imaginário estruturado em sonhos para contrabalançar o peso da existência no mundo real. E finalizam, trocando em miúdos, acusando-me de ser muito burro. Depois, me convidam para aparecer num chá com torradinhas em uma sexta-feira qualquer, para que possam externar suas discordâncias em relação a mim de corpo presente.
Provo a elas que, pelo menos, burro não sou, porque eu é que lá não vou. Mas, se eu decidisse ir, explicaria a elas que, sim, sempre compreendi a metáfora residente nos versos do poema famoso do renomado Poeta, e elas é que deveriam fazer um esforço de boa vontade e detectar e compreender que também minha crônica abrigava uma metáfora, ao metaforicamente destruir o paraíso imaginado por Bandeira e reduzi-lo ao cotidiano real em que vivemos. Só que não vou, não; temo que elas cansem de morder as torradinhas e decidam morder a mim, na hora do “deixemos as metáforas de lado e vamos ver o que é bom para a tosse, garoto”.
Pior é que, depois dessa, não posso sequer me refugiar em Pasárgada...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17/12/2010)

sábado, 11 de dezembro de 2010

Notícias de Pasárgada


Cheguei ontem de Pasárgada e trago más notícias para quem andava pensando em seguir a dica do Poeta e ir-se embora para lá em busca de um refúgio contra o caos da vida mundana. Primeiro, após tomada a decisão de voltar e comprada a passagem, penei, no Aeroporto Pasargadense Manuel Bandeira, um atraso de doze horas. Mas isso foi apenas o capítulo final de uma experiência que deveria ter sido redentora e se revelou um embuste fruto de propaganda enganosa.
A Pasárgada de hoje não se assemelha em nada ao paraíso cantado nos anos 30 do século passado pelo Poeta. A começar pelos desmandos decorrentes da troca de favores e da prática do apadrinhamento político que regem a administração pública. Todos, em Pasárgada, são amigos do Rei, e o Rei, que sempre quis ter um milhão de amigos, agora precisa acomodar cada um deles em carguinhos públicos a partir dos quais exaurem as riquezas do reino e atravancam o desenvolvimento do Paraíso.
Cheguei lá acreditando piamente que teria a mulher que eu desejasse na cama que escolheria, mas a rede hoteleira e moteleira estava lotada, não dando conta de hospedar tantos peregrinos iludidos que chegam aos borbotões. Sem falar que a Scarlet Johansson nem mesmo estava lá. Para completar, também as mulheres de Pasárgada se libertaram, não são mais objetos nem submissas, trabalham e – surpresa – quem escolhe agora são elas e – surpresa maior ainda – meu perfil não atendeu aos requisitos mínimos das exigências de nenhuma delas.
Resignado, tentei recordar das partes menos conhecidas do poema para ver o que restava de atrativos por ali fora a amizade do Rei e o mulherio à vontade em qualquer cama, e procurei pelas atividades saudáveis como andar de bicicleta, fazer ginástica, montar em burro brabo, subir no pau-de-sebo e tomar banho de mar. Mas qual! As ruas estão tomadas por veículos nervosos e engarrafados (não há espaço para bicicletas e nem burros brabos ou mansos), o mar poluído não está nem para peixe e pau-de-sebo ninguém mais sabe o que é. Não deu nem para reclamar, porque lá não existem Procons. O Rei não deixa.
Vim-me embora de Pasárgada. O jeito é arregaçar as mangas e tentar ajudar a melhorar as coisas por aqui mesmo...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10/12/2010)

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Como dizia o velho deitado

Minha avó tinha um jeito peculiar de metralhar ditos populares. Digo que ela os metralhava para usar o verbo em dois sentidos metafóricos plenamente aplicáveis ao caso de minha avó com os ditos ditos. Ela os “metralhava”, primeiro, porque disparava vários deles durante o dia. Segundo, porque, abusando de uma liberdade de adaptação textual e conjuntural que ela mesma concedia a si própria, ela “metralhava” os ditados populares porque os destruía em seu formato original e os reapresentava renovados, por meio de uma singular e característica readaptação.
Recitando os ditos à sua própria maneira, ela involuntariamente os ressignificava, provendo-os de um alcance ainda maior em termos de uso metafórico do que aquele que o formato original da frase normalmente permitia. Vamos a um exemplo, que é o que o leitor está ansiosamente esperando, depois de tanta verborragia reteórica (uma mescla de retórica e teórica, para não dizer que não aprendi nada com a sabedoria de minha avó). Quando ela se deparava com alguém que não via há muito tempo, exclamava, sem pestanejar: “quem é vivo sempre desaparece”!
Não era exatamente isso o que ela queria dizer, como o leitor sábio e letrado pode de cara perceber. No entanto, a frase ganha novo significado, e tem lógica naquilo que acaba literalmente dizendo. É claro que quem está vivo um dia vai desaparecer. Só nunca foi necessário que minha avó o dissesse para que as pessoas o soubessem, lógico...
Quando retornava do instituto (porque no tempo de minha avó, as mulheres iam se embelezar era no instituto, não na manicure e muito menos na cabeleireira ou no hair stylist), abastecida das mais recentes fofocas cabeludas do bairro, vinha relatando alegremente os “causos” reforçando que, lá no bairro, “só se fala em outra coisa”, quando o que realmente queria dizer era que não se falava em outro assunto.
Na verdade, nunca soube se ela desvirtuava as frases feitas deliberadamente, motivada por algum secreto sarcasmo, ou se de fato se enganava, produzindo acidentalmente as expressões que eu tanto apreciava e que abriram as picadas de minha visão sobre o potencial infinito da linguagem. Também nunca ousei perguntar enquanto ela vivia. “Agora, Inês é torta”, como ela seguramente diria...
(Crônica publicada no jornal Informante, de Farroupilha, em 10/12/2010)

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

A resistência do pinheiro


Perdi uma aposta que fiz comigo mesmo. Mentalmente, não dei dois dias para que fosse depredada a simpática decoração natalina que meu vizinho implementou num pinheirinho que se cria na calçada na divisa entre nossas moradas. A arvorezinha mede pouco mais de dois metros de altura e acompanho seu desenvolver a partir da janela do segundo andar de minha casa, onde fica meu escritório. Paralelamente a ela, cresce também o filho de meu vizinho, para quem ele decidiu decorar o pinheirinho com luzes piscantes, bolas coloridas e até uma estrela no topo.
“Não vai durar duas noites”, sentenciei eu, no silêncio interno de minha consolidada desilusão em relação à humanidade, advinda do acúmulo de anos, de vivências, de observações, de leituras. Não era um vaticínio, tampouco uma praga velada. Pelo contrário, o pensamento configurava-se como uma triste constatação de uma obviedade que, a meu ver, só mesmo uma possível ingenuidade ainda existente na alma de meu vizinho poderia impedir de ver. Torci para que eu estivesse errado, porém, no íntimo, julgava ser uma questão de poucas noites para que os enfeites amanhecessem vítimas da ação dos vândalos.
Pois errei. Redondamente enganei-me. Manhã após manhã, ao acordar e abrir as cortinas da janela, venho me deparando com o pinheirinho ali, impávido, incólume, as luzinhas piscando, a estrela firme encimada na ponta mais alta e os galhos engalanados com as cores das bolinhas. Que fenômeno! Que fato novo! Que pauta para ilustrar as manchetes dos jornais! “Decoração de pinheirinho em via pública resiste ao barbarismo urbano”. Seria algo assim a minha manchete, no meu fictício e impraticável jornal-de-somente-boas-notícias.
O que é que deu nos vândalos que não chutaram as bolinhas, não morderam os fios, não estraçalharam as luzinhas, não despedaçaram a estrela? Por que é que decidiram deixar em paz um trabalho feito para embelezar e compartilhar o espírito natalino? Estão ocupados demais destruindo patrimônios públicos e privados e se esqueceram do pinheirinho, só para impedir que eu decrete de vez minha desilusão e desesperança em relação à humanidade? Perdi a aposta, mas ganhei um sopro de fé que certamente me será vital...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 03/12/2010)