terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Dias riscados

Calendário de mesa novo estreando sua vida predeterminada em cima da escrivaninha, ocupando o espaço destinado aos de sua espécie, onde até poucos dias atrás reinava soberano o de 2015, agora já obsoleto, guardador apenas de memórias e risquinhos. Faço risquinhos nos dias que passam nas folhas do calendário de mesa, como os filmes ensinam que fazem os prisioneiros nas paredes de catacumbas frias, profundas, úmidas e desoladas, para não se perderem na contagem do tempo das penas que lhes curvam as costas e espicham as barbas.
De semelhança a esses apenados da ficção, guardo tão-somente o hábito dos risquinhos mesmo, uma vez que vivencio da melhor maneira possível a liberdade relativa que tenho (sim, relativa, pois que, mesmo que vivesse em uma ilha deserta, nu e sem relógio, minha liberdade seria limitada pela geografia da ilha e pela produção anual dos coqueiros) e, quanto à barba, raspei-a a zero na passagem do ano e agora desreconheço essa cara redonda que me olha do lado de lá do espelho, mas deixemos isso para lá, voltemos ao calendário. Somos pautados pela passagem ordenada do tempo, nós, que teimamos em viver em sociedade, por mais que nossos sócios impostos nos decepcionem, apavorem, assustem e preocupem. Chegamos todos juntos aos mesmos dias do ano (descontadas as nuances dos fusos horários), vivenciamos as mesmas horas (com as pequenas diferenças de segundos e minutos que não chegam a comprometer), viramos sincronizadamente as folhinhas dos meses.
Vivemos o tempo oficial ao mesmo tempo. Porém, cabe a cada um de nós determinar o ritmo desse tempo a ser vivenciado. Até porque, nos diferenciamos justamente na posição em que cada um de nós se encontra na escala temporal: os jovens no início, onde o ritmo é acelerado; os de meia-idade no meio, começando a tirar o pé; os maduros nas áreas mais sólidas, quando aprendem que o fluir da vida requer uma cadência desapegada aos ditames loucos do empilhamento de segundos.
 Os risquinhos no meu calendário passei a fazê-los com mais vagar. Saboreio o início do traço no alto do quadradinho do dia impresso na folhinha, um ponto que se vai estendendo sem pressa, ao longo de dois ou três centímetros, até a base do quadro, cobrindo então, delicada e respeitosamente, o número da data que se vai para o passado. Sem pressa, pois que nunca se sabe quanto de futuro em riscos ainda se tem de fato pela frente.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de janeiro de 2016)

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