Meu computador se julga mais esperto do que eu. Ou isso, ou sofre de servilismo exacerbado, porque, sempre que me ponho a escrever algo no programa Word, ele decide me ajudar e se coloca a antecipar aquilo que penso, ou a complementar aquilo que não disse e nem tencionava dizer. Alfabetizado ainda antes da novíssima reforma ortográfica, não tem jeito de ele assimilar a informação de que linguiça perdeu o trema e que a consequência (preciso voltar e retirar o trema outra vez) disso é que preciso sempre ficar monitorando com o canto do olho o que ele se bota a aprontar nas frases que já digitei lá atrás, enquanto avanço célere texto adentro.
Quando vou ver, espalhou ele trema por tudo que é “u” precedido de “g” e “q” e seguido de “i” ou “e”. Pior é que, quando retorno e arranco das garras dele os tremas, pulverizando-os com os poderes da insensível tecla “Del”, ele se magoa e fica apontando minha rude intervenção com um sublinhado vermelho sob a desolada linguiça destremada, como a me acusar de haver cometido uma violência sanguinária (em “sanguinária”, ele agora não se mete a meter trema, ou por estar ressabiado ou por saber que forcei o surgimento da palavra só para testá-lo). Isso sem falar na ideia fixa que ele teima em alimentar de que “ideia” ainda leva acento agudo. Na verdade, “ideia”, de tanto uso, ele parece já ter fixado (percebo isso ao parir agora esta crônica), porém, nas demais paroxítonas que possuem os ditongos abertos “ei” e “oi”, como “heroico”, “estreia”, “jiboia” e outros, ele segue polvilhando acentos e me obrigando a dar marcha-a-ré no texto para corrigir o fruto (para não digitar de novo “consequência”) de sua proatividade.
E o que fazer quando ele resolve exibir cultura geral e adulterar nomes próprios, metendo acentos onde não existem, criando armadilhas que, se não detectadas e sanadas em tempo, podem vir a me causar constrangimentos talvez irreversíveis? Quem é que adestrou esse programa? O que o faz pensar que está apto a escrever por mim? E se depois o editor julgar que ele escreve melhor do que eu e oferecer a ele esse meu espaço semanal? Tudo começa com um simples trema. Fiquem alertas, escritores!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de junho de 2011)
3 comentários:
Pois é amigo Kirst, o computador nos prega cada peça...
Ele até pode querer se fazer de letrado, saber mais que o dicionário e assim se achando estrela querer ser escritor. Mas deixe ele sozinho sem tua mente brilhante pra ver o que ele fará com os tremas...
Tremerá na base e implorará por seu conhecimento!
Parabéns pelo pelo belo texto, que trás informação e diversão para nosso dia-a-dia mecânico e as vezes sem graça.
Abraços
Cristina Moschen
Obrigado, Cristina, pela leitura constante e atenta!
Abraços
Marcos F Kirst
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