segunda-feira, 4 de junho de 2018

A bordo da nau de Bosch


Cem anos atrás, em 1918, o Museu do Louvre, em Paris, passava a incorporar em seu acervo uma tela significativa e importante pintada por um renomado artista holandês medieval. O pintor, autor da obra-prima, chamava-se Hieronymus Bosch, nascido em 1450 e morto em 1516. O nome esquisito não era nome de batismo, mas, sim, um pseudônimo inventado por Jeroen Van Aeken, provavelmente para esconder sua verdadeira identidade e escapar das garras da Inquisição, uma vez que o conteúdo temático de grande parte de suas obras costumava retratar de forma alegórica e crítica os excessos do clero europeu e o comportamento bárbaro da sociedade de sua época. Previdente e esperto esse Von Aeken, conhecedor de técnicas básicas de segurança e sobrevivência quando se está imerso em tempos intolerantes e insanos, como eram aqueles dias.
A tela em questão, acolhida desde então pelo Louvre (o quadro segue lá, pendurado na parede, para quem quiser e puder conferir de perto), é conhecida pelo título “A Nau dos Insensatos” e mostra um grupo de pessoas desprovidas de juízo e de lucidez reunidas em um festim luxurioso a bordo de uma pequena e frágil embarcação. A atmosfera resultante da interação dos inconsequentes personagens retratados na cena pintada pelo talento de Bosch (aliás, um dos precursores do movimento Surrealista que, no século XX, teria Salvador Dalí como um dos maiores expoentes no âmbito das artes plásticas) induz o observador à incômoda sensação de estar testemunhando um triste, perigoso e suicida processo de desagregação social que conduz direto ao caos. O caos, por sinal, é o único destino plausível de ser alcançado por uma nau composta por uma tripulação de insensatos (pleonasmo gentil para “loucos” mesmo, ou “desmiolados inconsequentes”).
O que esperar de uma embarcação dessa natureza? Ora, que eles próprios, os insensatos a bordo que usurparam o leme, atendendo à cegueira ensandecida de seu surto indomável, acabem furando o fundo do barco e com ele naufraguem, tragados ao abismo revoltoso para o qual conduziam seu destino desde que se deixaram levar pelos instintos incivilizados que os dominavam. Com essa tela contundente, Bosch procurava advertir, de forma burlesca, contra a perda dos valores éticos e civilizatórios que abre as portas para a barbárie e leva a sociedade ao caos. É estranho: 500 anos se passaram desde que ele pintou o quadro e eu aqui, do outro lado do mundo, em pleno século 21, me vejo balançando e sentindo enjoos como se estivesse, repentina e inadvertidamente, a bordo da dita nau. Que insensatez!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 4 de junho de 2018)

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