domingo, 29 de janeiro de 2012

Fôlego curto

Algumas senhoras leitoras minhas me têm escrito reclamando deste meu estilo às vezes resfolegante de escrever, a partir do qual edifico parágrafos mais longos do que os discursos de Fidel em seus melhores momentos, o que invariavelmente lhes exige inspirações de ar e uma manutenção prolongada de fôlego nem sempre exatamente saudáveis para a idade em que se encontram. Concordo, mas não é sempre assim. Prova está na frase imediatamente anterior a esta.
É verdade que há momentos em meu escrever em que me empolgo e passo a encarrilhar argumentos um atrás do outro, despejando sem parcimônia os ditos-cujos utilizando-me com despudor das vírgulas, dos traços, dos parêntesis e, às vezes, até mesmo dos pontos-e-vírgulas, todos eles artifícios que, quando bem empregados, auxiliam a manter em suspenso o fôlego do leitor sem proporcionar pausas que, entre um gole de café e outro, ou após uma ida ao banheiro, podem me fazer correr o risco de perder a sua preciosa atenção. Porém, não é sempre. Também tenho lá meus períodos curtos.
O uso das sentenças longas não é invenção minha e tampouco característica única deste que vos escreve, muito pelo contrário, vem sendo empregado por grandes próceres da literatura universal que fizeram a fama e espero que também a fortuna exigindo dos leitores o emprego de uma atenção redobrada quando surpreendidos no súbito ato de verem-se emaranhados no labirinto de ideias acolheradas entre pontos situados a distâncias excruciantes entre um e outro, como este mesmo período que agora deslindamos juntos. Marcel Proust era um deles. O cronista gaúcho João Bergman, o Jotabê, era outro. Eu, um simulacro prolixo incomparável a nenhum deles.
Mas a leitura de períodos decorrentes de um “estilo asfixiante”, como tão bem definia o vício escritural o já citado beletrista Jotabê, não deve ser obstáculo que se apresente como interposição intransponível entre autor desmedido e leitores de fôlego curto, uma vez que as ideias neles contidas são de fácil apreensão após duas ou três releituras pausadas e atentas, sendo sempre bom lembrar que a síntese do que eles encerram muitas vezes só vai ser encontrada mesmo é na frase que vem a seguir. Sim, às vezes eu enrolo.
Mas para não afugentar de vez os leitores e as leitoras de todas as idades que ainda me restam, proponho uma técnica de leitura a ser empregada naquelas crônicas em que o tal do estilo asfixiante se faz claramente presente, a fim de resguardar a saúde física e mental dos que lêem, e a permanência da sua atenção aos escritos deste que ainda escreve. Sugiro a leitura intercalada dessas frases, evitando as longas e pulando diretamente às mais curtas, substituindo o exaustivo exercício respiratório pela simulação de uma corrida de obstáculos literal. Afinal, ler não deve ser prejudicial à saúde.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em junho de 2010)

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Socializando na faixa



Não é em coquetéis, não é em bares, não é em eventos beneficentes, não é em festinhas de final de semana, não é em eventos culturais nem em reuniões sociais. A bem da verdade, meu local preferido para contatar pessoas, rever amigos, encontrar conhecidos há muito desaparecidos, fazer contatos importantes, mostrar-me vivo, trocar cartões ou números de telefone e socializar em geral é... a faixa de segurança! As faixas de segurança, todas elas, assim, no plural.
Sou vidrado em faixa de segurança. Gosto do formato rápido, jovial e direto que caracteriza os encontros que se materializam sobre as faixas zebradas que adornam as esquinas dos centros urbanos. Ali não há espaço e nem tempo para rodeios. Encontrar-se com alguém sobre uma faixa de segurança requer uma muito bem desenvolvida capacidade de síntese e foco social, habilidade essa cultivada por poucos, muito poucos.
Ali, em meio às passadas rápidas que damos mirando a segurança da outra margem da calçada (sim, porque, segurança, mesmo, só obtemos nas calçadas, e não sobre as faixas que levam esse nome), é preciso saber ser objetivo quando ocorre o encontro com outro frequentador desses ambientes urbanos. Se ficar enrolando, o resultado do encontro poderá vir a ser uma estada mais prolongada em um leito de hospital (isso, na melhor das hipóteses) depois que o sinal trocar do vermelho para o verde. É um esporte radical, sim, mas para poucos.
Outro dia encontrei Jair na faixa localizada na esquina da Sinimbu com a Visconde de Pelotas. É ali que normalmente nos encontramos. Mais uma vez, desenvolvemos nosso habitual diálogo de faixa de segurança:
“E aí, como v...?”, perguntei eu, vindo.
“... do ótimo, e tu?“, respondeu ele, indo.
Pronto! Mais um tapinha nas costas que acabou pegando no cotovelo e estava solucionado outro produtivo, simpático, moderno, civilizado e agradável encontro social casual de faixa de segurança com o Jair. E quem disse que é preciso muito mais do que isso? Já trocamos discos e livros sobre a faixa de segurança. Já contei e escutei fofocas nelas. Mandei lembranças, prometi ligar, falei piadinhas, sorri. Semana que vem, marquei um café sobre uma delas. Veremos se sobrevivo...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de janeiro de 2012)

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Filosofia de sexta

Certa vez um repórter que me entrevistava pediu que eu resumisse meu próprio perfil em algumas poucas palavras. Criou-me ele com essa demanda tamanha paralisia cerebral que tenho a sensação de que, respondesse o que quer que fosse, permaneceria sempre sendo infiel à verdade. Não pelo fato de eu me considerar pessoa complexa e significante demais para ser resumida em pouca palavras, meu ego não me leva a tamanhas lonjuras. Mas por ser esse um questionamento que considero um dos mais inquietantes da existência humana: como exatamente somos? Quais os parâmetros que devemos utilizar para definir a essência daquilo que torna cada um de nós único e inigualável frente aos demais bilhões de habitantes do planeta?
Nossa tendência, quando confrontados com o tema, é logo oferecer a visão que possuímos de nós mesmos como a resposta mais equalizada com a realidade. Quem sou eu? Eu sou como eu mesmo me vejo, e ponto final, afinal, “qua comando mi”. Porém, a visão que temos sobre nós mesmos é apenas uma ponta do emaranhado novelo que se chama nossa personalidade.
Tão ou mais importante quanto a visão que temos de nós mesmos é a forma como os outros nos veem. O outro (e todos os outros) não tem acesso a nossas motivações mais íntimas, aos pensamentos e sentimentos que movem nossos atos. O outro só vê a concretização de nossos atos, e é por meio disso que vai forjando em seu próprio íntimo a visão que nutre sobre aquilo que somos. Minha timidez pode ser detectada como arrogância, só para dar um exemplo de fácil digestão.
E não é só isso. Também sou aquilo que eu mesmo penso que os outros pensam sobre mim. Ou seja, se eu me vejo como tímido, pode ser que eu creia que Zuleika me julgue prepotente. Quando, na verdade, Zuleika me vê é como energúmeno mesmo, mas eu não sei de nada. E para finalizar, somos também aquilo que os outros acham que nós pensamos de nós mesmos. Eu sou tímido, acho que Zuleika me vê como arrogante, Zuleika na verdade me vê como energúmeno mas ela pensa que eu, energúmeno que sou, me vejo como gênio da lâmpada.
O que somos, então, afinal das contas? Ora, a soma de tudo isso, o que nos torna indecifráveis e instigantes esfinges para nós mesmos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de janeiro de 2012)

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Essas gentes do mundo

Existem dois tipos de pessoas no mundo. “As gremistas e as coloradas”, apressa-se a pensar o apressadinho. “As inteligentes e as antas”, aligeira-se a classificar o preconceituoso. “As trabalhadoras e as preguiçosas”, já sentenciaria meu avô e todos os demais avós existentes. “As que vão para o céu e as que vão para o inferno”, determina a carola no primeiro banco da igreja. “As boas e as más”, catequiza o determinista. “As sortudas e as azaradas”, reflete o aposentado na fila da agência lotérica. “As felizes e as infelizes”, amarga a moça triste, em sintonia de pensamento com a senhora alegre sentada ao seu lado no ônibus. “As vegetarianas e as carnívoras”, adivinha o dono da churrascaria. “As otimistas e as pessimistas”, arrisca o pragmático, chegando próximo do conceito que o cronista pretende abordar rapidamente nas linhas que se seguem.
A bem da verdade, como podemos perceber, existem é bilhões de tipos de pessoas no mundo, todas elas classificáveis em dois grandes grupos opostos sempre que se pretende contrapor dois tipos excludentes e antagônicos de comportamento ou de formas de pensar. Hoje, aqui, quero me referir à diferença existente entre as pessoas que eu chamaria de propositivas e aquelas que eu classificaria como as impeditivas. As primeiras são aquelas que fazem o mundo andar, responsáveis pelo girar da roda. São a minoria absoluta. As segundas são aquelas que facilmente se vergam aos empecilhos, que trombam com tudo nas pedras existentes no meio do caminho, que empacam frente ao primeiro obstáculo e não sabem se desvencilhar da burocracia. São a esmagadora maioria.
As pessoas impeditivas são aquelas que, quando surge um problema, imediatamente param tudo e ficam à espera de uma solução que venha do céu, ou de algum superior, e optam direto por frases como “volte amanhã”, “não, não há o que fazer”, “não, não dá”. Já as propositivas usam da boa vontade, da inteligência e da criatividade para encontrar e apresentar soluções, fazendo a carroça andar porque atrás vem gente, minha filha.
Precisamos urgentemente, no Brasil, de um fermento que faça surgirem mais pessoas propositivas em todos os ambientes.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de janeiro de 2012)

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Olha os godos

Passar a mão na cabeça é uma figura de linguagem utilizada sempre que pretendemos demonstrar que alguém está sendo conivente com atitudes e posturas de outras pessoas que, a bem da verdade, deveriam ser alvo de reprimendas ou de uma reorientação mais determinada. Tapar os olhos, fazer vistas grossas, dar um tapinha nas costas do infrator ou do mal-educado são atitudes que correm o risco de pavimentar o caminho para a alimentação de monstros que serão difíceis de controlar mais tarde.
Veja Hitler na Europa na primeira metade do século passado, por exemplo. Tanto na Alemanha quanto fora dela, ninguém se preocupou muito com as consequências dos discursos histriônicos daquele falastrão de bigodinho a la Charlie Chaplin. Só que de palhaço ele não tinha nada, e a fatura mundial que teve de ser paga por ninguém ter tido o trabalho de cortar as suas asinhas de morcego enquanto ainda era tempo resultou em um valor altíssimo em vidas humanas. Quando resolveram reagir, ele já tinha mais da metade da Europa e boas partes de outros continentes subjugados ao delírio insano com que via o mundo, e quase que foi tarde demais.
O que a História tenta nos ensinar é que não devemos deixar as coisas beirarem o limite perigoso que se manifesta quando se chega próximo de cruzar a linha entre o “ainda é possível fazer alguma coisa” e o “é tarde demais”. Resgatar e ressaltar a importância do cultivo e do exercício de valores básicos de convivência em sociedade, especialmente entre as novas gerações, é um esforço que precisa ser empreendido por todos aqueles que lidam com gente enquanto ainda é tempo, para que não seja tarde demais. Para que o barbarismo não volte a imperar. Godos, ostrogodos e visigodos foram algumas das hostes bárbaras que levaram à bancarrota o Império Romano. Temos de impedir que essas hordas renasçam, e a única arma capaz de fazê-lo é a educação.
Mas eu me refiro aqui a uma educação mais abrangente, que signifique principalmente o esforço em gerar conceitos de civilização e de civilidade nos jovens, e mais, que também se manifeste no sentido de resgatar esses valores em cidadãos não mais tão jovens assim e que parecem ter esquecido completamente o sentido das lições que recebiam de seus pais, tios e avós. É equivocado o conceito de que devemos preparar um mundo melhor para nossos filhos e netos. Isso é passar a mão na cabeça deles, lustrando a irresponsabilidade e gerando pessoas que esperam receber as coisas de mãos beijadas. Precisamos, isso sim, é preparar melhor nossos filhos e netos enquanto cidadãos civilizados que sejam capazes de eles mesmos, com seus próprios méritos e esforços, construírem um mundo melhor para viver.
O ex-Beatle Paul McCartney costumava conversar com sua esposa Linda Eastmann a respeito do que almejavam para seus filhos, e revelou que “tudo o que poderíamos querer para eles era que tivessem bom coração”. Conseguir alcançar isso já é fazer muito pela humanidade: botar no mundo pessoas que tenham bom coração. O resto tem de ficar por conta deles.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em junho de 2010)

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Lição de além-mar

Erico Verissimo passeava pelas ruas da Filadélfia, na Pensilvânia, no início de 1941, quando um cartaz afixado junto ao caixa de um estande de jornais lhe chamou a atenção pelo que nele estava escrito:
- Se nós não lhe dissermos muito obrigado, pode pedir o dinheiro de volta.
O escritor gaúcho classificou o aviso como “curioso”, e seguiu sua perambulada observando outros aspectos do cotidiano, dos hábitos e dos costumes dos norte-americanos, conforme relatou depois da viagem, no livro “Gato Preto em Campo de Neve”, lançado em 1941 e que agora eu leio. Verissimo passou algumas semanas em solo americano a convite do Departamento de Estado daquele país, que desenvolvia uma “política de boa vizinhança” com o Brasil, às vésperas de ingressar no conflito que viria a ser conhecido como a Segunda Guerra Mundial. Era interesse dos EUA propagandear o “estilo de vida americano” para intelectuais brasileiros que amplificassem as benesses da democracia livre e da sociedade capitalista, afastando a sombra do namoro que, na época, o governo getulista insinuava com os países do Eixo.
Verissimo relatou tudo o que viu em um saboroso livro de crônicas e reflexões de viagem, no qual exercita a capacidade de registrar o curioso e espantar-se com as pequenas coisas que revelam a alma de um povo. Como uma placa assegurando ao consumidor o seu direito inalienável de ser bem tratado pelos funcionários do estabelecimento. A frase da plaquinha significa que todos os clientes do tal estande de jornais eram tratados com cortesia pelo estabelecimento que escolhiam para deixar seu dinheiro. É o mínimo que se pode esperar, especialmente em uma sociedade cuja economia é embasada no princípio da livre concorrência, onde qualquer detalhe faz a diferença, podendo significar a conquista eterna ou a debandada decidida de milhares de clientes, determinando a saúde do negócio.
Decidi imprimir centenas de milhares de plaquinhas com o mesmo dizer e vendê-las a preços módicos a comerciantes, empresários e prestadores de serviços em geral aqui na Serra. A acachapante maioria deles está precisando do conselhinho básico. E prometo agradecer e até sorrir a todos os que adquirirem meu produtinho.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de janeiro de 2012)