sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Risco quilométrico


Zapeando pela tevê, descubro em uma reportagem que a carga de tinta existente dentro de uma caneta esferográfica é suficiente para traçar uma linha reta de três quilômetros de extensão. Puxa! Três quilômetros! Quanto caberá de escrita dentro de três quilômetros de tinta? O “Cem Anos de Solidão” do Gabriel García Márquez será que exigiria a carga de mais do que uma caneta de ponta-porosa para ser escrito? Quantos contos de Tchekhov? Quantos versos de Quintana? Quantos suspiros e rimas em cartas de amor para a amada distante, nos tempos em que se escreviam cartas de amor à mão em folhas sedosas e pautadas? Quantas assinaturas de cheque cabem em três quilômetros de tinta, ou quais cifras podem ser somadas em folhas de cheque preenchidas? Bilhões de dólares? Zilhões deles?
Será que em três quilômetros de tinta é possível reunir todas as desculpas que elencamos por escrito e em pensamento ao longo de nossas vidas, para justificar nossos atos e nossas esquivas? Três quilômetros de texto, afinal, é muito ou é pouco? Pode ser muito e sobrar tinta se formos enfileirar as vezes em que esquecemos os umbigos e praticamos a generosa arte de elogiar quem nos cerca e de externar-lhes, gratuitamente até, palavras de carinho, incentivo, conforto. Mas pode ser pouco para abarcar a extensão de nossas críticas, de nossas maledicências. Para essas, talvez sejam necessários três quilômetros de canetas carregadas de tinta, e os bons na matemática que calculem o quanto com elas seria possível grafar em jorros de fel.
Fico aqui pensando que talvez seriam necessários três ou até mais quilômetros de tinta para defender a humanidade perante as sazonais iras dos deuses, quando ficam eles lá no Olimpo pensando em acabar com a nossa existência, tamanhas as bobagens que aprontamos aqui por baixo. Porém, sabendo que as artes costumam aplacar a cólera dos titãs a ponto de postergarem o Armagedom por mais algum tempo, creio que até menos de uma carga de tinta baste para que alguém em algum canto do planeta crie mais um poema para louvar o Belo, mantendo firme o traçado de nossas existências. Pelo menos, enquanto não secarem todas as canetas...
 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de agosto de 2012)

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