segunda-feira, 24 de setembro de 2018

(Sobre)viver na Era da Ira


Depois da Era do Gelo, da Era do Fogo, da Era do Bronze, da Era dos Transportes, da Era das Comunicações, chegamos, enfim, à atual Era da Ira. Vivemos tempos turbulentos em que a sociedade optou espontânea e conscientemente pela adoção aberta e ampla dos sentimentos mais vis da psique humana como condutores de seu destino e pautadores de seu cotidiano. Odiar é a regra. Odiar é o mantra. Desconstruir, humilhar, agredir, reduzir, difamar, caluniar, injuriar, xingar, cuspir, esfaquear, estripar, pisar, gritar, ofender, ironizar, esmagar, torcer o pescoço, esculhambar, ferir, são os verbos do momento. Compete-se para ver quem acumula mais pontos na escala da ira.
A fórmula para transitar nessa espinhosa Era da Ira é simples, e está ao alcance (e sendo praticada) de todos, independentemente de idade, gênero, cor, raça, religião, escolaridade, conta bancária. A democracia do ódio está plenamente instalada. Ela se baseia em princípios básicos como a dedicação ao reducionismo tacanho e às generalizações rasas (“todos os que pensam e agem diferente de mim são isso ou são aquilo, e, na maioria das vezes, são tanto isso quanto aquilo e ainda mais aquiloutro”); o exercício diário da capacidade de xingar o próximo como não se deseja que xinguem a nós mesmos; o abandono da empatia pelo culto da “odiopatia”; a convicção de que todos merecem ser odiados, exceto nós mesmos, claro, porque nos imaginamos ungidos pelo cetro da verdade (e cegados pelas trevas do preconceito, da intolerância, do desamor e da barbárie).
Tudo isso revela apenas o tamanho de nossa insegurança interna, do medo de sermos o que somos, de nossa incapacidade imatura de nos relacionarmos com as diferenças, com o contrário, com o contraditório. Quem pensa e age diferente precisa ser eliminado, execrado, desconstruído. É o comportamento primitivo floreado pela roupagem enganadoramente perfumada da modernidade. O atual dedo nos teclados é a reconfiguração do ancestral punho no tacape. Homens e mulheres de cro-magnon fantasiados de carteira de motorista e diploma universitário, incapazes de camuflar o primitivismo bárbaro que molda e move suas almas bestiais. A barbárie, quando evocada como modelo de sociedade, como via aceitável a ser adotada, conduz a um só desfecho: o fim da civilização. A decadência do escopo social é clara e inexorável, a partir do momento em se opta pelo xingamento ao invés do debate inteligente, civilizado, fraterno, construtivo e transformador. A Era da Ira não veio para ficar. Veio para reduzir a pó qualquer possibilidade de permanência.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 24 de setembro de 2018)

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