segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Saber mexer os pauzinhos

Nos anos 1990, a gastronomia típica italiana vigente na Serra Gaúcha sofreu uma ameaça de abalo a partir da inserção do javali entre as iguarias que por aqui aterrissavam nas mesas dos restaurantes e embalavam as reuniões de amigos que se aventuravam a escantear a polenta com formaggio e o frango al primo canto. A costela assada de javali, o lombo de javali ao forno acompanhado com molho de menta, o quarto de javali preparado para ser abocanhado à gaulesa fizeram sucesso entre os apreciadores do bem comer, adaptando-se ao tradicional acompanhamento do radicci com bacon a título de salada e à sobremesa de sagu quente (sobre a qual pairam controvérsias que agora não vêm ao caso).
Mas a onda durou pouco. Arrefecida a euforia inicial, a javalizada se reproduziu como praga, passou a vandalizar as lavouras em gangues descontroladas e decaiu no gosto popular, sendo varrida dos cardápios para o retorno triunfante da bela polenta com queijo, das sopas de capeletti e de agnoline, da codorna ao molho, do bígoli com guisado, do churrasco de gado e de porco, dos peixes fisgados das pesqueiras. Falando em peixe, registre-se a passageira fase das trutas ao molho de amêndoas, que não chegou a abalar o império das velhas e boas tilápias fritas na banha.
Mas, como tudo na vida é sazonal, uma nova onda gastronômica finca fundações sólidas por nossas serranices: o fascínio pelos sushis. Estamos determinados a apreciar os delicados sabores dos coloridos acepipes oriundos da gastronomia japonesa, inclusive trocando os talheres pela manipulação dos pares de pauzinhos. Problema sou eu, claro. Noite dessas, infiltrado em evento enogastronômico refinado, detectei, em um dos cantos, o (agora) já tradicional bufê de sushi. Como todo bom habitante da Serra, pensei “oba, sushi” e lá fui eu, pratinho em punho, pauzinhos na mão, a pinçar unidades para depois saborear com a esposa.

Só que, ainda destreinados, meus dedos não conseguiam manter paralelas as varetinhas, que insistiam em fazer um xis cruzado enquanto eu tentava capturar um encantador sushizinho recheado com algo verde, que acabou arremessado em efeito catapulta contra o meu peito, quicou e foi rolar no chão bem embaixo da sola de meu sapato que nesse instante pisava e achatou o rolinho, agora impróprio para consumo. Minha esposa, acometida por um incontrolável acesso de riso, saiu pela tangente e me deixou ali, imóvel, salivando de desejo secreto por uma suculenta picanha no espeto, nem que fosse de javali. Não adianta, na hora do aperto, sempre apelamos para a tradição.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de novembro de 2016) 

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