Blog destinado à publicação de crônicas e textos assinados pelo jornalista e escritor Marcos Fernando Kirst em jornais e revistas, além de textos aleatórios quando for o caso.
sexta-feira, 23 de novembro de 2012
Bolhas de sabão
A janela de meu escritório me traz as imagens do mundo exterior por meio de uma tela de dois metros quadrados de vidro. Num desses finais de tarde, um movimento estranho, contínuo, tirou minha atenção da tela do computador e a desviou para o vidro. Do lado de fora, centenas de milhares de bolhas de sabão voejavam ao vento, vindas em sucessivas ondas que variavam de intensidade. As luzes de final de tarde refletiam no interior das pequenas bolas, criando mosaicos coloridos que pareciam fazer com que cada pequena, frágil e fugaz esfera portasse minúsculos arco-íris dentro de si, prontos para carregar poesia e se esfacelarem no ar poucos metros adiante.
De onde vinham? Levantei-me da cadeira, deixei o computador e fui enfiar o nariz no vidro para identificar a origem daquele mistério. Lá estava ele, do outro lado da rua, no pátio da casa situada em frente: o filho dos vizinhos, cerca de dez anos de idade, soprando bolhas. Numa das mãos segurava o potinho contendo a mistura de água e sabão e, na outra, a haste com extremidade elíptica que mergulhava no líquido e soprava, produzindo as aladas bolhinhas. “Mas que faz esse menino que não está encavernado dentro de casa, com o nariz enterrado dentro de uma tela de computador, jogando videogame?”, pensei eu. Pelo que me consta, crianças de hoje preferem fazer bolhas de sabão virtuais pela internet ao invés de ficarem ao ar livre, sobre um gramado, ao sabor do sol e do vento, produzindo bolhas de sabão de verdade.
Tentei identificar em algum lugar em volta a máquina do tempo que talvez tivesse trazido aquele menino de lá da minha antiga Rua dos Viajantes em Ijuí, onde, em minha infância, 30 e tantos anos atrás, a meninada de carne e osso produzia bolhas de sabão com sabão mesmo, igual ao filho dos vizinhos daqui da rua. Mas não havia máquina do tempo. Havia mesmo era um menino de carne e osso, descobrindo a magia das brincadeiras tangíveis ainda existentes fora do mundo virtual. Vai que ele descubra, na sequência, as delícias do ioiô, do bilboquê, do jogo de bolitas, da pandorga... Minha janela também é bem mais interessante do que a tela de meu computador, né, pequeno vizinho?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de novembro de 2012)
sexta-feira, 16 de novembro de 2012
Qual é a sua Era?
Os compromissos a serem cumpridos em nossas agendas (de papel, eletrônicas
ou mentais) estão a regrar, determinar e ditatorializar nossos dias, desde o
momento em que saímos da cama até a hora de retornarmos a ela. Há tarefas a
cumprir. Sempre. Algumas novas vêm substituir as já realizadas, ao passo em que
outras são cíclicas, sazonais, repetitivas, vitalícias enquanto vivermos.
Precisamos monitorar as datas de vencimento das contas do mês (e, se
depositadas em conta bancária, controlar o saldo para haver fundos), precisamos
comparecer às reuniões, obedecer aos prazos, atingir as metas, cumprir as
tarefas, assumir novos desafios, nos atualizarmos, crescermos profissional e
pessoalmente, trocar de carro, ampliar a casa, comprar casa na praia, arejar a
casa da praia antes da chegada do verão, enfeitar as casas todas já em novembro
porque dali a dois meses é Natal, e depois é Páscoa de novo, e Dia das Mães e
dos Pais e das Avós e das Crianças e dos Suricatos, e não esqueçamos do
Halloween e logo, logo, do Dia de Ação de Graças, né, já que decidimos importar
cultura. Ah, e a decisão sobre onde e como passar as férias, e o Carnaval, e os
impostos de início de ano a serem pagos com desconto e o estoque de papel
higiênico que está acabando outra vez e o material escolar e aquele filme que
todos viram menos eu ainda.
Vivemos a Era dos Dias Curtos Demais. Uma Era do Faça Tudo e Mais Um
Pouco (verdadeira desfaçatez). Enquanto isso, nas agendas superlotadas, o
espaço para a vida interior... esse sim... já era...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de novembro de 2012)
sexta-feira, 9 de novembro de 2012
Por que pensar em Ingrid?
Ingrid que faça o que bem entender com o cotovelo dela ou com o que quer que seja...
Ditados populares são sábios. Tem aquele que diz assim: “diga-me com quem
andas e eu te direi quem és”. Gosto desse. Diz profunda verdade. Tão profunda
que permite criar versões dele mesmo e aplicá-las às mais variadas situações da
vida, que ele segue valendo. Por exemplo: “diga-me o que te interessa e eu te
direi quem és”. Quais são os assuntos que chamam a sua atenção nesse mundo
moderno em que as mídias todas competem para atrair os preciosos minutos de
nosso tempo pingado a conta-gotas? Quais programas de televisão recebem a
benesse de seu olhar contemplativo de lá do fundo do fofo sofá de sua sala?
Quais as notícias dos jornais merecem o debruçar de seus olhos para além dos
títulos?
Pois é. As respostas a todas essas questões, meus amigos, ajudarão a
dizer quem somos. Só para ilustrar, vejamos. Nas últimas semanas, detectei um
tema que figurou entre os dez mais comentados por onde quer que se estivesse:
nas mesas do café literário, na internet, nos jornais, nos programas de debate
na televisão, nos táxis, nas salas de espera, enfim, por tudo. Não houve quem
não dedicasse alguns minutos de sua vida para expressar sua opinião a respeito
do caso da jovem catarinense Ingrid Migliorini (a Catarina), que aos 20 anos de
idade resolveu leiloar a virgindade, obtendo R$ 1,6 milhão para ofertá-la em um
voo transatlântico ao comprador japonês que deu o maior lance. De minha parte,
nada contra, nem a favor, cada um faz com seu cotovelo o que bem entender. O
interessante é que, independentemente do julgamento de cada um, o assunto foi
notícia e ganhou repercussão porque as pessoas se interessaram por ele. Quem
determina o tamanho da relevância de uma notícia é o interesse que as pessoas
depositam nela. E ponto.
Mais do que questionar os motivos que levaram a jovem a decidir fazer o
que fez, julgo que seria bem mais significativo para cada um de nós se
dedicássemos uma parcela desse tempo para questionar as razões que nos levam a
julgar esse tema tão relevante. Da mesma forma como a todas as demais questões
às quais damos, às vezes, valor sem nem mesmo perceber. É um bom exercício para
conhecermos melhor a nós mesmos, já que temos de andar conosco nossas vidas
inteiras.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de novembro de 2012)
quarta-feira, 7 de novembro de 2012
O bom cigarro do Argentino
Tem por apelido Argentino um velho amigo meu, cujas manias esquisitas lhe
são o atributo mais saliente. Na última carta que me enviou (Argentino mora
longe e ainda escreve e remete cartas por Correio), se diz preocupado com essa
onda antitabagista que discrimina os fumantes e relega o hábito do fumo à
categoria de práticas execráveis a serem alvo do desprezo e da condenação
sociais. Mas Argentino, que apesar de ser mesmo um argentino, jamais fumou e
sempre protagonizou campanhas pessoais relativas à conscientização dos malefícios
do tabaco. Que lhe teria havido?
A solução do mistério foi chegando junto às linhas traçadas das cartas
subsequentes. Meu amigo confidenciou-me que, meses atrás, vivenciou pela
primeira vez em sua vida a experiência de adquirir um maço de cigarros. Mas não
os fumou nenhum, tampouco acalenta a intenção de fumá-los. O que passou a fazer
a partir disso foi adotar o hábito, que sempre invejou aos fumantes, de finalmente
ter uma boa desculpa para retirar-se do ambiente em que se encontra, ou deixar
de fazer o que está fazendo, para obter um pouco de paz e sossego a sós, com a
desculpa de “sair para dar uma fumadinha”.
“Na repartição, ó caro amigo Marcos, agora posso me ausentar uns 15
minutos sob o pretexto de ir fumar, e vou-me para a rua, caminhar em volta da
quadra, olhar as pessoas, respirar o dia, sentir a pulsação da existência. Isso
renova meu ânimo, recarrega as energias vitais de que preciso para seguir adiante
no trabalho. Dissesse eu ao chefe que vou dar uma saída para respirar ar fresco
durante 15 minutos, seria visto como preguiçoso e desleixado com o trabalho.
Com a desculpa do fumo, vou saindo e tirando do bolso a carteira – que
permanece intacta –, e ninguém me incomoda”, rabisca ele na carta.
Respondo-lhe também em carta que louvo a decisão tomada. Primeiro, porque
faz bem à sua saúde; depois, porque, assim, não fumando os cigarros da sua inesgotável
carteira, Argentino evita emporcalhar as ruas, praças, gramados e calçadas com
as nojentas baganas de cigarro que denunciam a passada dos fumantes de verdade.
Ele é o único caso que conheço em que o cigarro faz bem à saúde física, mental
e ambiental.
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