sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Bolhas de sabão


A janela de meu escritório me traz as imagens do mundo exterior por meio de uma tela de dois metros quadrados de vidro. Num desses finais de tarde, um movimento estranho, contínuo, tirou minha atenção da tela do computador e a desviou para o vidro. Do lado de fora, centenas de milhares de bolhas de sabão voejavam ao vento, vindas em sucessivas ondas que variavam de intensidade. As luzes de final de tarde refletiam no interior das pequenas bolas, criando mosaicos coloridos que pareciam fazer com que cada pequena, frágil e fugaz esfera portasse minúsculos arco-íris dentro de si, prontos para carregar poesia e se esfacelarem no ar poucos metros adiante.

De onde vinham? Levantei-me da cadeira, deixei o computador e fui enfiar o nariz no vidro para identificar a origem daquele mistério. Lá estava ele, do outro lado da rua, no pátio da casa situada em frente: o filho dos vizinhos, cerca de dez anos de idade, soprando bolhas. Numa das mãos segurava o potinho contendo a mistura de água e sabão e, na outra, a haste com extremidade elíptica que mergulhava no líquido e soprava, produzindo as aladas bolhinhas. “Mas que faz esse menino que não está encavernado dentro de casa, com o nariz enterrado dentro de uma tela de computador, jogando videogame?”, pensei eu. Pelo que me consta, crianças de hoje preferem fazer bolhas de sabão virtuais pela internet ao invés de ficarem ao ar livre, sobre um gramado, ao sabor do sol e do vento, produzindo bolhas de sabão de verdade.

Tentei identificar em algum lugar em volta a máquina do tempo que talvez tivesse trazido aquele menino de lá da minha antiga Rua dos Viajantes em Ijuí, onde, em minha infância, 30 e tantos anos atrás, a meninada de carne e osso produzia bolhas de sabão com sabão mesmo, igual ao filho dos vizinhos daqui da rua. Mas não havia máquina do tempo. Havia mesmo era um menino de carne e osso, descobrindo a magia das brincadeiras tangíveis ainda existentes fora do mundo virtual. Vai que ele descubra, na sequência, as delícias do ioiô, do bilboquê, do jogo de bolitas, da pandorga... Minha janela também é bem mais interessante do que a tela de meu computador, né, pequeno vizinho?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de novembro de 2012)

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Qual é a sua Era?


Em que Era você vive? Alguns afirmam estarmos vivendo a Era da Informação; outros, a Era da Tecnologia; ou a Era da Internet; também há a Era dos Transportes; a Era da Aldeia Global. Há ainda os que detectam uma Era do Individualismo, ou uma Era da Ansiedade, também a Era da Intolerância e ainda a Era do Consumismo, do Materialismo. Entre essas Eras todas, que coexistem simultânea e integradamente, há uma delas que me chama a atenção e que parece estender seus tentáculos sobre a maioria dos cidadãos que habitam o planeta, independentemente de idade, classe social, nacionalidade, credo, raça: a Era da Escravização da Agenda.
Os compromissos a serem cumpridos em nossas agendas (de papel, eletrônicas ou mentais) estão a regrar, determinar e ditatorializar nossos dias, desde o momento em que saímos da cama até a hora de retornarmos a ela. Há tarefas a cumprir. Sempre. Algumas novas vêm substituir as já realizadas, ao passo em que outras são cíclicas, sazonais, repetitivas, vitalícias enquanto vivermos. Precisamos monitorar as datas de vencimento das contas do mês (e, se depositadas em conta bancária, controlar o saldo para haver fundos), precisamos comparecer às reuniões, obedecer aos prazos, atingir as metas, cumprir as tarefas, assumir novos desafios, nos atualizarmos, crescermos profissional e pessoalmente, trocar de carro, ampliar a casa, comprar casa na praia, arejar a casa da praia antes da chegada do verão, enfeitar as casas todas já em novembro porque dali a dois meses é Natal, e depois é Páscoa de novo, e Dia das Mães e dos Pais e das Avós e das Crianças e dos Suricatos, e não esqueçamos do Halloween e logo, logo, do Dia de Ação de Graças, né, já que decidimos importar cultura. Ah, e a decisão sobre onde e como passar as férias, e o Carnaval, e os impostos de início de ano a serem pagos com desconto e o estoque de papel higiênico que está acabando outra vez e o material escolar e aquele filme que todos viram menos eu ainda.
Vivemos a Era dos Dias Curtos Demais. Uma Era do Faça Tudo e Mais Um Pouco (verdadeira desfaçatez). Enquanto isso, nas agendas superlotadas, o espaço para a vida interior... esse sim... já era...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de novembro de 2012)

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Por que pensar em Ingrid?


Ingrid que faça o que bem entender com o cotovelo dela ou com o que quer que seja...

Ditados populares são sábios. Tem aquele que diz assim: “diga-me com quem andas e eu te direi quem és”. Gosto desse. Diz profunda verdade. Tão profunda que permite criar versões dele mesmo e aplicá-las às mais variadas situações da vida, que ele segue valendo. Por exemplo: “diga-me o que te interessa e eu te direi quem és”. Quais são os assuntos que chamam a sua atenção nesse mundo moderno em que as mídias todas competem para atrair os preciosos minutos de nosso tempo pingado a conta-gotas? Quais programas de televisão recebem a benesse de seu olhar contemplativo de lá do fundo do fofo sofá de sua sala? Quais as notícias dos jornais merecem o debruçar de seus olhos para além dos títulos?
Pois é. As respostas a todas essas questões, meus amigos, ajudarão a dizer quem somos. Só para ilustrar, vejamos. Nas últimas semanas, detectei um tema que figurou entre os dez mais comentados por onde quer que se estivesse: nas mesas do café literário, na internet, nos jornais, nos programas de debate na televisão, nos táxis, nas salas de espera, enfim, por tudo. Não houve quem não dedicasse alguns minutos de sua vida para expressar sua opinião a respeito do caso da jovem catarinense Ingrid Migliorini (a Catarina), que aos 20 anos de idade resolveu leiloar a virgindade, obtendo R$ 1,6 milhão para ofertá-la em um voo transatlântico ao comprador japonês que deu o maior lance. De minha parte, nada contra, nem a favor, cada um faz com seu cotovelo o que bem entender. O interessante é que, independentemente do julgamento de cada um, o assunto foi notícia e ganhou repercussão porque as pessoas se interessaram por ele. Quem determina o tamanho da relevância de uma notícia é o interesse que as pessoas depositam nela. E ponto.
Mais do que questionar os motivos que levaram a jovem a decidir fazer o que fez, julgo que seria bem mais significativo para cada um de nós se dedicássemos uma parcela desse tempo para questionar as razões que nos levam a julgar esse tema tão relevante. Da mesma forma como a todas as demais questões às quais damos, às vezes, valor sem nem mesmo perceber. É um bom exercício para conhecermos melhor a nós mesmos, já que temos de andar conosco nossas vidas inteiras.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de novembro de 2012)

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

O bom cigarro do Argentino


Tem por apelido Argentino um velho amigo meu, cujas manias esquisitas lhe são o atributo mais saliente. Na última carta que me enviou (Argentino mora longe e ainda escreve e remete cartas por Correio), se diz preocupado com essa onda antitabagista que discrimina os fumantes e relega o hábito do fumo à categoria de práticas execráveis a serem alvo do desprezo e da condenação sociais. Mas Argentino, que apesar de ser mesmo um argentino, jamais fumou e sempre protagonizou campanhas pessoais relativas à conscientização dos malefícios do tabaco. Que lhe teria havido?
A solução do mistério foi chegando junto às linhas traçadas das cartas subsequentes. Meu amigo confidenciou-me que, meses atrás, vivenciou pela primeira vez em sua vida a experiência de adquirir um maço de cigarros. Mas não os fumou nenhum, tampouco acalenta a intenção de fumá-los. O que passou a fazer a partir disso foi adotar o hábito, que sempre invejou aos fumantes, de finalmente ter uma boa desculpa para retirar-se do ambiente em que se encontra, ou deixar de fazer o que está fazendo, para obter um pouco de paz e sossego a sós, com a desculpa de “sair para dar uma fumadinha”.
“Na repartição, ó caro amigo Marcos, agora posso me ausentar uns 15 minutos sob o pretexto de ir fumar, e vou-me para a rua, caminhar em volta da quadra, olhar as pessoas, respirar o dia, sentir a pulsação da existência. Isso renova meu ânimo, recarrega as energias vitais de que preciso para seguir adiante no trabalho. Dissesse eu ao chefe que vou dar uma saída para respirar ar fresco durante 15 minutos, seria visto como preguiçoso e desleixado com o trabalho. Com a desculpa do fumo, vou saindo e tirando do bolso a carteira – que permanece intacta –, e ninguém me incomoda”, rabisca ele na carta.
Respondo-lhe também em carta que louvo a decisão tomada. Primeiro, porque faz bem à sua saúde; depois, porque, assim, não fumando os cigarros da sua inesgotável carteira, Argentino evita emporcalhar as ruas, praças, gramados e calçadas com as nojentas baganas de cigarro que denunciam a passada dos fumantes de verdade. Ele é o único caso que conheço em que o cigarro faz bem à saúde física, mental e ambiental.
 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de novembro de 2012)