segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Ela dorme

Ela dorme. Gosto de observá-la dormir. Renova-se em mim um profundo sentimento de ternura sempre que a vejo adormecida ao meu lado. Talvez seja devido à frágil exposição a que a pessoa se coloca quando admite entregar-se ao sono ao lado de alguém, explicitando a extrema confiança que deposita nesse alguém. Faz-se necessário, então, ser merecedor dessa extrema confiança. Sinto-me merecedor e sigo observando-a.
Detenho-me a apreciar seus traços quando adormecida. Uma suavidade angelical parece apossar-se de suas feições nesses longos e profundos momentos, como se sua verdadeira essência viesse à tona e ficasse exposta, em toda a sua candura. Os lábios entreabertos, as pálpebras cerradas, a linha das sobrancelhas descansadas, os cabelos espalhando-se displicentes por toda a área do travesseiro. É bonito de ver. O que será que sonha? Passeia por mundos coloridos e fantásticos, desses existentes somente no mais profundo dos abismos do subconsciente? Quem os habita? A quem ela encontra quando flutua por esses oníricos domínios? O que faz? O que pensa? Quais as angústias e insatisfações que vê compensadas e equilibradas a partir dos enredos aparentemente insanos, aos quais agora se entrega, conduzida pelo secreto roteirista de seus sonhos? Navega por um mar amarelo? Enfrenta leões de seis cabeças destemidamente? É engolida por um girassol gigante? Cai em um abismo e não consegue gritar por socorro?
Acho que sim, porque, agora, resmunga algo incompreensível e vira-se para o outro lado, como que adivinhando meu observar a seu lado. Mas segue dormindo. Lembro que eu nutria o mesmo fascínio silencioso pelas intermináveis horas de sono às quais se entregava diuturnamente Bioy, o gato que me deu a honra de habitar meu lar ao longo de sete felizes anos, algum tempo atrás. Imagino que também sonhava sonhos - sonhos de gato -, uma vez que resmungava e se espreguiçava dormindo no meu colo. Se subia no meu colo para ali adormecer, é porque também confiava. Eu encarava isso como o maior dos elogios e das honrarias, afinal, ser digno da confiança de um gato não é para qualquer um.

Dias atrás transportei de carro meu afilhado de quase quatro anos de idade de um lado ao outro da cidade e ele adormeceu na cadeirinha instalada no banco traseiro. Acredito que confie na direção do dindo. Fiquei, de novo, lisonjeado. Fora isso, só torço para nunca causar sono no leitor. Aí sim, desconfiarei da confiança...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de janeiro de 2016)

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