sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Civilidade felina


Bioy e Iggy, exercitando a arte da amizade felina

O décimo-segundo degrau da escada, o pufe alaranjado, a caixa repleta de exemplares de meu livro “Dois Passos Antes da Esquina”, o alto do roupeiro, o tampo da máquina de lavar roupas e o meu colo sempre que está dando sopa são os lugares da casa que, por usucapião, pertencem a Bioy, o gato que vive conosco. À medida que avançam as horas do dia, ele vai revezando o leito para seu insaciável sono entre esses diferentes locais, sem maiores variações, uma vez que, a exemplo do dono (se é que gatos admitem donos), transformou-se em um verdadeiro “homem de hábitos fixos”.
Dia desses, no entanto, sua mansa rotina foi súbita e profundamente alterada com a chegada de Iggy, um majestoso gato da raça chartreaux, pertencente (se é que gatos admitem pertencer) a um amigo que precisava viajar ao exterior durante um mês e meio. “Uma pata lava a outra”, havíamos anteriormente acertado entre nós (eu, o pseudo-dono de Bioy e ele, o pseudo-proprietário de Iggy), julgando ser apropriado deixarmos nossos felinos a serem cuidados por também apreciadores de gatos quando da necessidade de ausências prolongadas. Nem Iggy nem Bioy foram consultados a respeito dessa decisão e tiveram de se adequar à situação
Mas a desconfiança mútua inicial logo se transformou em amizade, especialmente devido à inesperada atitude de Bioy no quesito “capacidade de compartilhar”. Em nome da arte de bem anfitrionar, Bioy cedeu a Iggy a primazia na hora das refeições, bem como a preferência na ocupação de todos os lugares acima citados e tão caros a ele (em especial meu colo que, felizmente, não se transformou em campo de batalha). Ele foi um verdadeiro “gentlecat”, protagonista de uma pungente lição.
 Claro que os mais céticos supervalorizariam o fato de Iggy possuir quase o dobro do tamanho de Bioy, o que, crê-se, representa muito na escala de valores no mundo felino. Preferimos acreditar, minha esposa e eu, que Bioy na verdade optou por ser gentil com o novo amigo, transformando o limão em limonada. Adotando essa postura, manteve a harmonia no lar, ganhou um novo amigo e ampliou a admiração que nutrimos por ele. Usou de inteligência emocional. Sempre há o que aprender na convivência com os diferentes.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de agosto de 2012)

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