segunda-feira, 5 de junho de 2017

Negociamos com quem?

Vender a alma ao diabo, fazer o pacto com as forças obscuras das profundezas abissais em busca de poder, glória, dinheiro e outras benesses é um símbolo e um recurso alegórico amplamente explorado pela literatura a fim de aprofundar o olhar sobre as nuances da alma humana. Facilmente seduzidos por promessas de artimanhas que lhes proporcionem os maiores ganhos frente aos menores esforços, os seres humanos, em essência e no geral, cortejam a ideia de negociar o que lhes seria o bem imaterial mais precioso (simbolizado pela alma) em troca de benefícios egoístas, imediatos e autocentrados que lhes posicionem em ponto superior e favorável em relação ao próximo, estabelecendo com ele distâncias artificialmente criadas, deixando o próximo cada vez mais longe. Esse é o termo principal do pacto. O outro, se dá ao final, representado pelo resgate da alma do “beneficiado”, quando, então, ele sofrerá as drásticas e irreversíveis consequências de sua escolha e não haverá mais a quem recorrer. Mas aí o caldo já terá entornado.
A literatura aborda o tema do pacto sinistro há séculos, com ótimos autores debatendo a questão por meio de personagens e tramas inesquecíveis. “Fausto”, de Goethe (1749 – 1832), é o primeiro que vem à lembrança quando se trata do assunto, baseado na peça teatral criada anteriormente pelo dramaturgo Christopher Marlowe (1564- 1593), “A Trágica História do Dr. Fausto”. Thomas Mann retoma o tema já no século 20 com seu romance “Doutor Fausto” e a questão do pacto com um ser mefistofélico em busca da conquista de projetos pessoais sempre está no centro das tramas. O menos conhecido Edelbert Von Chamisso (1781 – 1838) faz o mesmo em seu “A História Maravilhosa de Peter Schlemihl.” 

No Brasil, Guimarães Rosa (1908 - 1967) também insinua a questão como pano de fundo possível para as motivações de seu jagunço Riobaldo, protagonista de “Grande Sertão: Veredas”. Desde o início do romance, Riobaldo mostra-se preocupado com o problema da existência ou não do demônio e a possibilidade (ou não) de firmar um pacto com ele. Já quase no final da caudalosa obra, o personagem chega a uma conclusão inequívoca, expressa por suas próprias palavras: “Digo ao senhor: o diabo não existe, não há, e a ele eu vendi a alma... Meu medo é este. A quem vendi? Medo meu é este, meu senhor: então, a alma, a gente vende, só, e sem nenhum comprador”. Negociamos (ou nos desvencilhamos) nosso bem mais precioso (a alma, que evoca nossa ética, nossa moral, nossa humanidade) mesmo sem que haja nenhum comprador. O mal reside é nisso.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 5 de junho de 2017)

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