sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Nunca dá nada


O brasileiro ainda é um cidadão imaturo que adora brincar com fogo, mas não gosta de se queimar. E, quando isso ocorre, apesar dos insistentes avisos preventivos recebidos, se julga injustiçado. A analogia é triste, mas se impõe às vésperas de completar uma semana a tragédia de Santa Maria, que interrompeu a vida de mais de 200 jovens na madrugada do último domingo.
A sucessão de imprevidências que culminou na transformação da boate Kiss em uma armadilha mortal deriva, em seu conjunto e essência, de um pecado capital que rege a conduta e a visão de mundo da maioria dos brasileiros, fator gerador de diversos males: a inconsequência. Faz parte da (in)cultura nacional ser inconsequente, acreditar vivamente que a transgressão das regras não dá em nada, não gera reações. Mas quando algo sai errado e o ato inconsequente colhe os seus lógicos frutos, eles invariavelmente são trágicos e poderiam, sim, terem sido evitados.
É o velho pensamento de que “não vai dar nada”. Não vai dar nada soltar foguetes pirotécnicos durante o show, dentro da boate, afinal, sempre fizeram isso e nunca deu nada. Até que deu. Não vai dar nada seguir funcionando, mesmo com alvará vencido há seis meses. Até que deu. Não vai dar nada deixar de treinar os funcionários para atuar em caso de tumulto. Até que deu. Não vai dar nada hoje, mesmo que não se verifique a condição dos extintores de incêndio. Até que deu. Também não vai dar nada dirigir em alta velocidade, ou embriagado, ou ultrapassar em local proibido. Sempre se fez e nunca deu nada. Até que dá. Não dá nada ter cachorro irado em casa, pois ele nunca atacou ninguém. Até o dia em que estraçalha o filho do vizinho ou a garganta do próprio dono.
Nunca vai dar nada. Nós, brasileiros, somos super-humanos, as leis são enfeites pirotécnicos que estão aí para serem molequemente burladas por nós todos, com risinhos safadinhos, porque nunca dá nada. Até o dia em que dá. É quando queimamos a mão em decorrência da nossa soberba e inconsequência crônicas. E aí quem paga a fatura, na maioria dos casos, são justamente os inocentes, porque, um dia, acaba dando em algo. O que não dá mais é sempre tudo acabar em pizza. Que não seja esse o caso.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de fevereiro de 2013)

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