sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Feijoada noturna



O adormecer aqui em casa não tem nada de muito criativo, porém, às vezes (na maioria das vezes, a bem da verdade), é na simplicidade e na repetição dos padrões que reside a essência de nossa humanidade. Ao apagar das luzes após a leitura noturna das derradeiras páginas dos jornais e dos livros que se equilibram na cabeceira da cama, as palavras rotineiramente trocadas entre minha esposa e eu, após o beijinho de boa-noite, pouco variam de “dorme bem, amor, até amanhã” e plof!... desce o véu da restauradora inconsciência. Isso, via de regra. No entanto (não houvesse os “no entanto”, haveria crônica?)...
Noite dessas, no entanto, logo após o ritual acima descrito, minha mulher virou-se para seu lado e, de lá do meio do travesseiro, escutei-a dizer: “estou com saudades de comer aquele feijão que você faz”. E plof... adormeceu. De nada adiantou eu ter me sentado na cama, perplexo, em meio à escuridão, perguntando a meia-voz “o que foi que você disse?”, pois imediatamente estava ela entregue a um profundíssimo sono, naquele nível que só alguns gatos conseguem atingir. A dúvida que passou a me corroer foi se ela dissera a frase antes de adormecer (o que significaria a manifestação clara de um desejo consciente, plenamente justificado devido à inegável qualidade do feijão que sei elaborar em dias em que estou culinariamente inspirado) ou logo após cair no sono (o que então representaria apenas o estágio inicial verbalizado de um suculento sonho gastronômico, daqueles de babar toda a fronha do travesseiro).
E quem é que dormia após uma frase daquelas? Eu é que não, lógico. O insone, a partir daquele momento, era eu, somente eu, eu apenas; provavelmente o único ser em vigília na quadra inteira, fora um ou outro cachorro ladrador. Por via das dúvidas, já ao raiar do sol, indormido que estava, botei a panela de pressão a funcionar, exalando aroma de feijoada por todo o condomínio já às nove horas da manhã. A frase dela, ao abrir os olhos, ouvir o apito da panela e sentir o cheiro que invadia o quarto, foi: “que deu em você de fazer feijão a essa hora, está maluco?”. Nunca se pode prever o que pode advir de uma simples quebra de rotina...
 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de outubro de 2012)

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